Setembro amarelo – Refletir sobre o suicídio é refletir sobre a vida, por Flávia Andrade

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Psicologia e Prevenção do Suicídio
 
Setembro amarelo – Refletir sobre o suicídio é refletir sobre a vida
 
por Flávia Andrade
 
O mês de setembro é, desde 2015, o mês que simboliza a prevenção ao suicídio. A campanha “Setembro Amarelo” faz parte de uma série de ações informativas e de prevenção extremamente pertinentes e fundamentais, já que suicídio é atualmente considerado uma questão de saúde pública e enquanto tal, precisa ser foco de intervenção de políticas públicas de prevenção, o que envolve profissionais de variadas áreas.
 
No entanto, o objetivo deste texto não é apenas discorrer sobre a campanha Setembro Amarelo. É, sobretudo, ressaltar a importância da prevenção do suicídio em todos os  meses do ano. Para isto aproveitamos que a atenção de todos está voltada para o tema e para o dia 10 de setembro (Dia mundial de prevenção ao suicídio).

 
Desde Durkheim (sociólogo francês, autor do clássico O suicídio) até hoje, geralmente os sociólogos pensam o tema do suicídio em sua articulação a questões sociais, a movimentos e tempos históricos nos quais, ocorrem. Esta análise contextualizada é absolutamente pertinente. Durkheim faz parte dos pensadores que entendem que o fenômeno do suicídio pode ser uma espécie de denúncia de modos patológicos e insuportáveis de relações em sociedade, entre as quais, inúmeros fatores podem contribuir para o sentimento de desamparo e crescimento de angústia individual, que muitas pessoas podem não suportar. Mas mesmo os sociólogos não consideram apenas as questões sociais como desencadeantes do ato suicida; e hoje é praticamente consenso se tratar de um fenômeno multifatorial. 
 
Atualmente vemos que frequentemente se aborda o suicídio pelo viés da saúde, ou seja, destacando os fatores de risco, os de proteção etc, que são aspectos importantes da prevenção. Mas não podemos parar por aí. Se entendemos que se trata de fenômeno multifatorial, precisamos ampliar o olhar para muito além da epidemiologia. Pois é um fato que os suicídios podem estar muitas vezes associados a doenças mentais, mas isso não nos tira a responsabilidade de pensar sobre a época em que essas mesmas doenças mentais ocorrem. Precisamos ampliar o olhar para o contexto social em que têm ocorrido os suicídios e para os sujeitos que atualmente mais têm buscado nesse ato extremo e definitivo um basta para sua dor psíquica intensa (adolescentes e idosos). Nesse sentido, se o suicídio é tratado como tabu, com ares de hesitação e de receio não é apenas pelo fato de ser dolorido e violento (para quem fica). É também pelo seu caráter de evidenciar que os modos de relação em sociedade muitas vezes não são dos mais empáticos (como apontam os sociólogos). Nossos jovens (um dos grupos em que mais têm ocorrido suicídios)  estão num mundo no qual os indivíduos se sentem muitas vezes abandonados, solitários, em desamparo. As relações de competitividade e o espírito de “ser empresário de si mesmo” nos faz diariamente nos colocarmos em posição de competidores numa gama infinita de lutas; luta pelo melhor emprego, pela melhor posição no trabalho, pela melhor formação acadêmica, pela melhor forma de atrair um companheiro, pelo melhor desempenho como mulher, homem, mãe etc. Do mesmo modo, e antes disso, fazemos de nossas crianças desde muito pequenas micro empresárias de si mesmas, estimulando cada vez mais cedo formações intelectuais que só se justificarão muito mais tarde. Cobramos desde muito cedo dos adolescentes que se comportem como empreendedores de si, de seu futuro, que sejam bilíngues, trilíngues, poliglotas antes de atingir a maioridade. Que sejam campeões de disputas que muitas vezes não fazem sentido para eles. No outro lado, o jovem periférico, alheio a essas possibilidades de empreender a si mesmo como ser competitivo (no sentido de acesso a formação em idiomas, universidades etc) pode se ver sem esperança. Assim, muitas vezes o adolescente de forma geral não é visto como alguém cuja identidade ainda está em formação, mas como o futuro médico, futuro advogado ou no pior dos casos, aquele que “se não tiver mais jeito” terá um futuro duvidoso.
 
As expectativas desse ethos social que provocam sentimentos de abandono são violentas e perversas com adultos ativos. Com jovens e idosos (que ainda não se estabeleceram ou já estão inativos), podem ser absolutamente devastadoras.
 
Todas as catalogações que sofremos em sociedade (o empreendedor, o ativo, o preguiçoso, o indisciplinado etc) podem nos violentar a nós, adultos ativos, mas podem ferir de forma quase irreversível um adolescente que ainda não encontrou o espaço para se tornar quem é, para encontrar seu desejo e se constituir como um si mesmo autêntico. Se antes de todo esse processo de formação identitária da adolescência ser concluído o jovem já for atravessado apenas por cobranças, rótulos e ausência de espaço para acolhimento de seu sofrimento, de seu choro, de suas angústias, este  adolescente pode de fato não suportar. É preciso que isso seja dito, refletido, discutido, reavaliado.
 
