Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Sotaque do Recife X Fala no Rádio e Tevê, por Urariano Mota

Sotaque do Recife X Fala no Rádio e Tevê*

por Urariano Mota

Raro as nossas vogais “E” e “O” se pronunciam como se escrevem nas sílabas. Nem, muito menos, como “ê” e “ô”, ave Maria. Aliás, “ave” é bem ilustrativa da variação, ora se pronuncia “ávi”, ora “avé”, como se escuta nos cânticos das igrejas católicas do Nordeste. Assim também na palavra Recife, que ora é Ricife, ora é Ré-cife. Ouça-se, a propósito, Alceu Valença cantando Voltei, Recife, e o Coral de Batutas de São José na música Evocação no. 1, de Nelson Ferreira. O coral em suas vozes eternas canta “Ré-cife adór-mecia, ficava a sonhar…”.

Mais de uma vez pude notar que os apresentadores na mídia possuem uma língua diferente da falada. Mas a coisa se tornou mais séria quando percebi que, mesmo fora do trator absoluto do Jornal Nacional, os apresentadores locais do rádio e tevê falam também outra língua. O que me despertou foi uma reportagem sobre o trânsito na Avenida Beberibe, no bairro de Água Fria, que tão bem conheço. E não sei se foi um despertar ou um escândalo.

Na ocasião, o repórter e o apresentador na Rede Globo Nordeste somente chamavam Beberibe de Bê-Bê-ribe. O que era aquilo? É histórico, desde a mais tenra infância, que essa avenida sempre tenha sido chamada de Bibiribe, ainda que se escrevesse e se escreva Beberibe.

Ligo para a redação da tevê. Um jornalista me atende. Falo, na minha forma errada de falar, como eu saberia depois. Falo este absurdo, compreendi depois:

— Por que vocês falam bê-bê-ribe, em vez de Bibiribe?

— Porque é o certo, senhor. Bé-Bé é Bê-bê.

— Sério? Quem ensina isso é algum mestre da língua portuguesa?

— Não, senhor. O certo quem nos ensina é uma fonoaudióloga.

Ah, bom. Para o certo erram de mestre. Mas daí pude ver que a fonoaudióloga como autoridade da língua portuguesa é uma ignorância que vem da matriz, lá no Rio. Ou seja, assim me falou a pesquisa:

“Em 1974, a Rede Globo iniciou um treinamento dos repórteres de vídeo. Nesse período a fonoaudióloga Glorinha Beuttenmüller começou a trabalhar na Globo. Como conta Alice Maria, uma das idealizadoras do Jornal Nacional: ‘sentimos a necessidade de alguém que orientasse sua formação para que falassem com naturalidade’. Foi nesta época, que Beuttenmüller começou a uniformizar a fala dos repórteres e locutores espalhados pelo país, amenizando os sotaques regionais. No seu trabalho de ‘definição de um padrão nacional, a fonoaudióloga se pautou nas decisões de um congresso de filologia realizado em Salvador, em 1956, no qual ficou acertado que a pronúncia-padrão do português falado no Brasil seria a do Rio de Janeiro’ ”.

Isso é a morte da língua, amigos. É um extermínio das falas regionais na voz dos repórteres e apresentadores. Coração não é mais córa-ção, é côra-ção. Olinda, que o prefeito e todos olindenses chamam de Ó-linda, nos telejornais virou Ô-linda. Mas coisa mais bela não há que a juventude gritando no carnaval “Ó-linda, quero cantar a ti esta canção”. Já Ô-linda é de uma língua artificial, que nem é do sudeste nem, muito menos, do Nordeste. É outra coisa, um ridículo sem fim, tão risível quanto os nordestinos de telenovela, com os sotaques caricaturais em tipos de físico europeu.

O que antes era uma transformação do sotaque, pois na telinha os apresentadores falariam o português “correto”, atingiu algo mais grave: na sua imensa e inesgotável sabedoria, passaram a mudar os nomes dos lugares naturais da região. O tão natural Pernambuco, que dizemos Pér-nambuco, se pronuncia agora como Pêr-nambuco.  E Petrolina, Pé-tró-lina, uma cidade de referência do desenvolvimento local, virou outra coisa: Pê-trô-lina. E mais este “Nóbel” da ortoépia televisiva: de tal maneira mudaram e mudam até os nomes das cidades nordestinas, que, acreditem, eu vi: sabedores que são da tendência regional de transformar o “o” em “u”, um repórter rebatizou a cidade de Juazeiro na Bahia. Virou JÔ-azeiro! O que tem lá a sua lógica: se o povo fala jUazeiro, só podia mesmo ser Jô-azeiro.

