Uma ponte que leva ao passado, por Luiz Kehrle

Os erros na estratégia jurídica da Lava Jato apontados por Erica Gorga são, infelizmente, somente uma parte de erros de concepção mais gerais, e por isso mais graves. 

Uma ponte que leva ao passado  

por Luiz Kehrle[i]

No começo de uma noite de verão, depois de um desfile em carro aberto pelas ruas quentes do Recife, a Rainha Elizabeth II inicia, à luz de velas, uma visita guiada ao Palácio do Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco. A seu lado o Príncipe Phillip empunha com fair play um dos candelabros que emprestam ao set uma luz Barry Lyndon. Em uma panorâmica, vê-se um séquito de autoridades e convidados contritos e orgulhosos, seguindo os passos da rainha, sob o olhar aflito da segurança, que mal pode acreditar que a falta de energia naquele momento seja somente uma contingência.

Esse  plano-sequência poderia estar em um filme do premiado cinema de Pernambuco, mais apropriadamente em um documentário, pois em primeiro de novembro de 1968, às vésperas do AI 5,  a soberana inglesa iniciava no Recife um périplo de dez dias por seis cidades brasileiras, tendo como ponto final o Rio de Janeiro, onde daria início simbólico às obras da ponte Rio-Niterói. Ou seja, prestigiava e celebrava o sucesso do lobby legitimo que levou empresas  inglesas a financiar e liderar a construção da maior ponte brasileira, carreando lucros e prestígio para o Império Britânico. Nada muito diferente do que o Brasil vinha tentando fazer desde o governo Collor e que atingiu seu ápice no governo Lula, especialmente na África e América Latina.

Meio século depois da visita da então jovem senhora, a Bahia se prepara para construir a segunda maior ponte do Brasil, ligando Salvador a Itaparica. Desta vez, nada do charme da realeza. Domina a cena um consórcio chinês que, sem concorrentes, ganhou o direito de elaborar o projeto executivo no espaço de um ano e o de erguer a obra grandiosa em mais quatro.  Porém, muita água vai rolar por baixo e também sobre essa ponte: problemas ambientais, capacidade da Bahia de arcar com a maior parte dos riscos e com o bilhão e meio de Reais previstos como contraparte de um custo total de mais de um bilhão de Euros, além do preço estimado do pedágio previsto, um valor grosseiramente estimado como dez vezes os R$ 4,30 que é cobrado na ponte Rio-Niterói. Águas turbulentas, sem dúvida, mas questões menores no contexto em que a obra deverá ser erguida.

O muitíssimo mais grave é que entre o período de construção das duas grandes pontes o Brasil avançou, tornando-se um grande player mundial na construção civil, com completa capacidade técnica e empresarial  de  construir uma obra como essa ponte da Bahia . No entanto,  um apagão de consequências muitíssimo  mais graves  e permanentes  do que aquele do Recife impediu  que isso ocorresse. Esse apagão chama-se Lava Jato.

Ao  tomar a  fracassada  Mani Polite como modelo e utilizar métodos espúrios de condução, a mais devastadora sequela  da Lava Jato foi, tal sua congênere italiana, a contribuição para o desarranjo  das instituições e descredito das atividades empresarial e  política, em um ambiente de  crescente da suspeição de parcialidade da justiça. Todavia, as consequências econômicas também foram, e continuam sendo, dramáticas.

Em 2014, A Construtora Norberto Odebrecht ocupava a 13ª posição entre as 1000 maiores empresas do Brasil, enquanto a Queiroz Galvão encontrava-se  em 106º lugar;  em 2018 ocupavam, respectivamente as posições 542 e 275. Destino parecido  tiveram as empresas Andrade Gutierrez, OAS Engenharia , Camargo Correia, UTC e Constran, todas na lista das mil maiores de 2014 e nenhuma delas na de 2018[ii]. Todas grandes players e alvos preferenciais da Lava a Jato. Todas entre os candidatos naturais para, pelo menos em consórcios , construírem a ponte para Itaparica. Mas todas fora da licitação ganha, sem concorrentes, pela empresa chinesa. Ao contratar uma empresa estrangeira, voltamos à época da ponte Rio-Niterói. Retrocedemos meio século.

