Sobre o excessivo futuro do passado no Brasil, por Gabriel Silveira de Andrade Antunes

A situação política do Brasil neste ano de 2020 é calamitosa também pelo longo acúmulo de violências não reconhecidas

Em Salvador (BA), manifestantes pedem volta do AI-5. Foto: Reprodução/YouTube

Sobre o excessivo futuro do passado no Brasil: da ausência de memória e de algum futuro desejado

por Gabriel Silveira de Andrade Antunes*

As faturas pendentes são como uma perseguição. A situação política do Brasil neste ano de 2020 é calamitosa também pelo longo acúmulo de violências não reconhecidas, de corpos desaparecidos, de informações mal circuladas, de manifestações não escutadas e de ameaças nunca contidas.

Isso tudo gera uma produção em massa de paranoia, a sensação de ser perseguido permanentemente pelo que foi feito e pelo que não foi feito no passado que impede de acompanhar bem o que está se dando agora.

As faturas pendentes ganham assim um reforço inercial: porque não demos conta do passado tampouco damos conta do presente. O futuro do Brasil se torna uma repetição compulsiva do passado com toda a sua exuberância de incongruências que são imediatamente incompreensíveis.

O gesto autoritário do presidente Bolsonaro sempre repetido é também uma catatonia coletiva. O presente comprimido entre o passado que dói demais sem que o possamos compreender na paranoia e o futuro que se projeta como a repetição dessa incompreendida massa de eventos engaja parte da população no pedido de intervenção militar.

Como se já não tivesse havido o bastante de intervenção militar nos fracassos da república brasileira se manifesta um movimento social por mais uma intervenção militar. Essa repetição se cria com motivos repetidos: corrupção, ameaça comunista, defesa da família.

Não é saudável pensar que a próxima intervenção fará o que se propõe não tendo a última protegido milhões de famílias sequer da fome, ou eliminado o espectro comunista nem a corrupção. Nada disso é casual. Simplesmente porque a defesa real das famílias não é um mero slogan, as alternativas à esquerda pelo menos apontam para soluções necessárias de muitos males da sociedade contemporânea e o autoritarismo não é mais que corrupção mesmo quando os tiranos e seus asseclas não encham seus bolsos do erário.

Interromper a democracia em 2016 foi interromper um tímido e frágil processo de memória e de invenção coletiva de futuro. Gerou-se uma situação que “parece cocaína, mas é só tristeza”. Esse estado de excitada dormência coletiva não se limita a um contínuo desde as franjas antipetistas e lavajatistas até os radicais patriota-genocidas da sociedade brasileira. Ela atinge também quem se esforça criticamente por recuperar a memória e a invenção do futuro.

Eu sinto que minha voz ficou com menos força que a dor que sinto e que meu grito não acordaria nem a minha casa e menos ainda a vizinhança inteira. Não acho que só eu sinto isso. Seguindo ainda a música do Legião Urbana, vemos que essa dormência atinge mais fundo que a força de nossa voz:

Descompasso, desperdício

Herdeiros são agora da virtude que perdemos

Há tempos tive um sonho

Não me lembro, não me lembro

(Legião Urbana – Há tempos)

 

Essa situação de paranoia e catatonia política repete também o esquecimento do sonho, que duplicado é se esquecer de sonhar. Não há perspectiva sem o trabalho do imaginário. Nisso a oposição parece estar presa à mesma enfermidade que é o governo. Não sabemos para onde vamos nem para onde queremos ir e isso reforça continuar não sabendo onde estamos. O próprio lugar é lugar do exílio, de modo tão dramático que os que estão longe do Brasil não estão mais distantes do país do que aqueles que nele estão geograficamente.

 

* Gabriel Silveira de Andrade Antunes é doutorando em filosofia política pela Universidade de Paris.

