Transformações no sistema bancário norte-americano e o papel da regulação

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Simone Deos

Do Brasil Debate

A estrutura do sistema bancário dos EUA continuou basicamente tal como se apresentava antes da eclosão da crise de 2008. Na verdade, algumas de suas características cruciais foram acentuadas, como a criação de instituições ‘grandes demais’

Artigo em parceria com a Plataforma Política Social e Centro de Altos Estudos Brasil Século XXI, publicado na Revista Política Social e Desenvolvimento #23

A crise financeira internacional que eclodiu em 2008, bem como as estratégias adotadas para enfrentá-la, intensificaram algumas tendências em curso na dinâmica dos sistemas bancários. Dentre estas, podemos observar o aprofundamento da concentração no setor, associado ao crescimento das grandes holdings bancárias.

Esse processo é estrutural, mas as dimensões da crise acentuaram as preocupações de governos e órgãos de regulação e supervisão com a presença de instituições percebidas como “grandes demais”.

De fato, se o problema das instituições “grandes demais” não só permaneceu como foi agravado após a crise, também permaneceram intocadas e, em alguns casos, foram aprofundadas, outras características do sistema que despertam preocupação.

Assim, a despeito de uma nova regulação sobre o sistema bancário estar em processo de implementação, não só nos Estados Unidos, mas em âmbito internacional, é possível afirmar que não houve qualquer reforma efetiva do sistema que articulasse a nova regulação prudencial à busca de um sistema mais estável e voltado ao financiamento do desenvolvimento.

O que está em curso, efetivamente, é um processo de reregulation without reform of the financial structure (LEVY, 2012, p.36).

Pode-se tomar a organização do sistema financeiro que emergiu após a crise da década de 1930 nos Estados Unidos como ponto de partida para analisar um conjunto de transformações ocorridas ao longo do século 20 e que levaram a um sistema bastante concentrado, complexo e interconectado que desembocou na crise do início do século 21.

O principal objetivo da regulamentação prudencial do Glass-Steagall Act foi proporcionar um sistema de pagamentos seguro, garantindo o valor dos depósitos. Fez isso basicamente limitando as atividades dos bancos comerciais, recebedores de depósitos, a empréstimos comerciais de curto prazo (KREGEL, 2012). O segundo objetivo era proteger indivíduos contra práticas fraudulentas com títulos.

Efetivamente, um longo, incessante e progressivo processo de inovações, movido pela inexorável dinâmica da concorrência intercapitalista, foi desafiando os limites então colocados à atuação das instituições do sistema financeiro, redefinindo-o profundamente.

Dessa forma, o quadro ao final do século 20 nem de longe lembrava a estrutura montada após a crise dos anos 1930. O Gramm-Leach-Bliley Act, ou Financial Services Modernization Act, de 1999, representou o ápice desse movimento que encontrou, na existência de economias de escala e de escopo, justificativa política para a formação de bancos grandes e complexos (DEOS, MENDONÇA EBULLIO, 2013).

De fato, a partir do final dos anos 1970, os reguladores passaram a favorecer as fusões e aquisições (F&A) como forma de solucionar o problema do “excesso” de bancos e ineficiência do sistema nos EUA. Assim, as F&A e o alargamento das atividades desempenhadas pelos bancos cresceram concomitantemente à desregulamentação (DYMSKI, 2012), sendo elas também expressão da desregulamentação.

De 1980 a 2014, o número total de instituições bancárias nos Estados Unidos passou de 17,8 mil para 6,7 mil (2). Essa queda concentrou-se no segmento de instituições de pequeno porte (ativos menores que $100 milhões), tendência que permaneceu após a crise de 2008. Esses dados espelham, sobretudo, o desaparecimento em larga escala das pequenas instituições de atuação local/regional.

Ao mesmo tempo em que diminuiu o total de instituições, um grupo menor passou a deter parcela cada vez maior dos ativos do sistema. No início dos anos 1980, bancos com ativos superiores a US$ 10 bilhões detinham menos de 30% do total de ativos; mas, ao final dos anos 1990, a parcela era de aproximadamente 60%. Em 2014, por sua vez, essas instituições detinham cerca de 80% do total de ativos do sistema (3), o que, mais uma vez, aponta a intensificação do movimento após a crise de 2008, que precipitou uma nova onda de fusões e aquisições.

De fato, e em paralelo à consolidação e concentração do sistema bancário norte-americano, ocorreu algo de maior relevo, uma transformação estrutural, um aumento de complexidade, pois entidades não bancárias (mais precisamente, subsidiárias não bancárias) ligadas a financial holding companies passaram a desempenhar papel crescente no sistema bancário, redefinindo-o estruturalmente.

A resposta dada pelas autoridades americanas à crise de 2007-2008 e às pressões subsequentes por um reforma no sistema veio com o Dodd-Frank Wall Street Reformand Consumer Protection Act (DFA). Em junho de 2009, o DFA foi apresentado pelo Executivo ao Legislativo. Após uma série de modificações, esse “guarda-chuvas”, que definiu os princípios mais amplos da nova regulação sobre o sistema financeiro, foi aprovado pelo Congresso – em julho de 2010 – e desde então está em processo de implementação, num ritmo mais lento do que o originalmente indicado.

