Série ‘Upload’: quando as corporações irão monetizar a imortalidade?, por Wilson Ferreira

No pós-morte descobrirá que a imortalidade pode ser tão enlouquecedora quanto a vida entre os vivos. E como as corporações serão capazes de monetizar a mais íntima experiência humana.

Série ‘Upload’: quando as corporações irão monetizar a imortalidade?

por Wilson Ferreira

No cinema e audiovisual, sempre as representações sobre a existência após a morte fala muito mais sobre os vivos do que sobre o Além.  Porque o espírito de cada época cria sua própria representação da morte – hoje, influenciada pela Inteligência Artificial e a possibilidade de a alma ser transcodificada em bytes para um dia, conquistarmos a imortalidade no “céu” de uma nuvem de dados. A série da Amazon Prime “Upload” (2020-) tematiza esse sonho que é na atualidade levado bem a sério pelos engenheiros das Big Techs do Vale do Silício. A série acompanha a trilha atual de diversas séries e filmes onde a imortalidade é conquistada por meio da transferência da consciência digital. À beira da morte, um programador aceita os termos de um serviço de upload da consciência para um Paraíso transformado em luxuoso resort virtual hospedado em um servidor da corporação Horizon. No pós-morte descobrirá que a imortalidade pode ser tão enlouquecedora quanto a vida entre os vivos. E como as corporações serão capazes de monetizar a mais íntima experiência humana.

As representações sobre a pós-morte no cinema e audiovisual revelam muito mais sobre o que está se passando no mundo dos vivos do que dos mortos.

Apesar de as representações do céu, da morte, e da existência pós-vida se alterarem de acordo com o imaginário de cada época, uma fórmula básica se mantém, a partir da qual se criam diversas narrativas e variações: personagem principal morre, chega no “céu” (algum espaço intermediário entre a Terra e o céu, limbo, antessala celestial ou a própria plenitude celeste etc.)  e é submetido a algum tipo de julgamento – revê sua própria vida, mentores ou entidades superioras o julgam, retorna para a vida para uma “segunda chance” etc.

A pesquisadora norte-americana Amanda Shapiro em sua tese “You Only Live Twice: The Representation of the Afterlife in Film” (Miami University, 2011) apresenta um interessante inventário por décadas da produção cinematográfica sobre o tema. Segundo sua pesquisa, experimentamos dois booms sobre o tema pós-morte no cinema: o primeiro, durante a Segunda Guerra Mundial (certamente pelos milhões de mortos nos campos de batalha); e o segundo, a partir da década de 1980 numa curva ascendente.

Para ela, após três décadas de decréscimo de filmes sobre o tema (coincidindo com a opulência econômica da sociedade de consumo pós-guerra), a partir da década de 1980 súbito crescimento à ansiedade cultural e tecnológica produzida pelo final de milênio e a insegurança ao entrarmos em um mundo radicalmente novo moldado pela Internet  (talvez o filme Matrix de 1999 seja a expressão máxima disso e todos os filmes catástrofes sobre o fim do mundo nos anos 1990). Os atentados de 11 de setembro nos EUA e o fim da Guerra Fria substituída por uma ameaça viral e invisível que é o “terrorismo internacional” somente teria reforçado essa preocupação existencial com a morte e o “céu”.

Mas a partir do filme Amor Além da Vida (1998) vemos uma alteração da representação do pós-morte – mais plástica e solipsista. Os céus são criados por projeções psicológicas dos personagens a partir dos seus sonhos, desejos, pesadelos, culpa etc. Ou, utilizando uma terminologia atual, criamos “bolhas” para nós mesmos, a partir dos nossos dramas interiores.

A série da Amazon Prime Video Upload (2020-) vem na trilha de uma nova curva ascendente de filmes sobre a existência pós-morte: as séries Forever (o enfado da vida pós-morte), The Good Place ou o final para Devs(um recém-falecido que recebe uma nova vida digital); além de Miracle Workers no qual o Paraíso é re-imaginado como uma corporação dirigida por um CEO incompetente chamado Deus. Sem falar nos episódios mais famosos da série Black Mirror: “San Junipero” e “USS Calister”, envolvendo personagens que ganham imortalidade por meio da transferência de consciência digital.

Upload é um reflexo direto daquilo que o engenheiro computacional e, certamente, um filósofo do Vale do Silício Jaron Lanier chama de “religião das Máquinas”: o impulso místico generalizado entre os engenheiros das Big Techs de um dia fazermos um upload final das nossas consciências, deixarmos tudo para trás, e vivermos a imortalidade em uma nuvem de dados no céu da informação.