Redação

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  1. Diário do Brasil Fascista – junho de 2019

    O SUPREMACISMO BRONCO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
    (Notas que hoje, maio de 2020, revelam-se premonitórias…)

    E assim vamos seguindo na Terra Brasilis, sob as botas de Bolsonaro e sua trupe MM (milicianos e milicos). A degradação institucional, o autoritarismo, o colapso da economia, o aumento exponencial da miséria e violência, são tratados por muitos com a mesma resignação que o apocalipse climático, a velhice e a morte. Recalca-se o saber de tudo isso. Toca-se a vida cotidiana como se nada de alarmante estivesse acontecendo.
    Expostas as vísceras da Operação Lava Jato pela equipe do Intercept, seria de esperar que ao menos os setores mais informados da sociedade brasileira já não pudessem desconhecer ativamente o que todos, no fundo, já sabíamos – pelo acúmulo gritante de evidências: a farsa em que consistiu a pretensa cruzada moralizadora de moros e dalanhóis. Traduzindo, para os menos avisados: a corrupção bilionária de uma gangue incrustrada no Judiciário que, provavelmente a soldo de um Império estrangeiro, arruinou o Brasil e viabilizou a eleição de um fascista, pretextando combate (seletivo) a corrupções muito menores que sua própria (e não comprovadas, para dizer o mínimo, no caso Lula).
    Setores expressivos de elite e classe média, contudo, recebem as denúncias do Intercept com suspeita, desinteresse, apatia – quando não repúdio em bloco. Aqueles diálogos simplesmente não podiam ter sido divulgados! Aquelas falas obscenas têm que ser falsas! Mesmo autênticas e estritamente referidas a temas de âmbito público (e não exposição sensacionalista de estripulias privadas), sua revelação é tratada como um crime. Por que? Porque, para muitos, são verdades “criminosamente” inconvenientes.
    Outros, incomodados pela própria consciência da cumplicidade – ativa ou passiva – na sustentação da farsa a jato e eleição de Bolsonaro, buscam desesperadamente um álibi, uma transferência de responsabilidade. Exigem “auto-crítica do PT”, ao invés de fazer a própria auto-crítica. Ora, imputar a um partido democrático de centro esquerda (que certamente nunca foi “santo”) a culpa pela própria demonização, pela prisão de sua maior liderança, pelo golpe de Estado que sofreu, equivale a culpar os judeus por Auschwitz – afinal, judeus também não são santos; alguns na época eram mesmo narigudos e avarentos; alguns até colaboravam com os nazistas! – ao invés de responsabilizar-se por ter apoiado Hitler (Bolsonaro)… ou ter votado nulo, porque o único adversário capaz de barrar a eleição de Hitler (Bolsonaro) era do PT (Haddad).
    O antipetismo foi cevado pelas elites e sua grande mídia, ferozmente, anos a fio. Cresceu e multiplicou-se. Mas suas raízes vêm de longe. É herdeiro do escravismo, do coronelismo, do conservadorismo. Quer preservar uma ordem radicalmente excludente, na qual o conforto material e espiritual de alguns supõe a existência de esmagadora maioria em condição subalterna, sub-cidadã.
    Não é preciso ser milionário para querer conservar uma hierarquia excludente; basta acreditar-se situado qualquer degrau acima de um estrato considerado inferior, e aferrar-se a tal “distinção”. O fenômeno do “pobre de direita” sustenta-se num supremacismo minimal, cruento como qualquer outro. Se sou “marrom”, posso preferir a manutenção da diferença e vantagem que tenho em relação ao negro do que serem todos tratados como iguais ao branco. Se moro na parte nobre da favela, posso proclamar a minha distinção essencial dos “vagabundos” que moram na parte mais pobre. Se sou escravo, posso preferir conservar o direito a ter escravos também (escravos podiam ter escravos no Brasil) a lutar pela abolição – mesmo que eu (ainda!) não tenha adquirido os meus cativos, nem comprado minha alforria!