Segundo  o Anuário Digital da revista o   Empreiteiro ,  as 100 maiores construtoras  do Brasil passaram de um faturamento de R$ 107,5 bilhões em 2013 para R$ 26,2 bilhões em 2018[iii]. Por sua vez, os dados de balanço das oito maiores construtoras brasileiras, que estiveram no coração da Lava Jato, mostram, segundo O Valor Empresas, uma queda de cerca de  50 bilhões na  Receita Liquida, passando de  60,4 bilhões em 2013 para 10,7 bilhões em 2018. O comportamento do lucro no mesmo período é ainda mais dramático, caindo de valor positivo de 3,3 bilhões para 3,4 bilhões negativos. E o desemprego gerado por essa desaceleração foi e continua sendo gigantesco, como seria de esperar : dados do Sindicato Nacional da Construção Pesada apontam para uma perda de um milhão de empregos formais entre 2014 e 2019, indicando que  em cada lote de dez empregos formais perdidos  cerca de quatro o foram na indústria de Construção[iv].

Talvez se pudesse argumentar que a penalização das empresas nacionais pela  Lava  Jato resulta de uma terapia que infringe dores ao paciente no presente com vistas à sua recuperação plena no futuro. Todavia, a experiencia internacional de combate a corrupção no mundo desenvolvido mostra que essa argumentação é falsa. O combate à corrupção pode ser sendo feito sem o sacrifício das empresas e não razoes para que o mesmo não tenha ocorrido no Brasil.  Érica Gorga, com sua solida formação em Direito Empresarial e experiencia de ex  diretora do Centro de Direito Empresarial de Yale, mostrou  que no caso da Lava Jato os remédios mal aplicados acarretaram gravíssimos efeitos colaterais para as empresas e não aos responsáveis pela insidiosa corrupção que arquitetaram. Em longo artigo publicado no caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo, que teve menos repercussão do que mereceria, provou  que o ordenamento jurídico nacional exigia que a responsabilização pelos atos espúrios da Odebrecht incidisse sobre a Kieppe Participações, que congregava  as ações de Emilio e Marcelo Odebrecht,  com quem o Ministerio Publico deveria ter firmado acordo de leniência,  idealmente impondo aos Odebrecht a alienação do controle do Grupo.[v]

A penalização dos dois principais controladores poderia ter evitado que bancos públicos suportassem o prejuízo com empréstimos, sem garantias reais, na ordem de  R$ 17 bilhões. No caso da Petrobras, a incúria da Lava Jato chegaria a risível, não fosse trágica. O acordo de leniência com a Braskem levou a Petrobras , por conta da participação de 36,15% no capital daquela empresa,  a arcar com 1,12 bilhões  de penalidades que deveriam ter sido impostas à família Odebrecht, não à petroleira. Os 264 milhoes de Reais alardeados  como recuperação da Petrobras no acordo da Brasken foram  ,no final das contas,  mais uma ato de foguetearia da Lava Jato.

Os erros na estratégia jurídica da Lava Jato apontados por Erica Gorga são, infelizmente, somente uma parte de erros de concepção mais gerais, e por isso mais graves.  Quase não é crível que a tentativa de replicar no Brasil uma operação sabidamente frustrada  não tivesse passado por uma aprofundada analise estratégica, que levasse em conta as consequências econômica de suas ações. Não transparece das justificativas da operação sequer traços de uma visão macroeconômica que leve minimamente em conta a noção de efeito  multiplicador sobre o PIB do corte nos investimentos, da redução da receita  e perda da massa salarial no setor petroleiro e no segmento de construção, , entre outros, afetados por  suas ações.

Do ponto de vista microeconômico, a visão de empresa da Lava  Jato é no mínimo limitada e atrasada. Sua concepção de que as empresas se confundem com seus controladores está fortemente fundada em  ideias que Friedman defendeu  em 1970[vi], e que hoje  são postas em cheque pelo desenvolvimento da moderna teoria da firma. As discussões sobre a ampliação do objetivo da  empresa da mera satisfação dos  shareholders para a dos  stakeholders parecem totalmente desconhecidas pelos formuladores da operação[vii]. Assim como  todo o avanço  teórico que gerou a visão moderna de empresa, longe do  enfoque centrado exclusivamente em sua  função de produção[viii].

Quando se analisam as inferidas  bases teóricas da Lava Jato, no que concerne à sua fundamentação econômica, parece, tal como no caso da competitividade das construtoras brasileiras pós Lava Jato,  que embarcamos numa viagem de volta  aos  anos setenta. Recuo a um tempo escuro, sem sequer candelabros a iluminá-lo.