O Dodd-Frank Act é um documento extenso, com 16 Seções e centenas de páginas. Contudo, há algum consenso (ANBIMA, 2011) de que seus elementos centrais seriam:

i) Adequação às regras do Acordo de Basileia III, de requerimentos de capital relativamente ao volume de ativos ajustados pelos riscos, tendo os reguladores poderes para ajustar o capital requerido – chamada Emenda Collins. Com efeito, de todos os bancos passou a ser exigido mais e melhor capital, relativamente aos níveis pré-crise, sendo que dos bancos maiores é requerido um colchão de capital superior. Há também requerimentos de liquidez que devem ser cumpridos pelos bancos, em consonância com as novas regras de Basileia III;

ii) Criação do Financial Stability Oversight Council (FSOC), com a responsabilidade de monitorar, em sentido amplo, o sistema financeiro. Ao Conselho, dentre outras tarefas, cabe definir as instituições sistemicamente importantes – aquelas que, enfrentando dificuldades significativas, colocariam em risco o sistema;

iii) Restrição às operações especulativas (proprietary trading) e aplicações em fundos de hedge ou private equity para as instituições que têm acesso aos instrumentos de emprestador de última instância e têm depósitos segurados – chamada Regra Volcker;

iv) Estabelecimento de regras que visam à redução das operações de derivativos de balcão e aumento da transparência desse mercado;

v) Retenção de ao menos 5% do valor dos ativos securitizados nos balanços dos emissores (manter a “pele” em jogo), a fim de reduzir o chamado risco moral e tornar o processo de securitização mais confiável;

vi) Necessidade de divulgação da remuneração dos executivos, bem como de regra de devolução de compensação recebida por desempenho quando ficar estabelecido que o pagamento foi indevido;

vii) Busca de maior transparência para a atuação das agências de rating, que, no limite, poderão responder judicialmente por suas recomendações;

viii) Criação do Consumer Financial Protection Bureau, com o objetivo proteger os consumidores por meio da maior e melhor divulgação de informações sobre as transações financeiras nas quais se envolvem.

Mas, como se podem avaliar o Dodd-Frank Act e, de forma mais específica, a regulação sobre os grandes conglomerados? O primeiro aspecto a ser apontado é que a estrutura do sistema bancário norte-americano continuou basicamente tal como se apresentava antes da eclosão da crise.

Na verdade, algumas de suas características cruciais foram acentuadas, pois desde então as grandes bank holdings tornaram-se ainda maiores e mais complexas. Assim, a conclusão mais imediata e bastante importante é que não foi feita uma reforma estrutural, a qual, por hipótese, teria de levar a um sistema com bancos ao mesmo tempo menores, mais simples, com menor poder político e econômico e mais ao “alcance” da regulação.

Por outro lado, também se deve apontar que a regulação dedicou atenção especial às instituições entendidas como sistemicamente importantes – num movimento que é consistente com a avaliação oficial de que as instituições too big tiveram papel central na crise de 2007-2008.

Evidência disso está na criação do Financial Stability Oversight Council e em sua articulação com o banco central (Fed) para definir e tratar de forma diferenciada as instituições sistemicamente importantes. De fato, houve um aumento das exigências sobre os bancos grandes em várias frentes, notadamente quanto ao montante de capital detido.

Se, por um lado, faz sentido considerar que requerimentos de capital maiores inibem operações mais arriscadas, porque elevam seus custos, por outro lado alguns pontos críticos cruciais devem ser considerados na dinâmica entre reguladores e regulados que se instaura a partir daí.

Em primeiro lugar, aponte-se que se deve esperar que os bancos tendam a adotar estratégias inovadoras para contornar essas restrições, tal como fizeram sob a égide de Basileia I e Basileia II, o que pode suscitar comportamentos ainda mais arriscados.

Em segundo lugar, deve-se considerar que, tal como apontado por Minsky (1986), os riscos são positivamente reavaliados no desenrolar do ciclo econômico. Essa ideia sugere que para um “mesmo” portfolio, ao longo da fase expansiva do ciclo, menos, e não mais, capital será alocado pelos bancos.

Ainda nesse âmbito pode-se acrescentar, em terceiro lugar, a crítica de Tymoigne (2010), para quem há a constante necessidade nos bancos, de ampliar o retorno sobre seus ativos, o que os compele a adotar comportamentos mais arriscados e inovadores.

Por fim, quanto ao argumento de que os colchões de capital podem segurar uma instituição (mesmo grande) com problemas, e evitar sua falência e uma crise sistêmica, a crítica de inspiração Minskyana (MINSKY,1986) é bastante clara e contundente: as grandes crises são desencadeadas a partir de fragilidade sistêmica construída, não a partir de episódios individuais. E nas crises sistêmicas, conforme demonstrado em 2008, os colchões de capital individuais, bastante modestos, serão incapazes de sustentar um sistema amplamente fragilizado.