Se em nossa sociedade o direito ao choro foi praticamente vetado mesmo aos adultos, se tristeza é geralmente associada à fraqueza e ao fracasso, qual será o destino das angústias dos jovens que ainda não se estabeleceram como pessoas integradas em suas identidades? E qual será o destino do sentimento de desamparo e solidão de nossos idosos? É preciso entender que choro, sofrimento e angústia são parte de nossa história, do que nos constitui, do que nos transforma. Mas o adolescente precisa de apoio para suportar vivenciar essas emoções. E é preciso lembrar que tristeza e depressão não são sinônimos. A tristeza é preciso acolher, à depressão cabe tratamento adequado.
 
Prevenir o suicídio (entre outras ações frequentemente discutidas) é admitir que refletir sobre este tema é refletir sobre o sentido de nossas vidas, sobre como temos lidado com nossa significação existencial e sobre como nos colocamos frente às nossas angústias. É ainda refletir sobre o quanto nos dispomos a estar, de fato, junto, quando o outro ao nosso lado diz “estou sofrendo”.
 
Já dizia Camus (filósofo franco-argelino), “suicídio é a questão filosófica essencial”. Pensar o suicídio é pensar sobre se a vida vale ou não a pena ser vivida. Nesse sentido, podemos complementar Camus e nos perguntar: “estamos atualmente vivendo a vida do modo como realmente gostaríamos?” E se não estamos, como criamos espaços para nos transformar? A nós e ao outro?
 
Abaixo deixo os links úteis e reforço; em caso de angústia extrema, peça ajuda, procure um profissional de psicologia (em alguns casos, é necessária uma avaliação psiquiátrica). E caso alguém ao seu lado manifeste angústia, tente não ter medo de perguntar: “onde dói, como posso te ajudar?”
 
Flávia Andrade é Psicóloga Clínica e Hospitalar, Especialista em Psico-Oncologia e Prevenção do Suicídio. Mestranda em Filosofia com o tema “O Suicídio segundo Michel Foucault. Autora do blog Psicologia e Prevenção do Suicídio
 
Se precisar de ajuda ligue 188 (CVV – Centro de Valorização da Vida, ligação gratuita em todo o território nacional)
 
Referências Bibliográficas

BRUM, Eliane. O Suicídio dos que não viram adultos nesse mundo corroído. El Pais, Junho de 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/18/opinion/1529328111_109277.html?id_externo_rsoc=FB_CC
 

CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo . Rio de Janeiro: BestBolso, 2013.

DURKHEIM, E. O Suicídio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Biopolítica. Lisboa: Edições 70: 2010

 
WINNICOTT, Donald Woods. Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 2014
 
Links úteis:
 
CVV-GASS – Grupo para enlutados por Suicídio (Grupo de Apoio aos Sobreviventes por Suicídio):
 
Cartilha “Preventing suicide” Organização Mundial da Saude: 
 
Cartilha “Suicídio, informando para prevenir” Associação brasileira de psiquiatria:
 
CVV – Centro de Valorização da vida:
 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. O direito ao suicídio

    Muito simpático e repleto de acertos o artigo acima,especialmente para a juventude. Porem, em meio a certo proselismo e citações , ele passa superficialmente pelo direito ao suicídio em vários casos. É natural que se condene o suicídio , pois quem tira a própria vida de forma deliberada, geralmente  ou de certa maneira direta ou indidireta lança sentimento de culpa em que está por perto Aos outros. Culpar só o coletivo é corrreto mas fácil.   Mas, nos idosos, o desejo de morrer é frequente seja por motivos de saúde, por limitações trazidas pelo avançar da idade, pela perda de espaço afetivo e criativo, pelo declínio econômico. Enfim, por algumas dessas razões ou por várias delas ou po todas elas juntas. E sse desejo de morrer nem sempre é respeitado, é um direito de alguém adulto a frente de uma ou mais situações limites e restrtitivas.  Refletir sobre o suicídio é refletir sobre a vida e sobre a vida quando ela é triste, sem perespectiva para um idoso ou alguém que pode estar sendo um estorvo para si e para outros. Vamos respeitar o direito ao suicídio, Sem hipocrósia e apego a dgomas religiosos.

     

  2. Comento.

    O texto fala sobre “prevenção ao suicídio”. Apela para Durkheim, Camus…

    Bom, sem fazer apologia ao suicídio, pergunto… pq o suicídio não seria, também, uma opção?

    Para quem acha isto uma heresia… bom… o judaísmo, o cristianismo e o islamismo rejeitam o suicídio. Friso, inclusive, no caso islâmico, dada a cretinice midiática existente sobre o “terrorismo suicida”. Não apenas se trata de exceção da exceção, como isto é situação de estudo dentro e fora do mundo islâmico.

    Até mesmo no mundo helênico o suicídio foi visto como sinal de autarkheia, princípio de que a pessoa é regida por si, desenvolvida por uma longa e persistente prática e reflexão sobre a situação vivida. Pensei que a mestranda em filosofia fosse citar isto, mas não…

    Por qual motivo uma pessoa preferiria dar fim à própria vida a viver entre outras pessoas? Sinal de covardia, traição? 

    Já houve quem dissesse que o suicídio é a última maneira de dizer que a vida ainda lhe pertence. Por isto, muitos casos de suicídio são tratados quase ao nível da traição. Como se houvesse alguém ou algo a trair. 

    No fim das contas, mostrar que há uma vida de ser vivida – em vez de ser testemunha da destruição do que há ao redor e, no fim, de si mesmo – ainda é um desafio.

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