Por isso entendemos como o sotaque do povo do Recife virou capítulo da fonética, ou melhor, de uma nova ortofonia: virou a fala correta, que nunca jamais falaram ou falam os nativos da cidade. 

*Trecho do “Dicionário Amoroso do Recife” publicado no Diário de Pernambuco http://www.impresso.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/cadernos/opiniao/2016/12/05/interna_opiniao,158774/sotaque-do-recife-x-fala-no-radio-e-teve.shtml .

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

10 Comentários

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  1. Já observamos êsse fenômeno

    Já observamos êsse fenômeno tambem no Rio Grande do Sul, em 1990. E a tendência não é falar o carioca mas sim o paulistano.

  2. Genesio
    Por favor, explique

    Genesio

    Por favor, explique melhor  o que seria este “falar paulistano” ? Já que a Globo, por exemplo, não tem nada de falar paulistano.

     

    1. É que nos estados que a gente

      É que nos estados que a gente percebeu isso, mais notadamente no Rio Grande do Sul, os apresentadores de programas na televisão tinham mais tendência para pronuncias parecidas com o linguajar dos paulistas / paulistanos do que com as dos cariocas… só isso Ritinha… agora, para nós o mais correto / normal seria cada um falar o seu dialeto…

  3. Padronização…

    … a bola da vez, agora, é o sotaque carioca que carrega no “r” (por ex.: “marritélo” em lugar de martelo ou “pórrita” em lugar de porta), ou nos “s” com som sibilado semelhante ao “X” (por ex.: “caixitelo” em lugar de castelo ou “baixitante” em lugar de bastante.

    Não sei qual é a “forma correta de falar” (se é que exista alguma) mas assim como os nordestinos incomodam-se om o sotaque sulista, o sulista também incomoda-se com sotaques diferentes do seu.

    É uma equação difícil de se resolver e a padronização, definitivamente, não é o caminho.

  4. Abobrinhas

    Hoje a tendência é o paulistês. Desde 1968 na terra dos paulistas vivo misturando ê e é , ó e ô. E a pronúncia de palavras com 2 erres juntos? Uma loucura. Mas o sotaque dos recifenses(nada a ver com os sertanejos) é cruel, às vezes imitativo do carioquês.

  5. Recife e outras amostras do empobrecimento

    Já ouvi sotaque carioquês de amazonense da gema, por uma moça. A gaúcha amiga minha morando lá disse confirmando que isso acontecia… Um amigo ao passar feriadão no Rio voltou com ligeiro sotaque. Na TVU uma moça vinda de pósgraduação em Paris falava com mais sotaque do que um meu ex professoor francês.  A rápida homogeneização e empobrecimento da língua. O moralista eufemismo “Caraca!” já é generalizado mesmo na intimidade, parece denotar que se está atualizado… Em Recife, p. ex., na rádio, começou-se a se falar linguagem de DETRAN nas muitas notícias sobre trânsito (“Retenção”) e “Semáforo” (quando se usava Sinal) e isso “ensina”… contagia parte do povo. Em Porto Alegre, resiste-se e a mídia e jornalistas mantêm “Sinaleira”, assim como autoridade e mídia de São Paulo vi falar “Farol” nesses dias na TV) .”Complicado” substituindo “Difícil” (João Ubaldo Ribeiro fez uma engrraçadíssima crônica exatamente sobre o Complicado). Na imprensa em Recife, escreve-se que autoridade ou jornalista… “dispara(m)”. Jô Soares, Globo, etc no anglicismo (Release) “Soltar” notícia, substituindo o Divulgar notícia. Sem falar nas pessoas, doutores que passam 6 meses em Paris e voltam falando com sotaque. Sugiro uma antiga entrevista de quando VEJA prestava, com José Paulo Paes, Palavrão É Coisa Séria, 3 de abril 1996. O falecido poeta, durante a entrevista, diz que é falta de personalidade (acho que também é de nossas mentes colonizadas).

  6. Goistei do teima

    O único sotaque carregado aceito no vídeo é o carioca. Na Globo News dói no ouvido o “i” no meio de palavras que não tem “i” : impoisto (imposto), teiste (teste) agoisto (agosto) etc… O repórteres de outras praças que entram em rede tem que perder o sotaque, fazendo fono. Uma rara exceção que nunca perdeu o jeito de falar de seu estado : o cearense Francisco José.

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