    Jessé de Sousa fala do ódio que as elites nutrem contra os negros e pobres. Concordo com ele; mas acrescentaria certas nuances a seu argumento. As “elites” são, em primeiro lugar, um lugar imaginário, não necessariamente alicerçado em renda, cor da pele, capital material ou simbólico. De elite somos todos os que absorvemos esse ethos supremacista “bronco” (mais até do que “branco”), já que tosco e insabido: o direito supostamente “natural” de conservar semelhantes em posição subalterna. O direito a uma “distinção” congênita, irredutível – correlato à existência de um estamento suficientemente numeroso de concidadãos que não tenhamos de tratar como sujeitos de humanidade plena, dignidade ou direitos iguais aos nossos; ou seja, que possamos tratar… como objetos.
    Não que odiemos, sempre e necessariamente, esses sub-cidadãos (“peões”, “cabras”, “vagabundos”, “favelados”, “crioulada”) … Podemos até tratá-los com educação, piedade, caridade (“noblesse oblige”!). Guimarães Rosa registrou o carinho que alguns sertanejos dedicam a seus cavalos e seu gado. Salvo exceções (casos patológicos sempre existem – alguns coronés e vaqueiros têm gosto no uso gratuito das esporas!), só odiamos os cavalos que empacam – ou pior, que nos derrubam… de nosso supremacismo bronco.
    Um engenheiro de classe média, com quem tive negócios certa vez, disse, candidamente, acerca dos operários da construção civil: “Peão é igual cachorro. Come, dorme, trepa… só não pensa.” Sua voz não ressoava ódio – só um doce e tranquilo desprezo; um regozijo sutil pela sub-humanidade atribuída ao subalterno, que lhe reassegurava o supremacismo “bronco”. Simplesmente referendava uma premissa essencial da ordem hierárquica excludente, sobre a qual provavelmente sustenta a própria identidade, seu mais íntimo sentimento de si como pessoa… “distinta”.
    Essa, ao meu ver, é a raiz mais profunda do anti-petismo em geral, e do ódio ao Lula em particular. Lula tem o péssimo hábito de incluir, em todos os discursos que dirige à ralé, uma frase fatal: “Nós não vamos mais baixar a cabeça!” Ora, tal frase é uma afronta ao supremacismo bronco. Se os subcidadãos que asseguram meu conforto espiritual como um cidadão “distinto” resolvem comportar-se como iguais a mim em dignidade e direitos, sinto-me aviltado e ameaçado. Fico nu; sou despido da vestimenta protetora que a submissão, o reconhecimento de minha superioridade congênita e irredutível, o temor reverencial dos subalternos, representam para mim.
    Reconhecer nossa interdependência de destinos como sujeitos, nossa igualdade radical na diferença; reconhecer que nossa dignidade é congenitamente a mesma, na medida em que partilhamos a mesma condição de falantes, é um exercício necessário de resistência ao supremacismo bronco. Bobo, canalha e vil, o ordenamento imaginário do mundo numa hierarquia excludente costuma ser teimoso e inadvertido como um cacoete – mas muito mais mortífero e suicida em seus efeitos. Corremos o risco de afundar, individual e coletivamente – como clãs, país, espécie humana – se não conseguirmos largar o peso de nossa “distinção” imaginária, a estupidez e a inviabilidade a que ela nos condena. Resta indagar se estaremos à altura desse desafio.