[i] Professor de Economia de Empresas da UFRPE,  Doutor em Economia de Empresas pela FGV-SP e Engenheiro Civil pela UFPE.

[ii] Dados elaborados a partir do rankink anual das 1000 maiores empresas do Brasil, da publicação Valor 1000-  publicação anual do Valor Economico ,  edições de  2014 a 2019.

[iii]  Ranking da Engenharia Brasileira em 2019; Revista o Empreiteiro – julho- agosto de 2019.

 

[iv] Jornal Valor Econômico , 29, 30 de junho e 1º de julho de 2019

[v] Erica Gorga: Lava a Jato Cobra Conta de Quem Não Deve. Caderno Ilustrissima da Folha de São Paulo, 4 de outubro de 2019

[vi] Milton Friedman: The Social Responsabilty of Business Is To Increase its Profits. New York Times, sep/13/ 1970.

[vii] Uma discussão organizada e sem detalhes técnicos do problema da responsabilidade social da empresa, onde é analisado o conflito shareholders versus stakeholders,  pode ser encontrada em Tirole, Jean : Economics for the Common Good,  capítulo sete, intitulado The Governance and Social Responsability of Business. Pag 174-191. Princton University Press, 2017.

[viii] Um marco da  moderna teoria  da firma é o trabalho de Coase,R.H,  The Nature of the Firm, publicado em 1937. Desde então essa teoria vem agregando novas vertentes, entre elas as baseadas em  teorias de governança, informação incompleta, contratos, regulação , comportamento do consumidor,  entre os mais importantes.  Muitos dos principais pesquisadores dessas novas áreas foram ganhadores do Nobel em Economia, a maioria deles no século XXI.

Redação

4 Comentários

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  1. Esse é o problema do Brasil.
    A visão ingênua de sua elite intermediária (de classe média).
    A operação Lava Jato foi altamente eficiente. Um esplendoroso sucesso. Não precisou dar um tiro ou colocar os tanques na rua. Nada disso. Foi totalmente clean. Totalmente dentro da legalidade.

    Dentro da legalidade derrubou um governo popular e nacional-desenvolvimentista. Comparem isso com o suicídio do Getúlio, a campanha da Legalidade do Brizola, o Golpe no Jango?

    Depois da Lava Jato, a CLT foi quase posta abaixo. Lembram da capa do Globo? O 13o vai acabar com o Brasil!
    A Petrobras está sendo vendida em fatias. Os campos de petróleo estão sendo liquidados na bacia das almas para os capitais estrangeiros.
    O peso da Previdência está sendo tirado das costas do Estado, para ele ter liquidez e solvência para honrar os juros da dívida pública.
    A Embraer foi vendida e o projeto do submarino nuclear está em banho-maria, podendo ser abandonado. Acabando assim, com o risco de qualquer ação militar aérea e naval independente do Brasil.
    O lucro dos bancos vem batendo recorde atrás de recorde desde a Lava Jato.
    A bolsa explodindo, com a previsão da redução dos custos trabalhistas e com as fusões e incorporações. Menos mercado, com proporcionalmente mais concentração e menor custo, é igual a maior taxa de lucro.

    E tem gente que acha que a Lava Jato errou. Pecou. Ou sei lá mais o que?

    A Lava Jato acertou na mosca.
    É um case de absoluto sucesso.

    Não para a maioria do povo brasileiro, logicamente, mas não é disso que se trata. Trata-se de business. International business. Man.

    Ah, para encerrar. Qual foi o primeiro ato do governo Temer pós “impeachment”? Dar aumento para os membros do Judiciário e MP. Tutti buona gente!

    E a classe média ilustrada procurando identificar os erros da Lava Jato. Em que ela poderia ter melhorado. Risos.

    Por que somos tão ingênuos. Por que temos essa visão idealizada da realidade política?

    1. Para completar.
      A eficiência da Lava Jato foi recolocar o Brasil no rumo de um projeto financista primário exportador – fundamentado na concentração de renda interna e na dependência externa.

  2. Esperar que gente como o moro, o dalanhol e sua trempe tenham tido algum formação ou informação além daquela estritamente exigida pelo edital de concurso para os seus respectivos cargos é ser, no mínimo, ingênuo.
    As únicas matérias de direito que eles conhecem é direito penal e direito processual penal, em nível básico, sem conseguirem associar esse conhecimento sequer com o direito constitucional.
    Ah! sim, e o dalanhol tem curso básico de power point.

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