Upload é uma comédia com tons de humor negro cujo tom já é dado logo no começo quando vemos um personagem explicando que a sua avó está no “céu”. “Qual?”, pergunta-se. A pergunta faz sentido dentro de um futuro próximo no qual as empresas de tecnologia pode oferecer (a partir de diversos pacotes de serviços e faixas de preço) digitalizar a consciência humana concedendo aos clientes uma vida virtual à sua escolha – e o pior é que para muitos, circunscritos a pacotes de dados que, quando terminados, condenam a consciência ao congelamento em uma não-existência.

A Série

Nathan (Robbie Amell) é um programador de aplicativos bem-sucedido que, apesar de ter uma namorada amorosa Ingrid (Allegra Edwards), momentos felizes com sua sobrinha e divertir-se com um carro autônomo, é muito egocêntrico para aproveitar qualquer coisa disso.

Sua vida aparentemente alegre em um mundo de 2033 chega a uma abrupta reviravolta quando seu veículo sofre um sério acidente. Aparentemente incompreensível, porque os carros autônomos são seguros e infalíveis numa época em que a inteligência artificial é onipresente e onipotente.

No hospital, Ingrid insiste para Nathan que ele está à beira da morte e deve garanta seu futuro permanente: ou aceita a morte comum ou escolha passar por um procedimento que transfira digitalmente sua consciência em um paraíso virtual, assegurando a vida eterna.

Aqui inicia um retrato satírico de um mundo no qual a vida após a morte é apenas um aplicativo com anúncios pop-up e diferentes faixas de preços, pacotes de dados e serviços Premium.

Existem “céus” computadorizados modelados, por exemplo, a partir das colinas da Toscana, os cassinos de Las Vegas, a savana africana e a elite: Lake View – “a única vida após a morte digital modelada nos grandes hotéis vitorianos dos Estados Unidos e Canadá” – onde Nathan irá se encontrar após morrer. Tudo bancado pela sua rica namorada, Ingrid (Allegra Edwards), que transformará a vida eterna do namorado em sua propriedade de uma namorada ciumenta.

Nathan poderá bater papo com os vivos através de chats, telas e vídeos e sempre será acompanhado por “anjos”: assistentes técnicos que acompanham 24 horas os “mortos” a partir de um serviço que mais parece um call center.

Na utópica comunidade digital de Lakeview, Nathan encontra fabulosos buffets de café da manhã e os quartos têm serviço noturno de arrumação de cama, a água está brilhando e o litoral está sempre à vista. Enquanto faz malabarismos com a logística de um funeral adequado e mantém seu relacionamento com a possessiva Ingrid, Nathan começa a passar mais tempo com Nora (Andy Allo), o funcionário “anjo” da empresa proprietária de Lakeview, a Horizen.

Enquanto Nathan vai se entediando com aquela vida, às voltas com a possessiva Ingrid. A série explora os absurdos de ter um relacionamento à distância com uma pessoa morta – por exemplo, Nathan e Ingrid tentam fazer sexo vestindo um traje de neoprene ridículo cheio de dedos sensores que podem receber e transmitir sensações.

Ou o plot do garoto frustrado por ter morrido e ficado congelado na pré-adolescência – ele só poderá tornar-se adulto adquirindo mais pacotes de dados para fazer um upgrade em seu contrato de serviços.

É quando esse paraíso começa a se mostrar mais próximo do Inferno: o “céu” digital apenas reflete as mazelas deixadas no mundo dos vivos. E a principal delas: o cinismo diante da desigualdade social que se aproxima da eugenia.

Conhecemos o “céu” dos clientes de mais baixo poder aquisitivo: o “dois gigabytes” – pacotes limitados pré-pagos: habitantes de um reino sombrio que ainda podem existir – suas consciências pós-morte foram salvas no servidor – mas só podem pagar por dois gigabytes de dados por mês. Sua existência está sujeita a limites de dados. Eles certamente teriam permissão para viver mais, mas somente se suas famílias pudessem pagar por um plano ilimitado.

As coisas começam a ficar ainda mais sombrias quando Nathan começa a desconfiar de que ele não deveria estar alí – sua morte pode ter sido o resultado de uma conspiração envolvendo venda e aquisição de uma startup tecnológica da qual era o desenvolvedor. Seu anjo “Nora” vai ajuda-lo no trabalho de investigação para recuperar memórias de Nathan que foram estranhamente deletadas – justamente as memórias envolvendo as negociações da startup da qual era sócio.

Continue lendo no Cinegnose.

Redação

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