    Supremacismo Bronco, parte 2

    Bolsonaro é o retrato fiel do supremacismo bronco. Estúpido, obsceno, canalha… e irredutível.
    Muitos dos seus eleitores já se dizem traídos por ele, ou decepcionados. Muitos alegam ter votado em Bolsonaro por falta de alternativa, muito a contragosto, só para “tirar o PT do poder”.
    Outros ajudaram a elegê-lo votando nulo, achando que assim podiam eximir-se da responsabilidade.
    Mas não adianta fugir do espelho.
    Bolsonaro representa com total fidelidade o ethos do brasileiro capturado pela lógica do supremacismo bronco. Inútil espernear ou justificar-se, amigo: Bolsonaro é a imagem, cuspida e escarrada, de algo seu. Algo estranho/familiar, mesmo inconfessável. Disso, Bolsonaro é o herói, o Eu Ideal – quer você tenha votado nele, quer tenha preferido deixar que ele se elegesse a votar num petista que poderia derrrotá-lo.
    O maior patrimônio do “bolsominion” mais ou menos envergonhado é a existência de um estrato, o maior possível, de outros brasileiros que ele possa tratar como inferiores a ele, como sub-cidadãos, e sejam obrigados a tolerar esse tratamento – de preferência com docilidade, sem qualquer alternativa. Para preservar a própria identidade como pessoa “distinta” – distinta desse outro subalterno, aviltado, reduzido a objeto de uso, abuso, humilhação ou tutela -, o brasileiro embebido no supremacismo bronco estará disposto a qualquer sacrifício, irracionalidade ou estupidez.
    Como, por exemplo, votar no Bolsonaro… ou não votar em quem pudesse derrotá-lo.
    A estupidez, a grosseria, a boçalidade de Bolsonaro são a essência mesma do tipo de gozo que o supremacismo bronco insiste em proteger. “Que me importa que a mula manque, eu quero é rosetar!” “Que me importa que seja impossível, ruinoso, imoral e imbecil; estar por cima do máximo possível de semelhantes, sentir-me distinto deles, ter o direito de tratá-los como objetos – nem que seja de minha benevolência e caridade – é o que me confere segurança, e me dá satisfação. O resto que se f… “
    Disso provém a naturalidade com que tantos acolhem o comportamento ilegal e imoral do juiz Sérgio Moro; que quaisquer ilegalidades e escroquerias lhe sejam perdoadas, desde que para “pegar o Lula”. Esse fim, esse Bem Supremo, justifica qualquer meio: “Não tem nada demais nisso”, pontifica FHC. Não dá o que pensar?
    Lula é aquele “cabra safado”, o “corrupto” – corruptor de submissões seculares. Ele insufla os sub-cidadãos brasileiros a “não baixar mais a cabeça”. Isso é intolerável.
    Tudo é menos ruim do que isso. Tudo é aceitável para se contrapor a isso.
    O melhor mesmo seria pegar esse subversivo, o Lula, e chicotear, enforcar, tacar fogo, esquartejar e espalhar os pedaços para os urubus comerem. Infelizmente, o “pessoal dos direitos humanos” não deixa mais os “homens de bem” fazerem essas coisas justas (e tão divertidas).
    Pra ferrar o Lula e manter a própria “distinção”, vale tudo. Inclusive arruinar o país, apressar o apocalipse climático, inviabilizar qualquer perspectiva de futuro para os próprios filhos e netos.
    Não há futuro tolerável sem o supremacismo bronco, pensam muitos brasileiros.
    Então, que não haja futuro – dizem eles, mesmo sem palavras. Atos e omissões podem ser mais eloquentes que qualquer palavra.
    Temos que arrumar um jeito de salvar o país e o planeta dos viciados em supremacismo bronco – savá-los, inclusive, deles próprios.
    Nós, que padecemos de outros tipos de doenças, somos fracos, divididos, cheios de dúvidas e escrúpulos.
    Só temos uma coisa a nosso favor: a total e absoluta inviabilidade do supremacismo bronco; a falsidade de suas premissas, a ruína vertiginosa que ele acarreta.
    Não sei se é o caso de gritar “quanto pior melhor” – ou “quanto mais rápido o choque de realidade, melhor”.
    Gritemos ou não, essas frases ou outras, o real já está gritando por nós. E o fará cada vez mais, enfiando de volta, por todos os nossos buracos, aquilo que foi excluído do Simbólico.
    Oxalá consigamos processar o que vem por aí.

  2. ????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????????? e ?, embora pudesse haver menos ?

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