De fato, esse conjunto de críticas aponta para as fraquezas de um modelo de regulação assentado no par requerimento de capital e autoavaliação dos riscos pelos bancos; e sugere a necessidade de vigilância constante e muito severa, pelos reguladores.

Cabe observar que, de acordo com o arcabouço teórico convencional, conforme aponta criticamente Kregel (2014), a regulação deveria concentrar-se no comportamento destrutivo ou fraudulento de instituições mal gerenciadas, que podem contaminar um sistema saudável.

Contudo, para Minsky (1986), o funcionamento normal das economias capitalistas dotadas de sistemas financeiros desenvolvidos leva à geração de fragilidade sistêmica e, assim, às condições potenciais da crise. A atenção, portanto, deveria estar na evolução das operações “normais” – isto é, não idiossincráticas e não fraudulentas – dos bancos com os outros agentes, financeiros e não financeiros.

O sistema, para Minsky (1986), move-se ciclicamente, e o ciclo é, em si, uma manifestação das mudanças nas estruturas financeiras dominantes ao longo de um espectro de estruturas financeiras possíveis: das mais robustas às mais especulativas, ou frágeis.

Cabe ainda chamar atenção para um aspecto central dessa abordagem: as finanças capitalistas estão em permanente e intenso processo de inovação. Novas operações e instrumentos vão sendo criados e permitem a geração de posturas mais especulativas.

Nesse contexto, regular é uma tarefa extremamente complexa, sob permanente tensão e, por definição, sempre inacabada. Contudo, é crucial regular de forma efetiva, porque, na visão de Minsky (1986), o sistema, deixado a si mesmo, opera no sentido de amplificar as flutuações da economia, e não de amortecê-las.

Nesse quadro, é papel do governo ser lender of last resort nas crises e regulador efetivo em “tempos normais”, para impedir a eclosão de crises que ameacem o sistema, levando ao desmantelamento do tecido econômico e social.

NOTAS

Esse texto foi elaborado com informações disponíveis até o final de 2014. Agradeço a inestimável ajuda de Luma Souza Ramos, mestre em Economia pelo IE/Unicamp e pesquisadora associada ao CERI, em todas as etapas da elaboração desse trabalho.

(2) Fonte dos dados: FDIC

(3) Fonte dos dados: FDIC

Referências

ANBIMA. (2011).Reforma financeira norte-americana: a Lei Dodd-Frank. Rio de Janeiro: Anbima, (Perspectivas, n. 2). Disponível em: <http://www.anbima. com.br/mostra.aspx/?id=1000001317

DEOS, Simone; MENDONÇA, Ana Rosa; BULLIO, Olivia. (2013).Tendências dos sistemas financeiros após a crise e possibilidades de política financeira para a economia brasileira. In: Dimensões Estratégicas do Desenvolvimento Brasileiro: as mudanças mundiais em curso e seus impactos sobre as perspectivas de desenvolvimento do Brasil. Brasília, Centro de Gestão e Estudos Estratégicos. V.1.

DYMSKI, Gary. (2012). O gênio fora da garrafa:a evolução da política Too Big toFail e a estratégia bancária dos Estados Unidos. In: CINTRA, Marcos Antonio Macedo; GOMES, Keiti da Rocha (Orgs.) As Transformações no Sistema Financeiro Internacional [The TransformationsoftheInternational Financial System]. Brasília, IPEA.

KREGEL, Jan.(2012). United States Financial Regulation: The Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act in Current and Historical Perspective.In: CINTRA, Marcos Antonio Macedo; GOMES, Keiti da Rocha (Orgs.) As Transformações no Sistema Financeiro Internacional [The TransformationsoftheInternational Financial System]. Brasília, IPEA.

-–––––. (2014). Minsky and Dynamic Macroprudential Regulation.Public Policy Brief, no. 131.Levy Economics Institute of Bard College.Disponível em: http://www.levyinstitute.org/pubs/ppb_131.pdf

LEVY EconomicsInstitute. (2012). Beyond the Minsky Moment: Where We’ve Been, Why We Can’t Go Back, and the Road Ahead for Financial Reform. Annandale-on-Hudson, Levy Economics Institute of Bard College.Disponívelem: http://www.levyinstitute.org/publications/beyond-the-minsky-moment-where-weve-been-why-we-cant-go-back-and-the-road-ahead-for-financial-reform.

MINSKY, Hyman. (1986). Stabilizing an Unstable Economy. New Haven, Yale University Press.

TYMOIGNE, Eric. (2010).Financial Stability, Regulatory Buffers, and Economic Growth:Some Postrecession Regulatory Implications.Working Paper n.637.Annandale-on-Hudson, Levy Economics Institute of Bard College.Disponível em:http://www.levyinstitute.org/pubs/wp_637.pdf

Simone Deos é professora do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisadora do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais (CERI/Unicamp)

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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