Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri
Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora
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Um projeto chamado Brasil, por Dora Incontri

Mas o amor, como dizia o grande educador Pestalozzi, tem que ser vidente. Enxergar com lucidez o objeto amado. Fora do domínio do mito, sim, o Brasil tem um potencial incrível para ser uma grande nação

Um projeto chamado Brasil, por Dora Incontri

Há um livro que corre o movimento espírita brasileiro, que ressoou miticamente em muitos adeptos, que li na adolescência, mas já então senti alguma estranheza: Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho, pelo Espírito Humberto de Campos, que era recém-desencarnado, pela psicografia de Chico Xavier. Essa obra tem provocado muito debate entre os espíritas, entre aqueles que se deixam conquistar por sua linguagem ufanista e melosa e os que criticam o seu conservadorismo e seu patriotismo piegas. Estou entre aqueles que, embora considere Chico Xavier um grande médium, não me obrigo, seguindo mesmo os critérios de Kardec, a aceitar tudo o que veio de sua pena ou de sua boca. E esse é um dos livros que considero muito questionável e problemático, porque parece justificar todas as nossas injustiças e coloca o Brasil num pedestal de ufanismo nacionalista, que combina aliás com o período histórico em que foi escrito, em plena ditadura do Estado Novo, de Getúlio.

Entretanto, esse tema me remete a outras mitificações relacionadas ao Brasil – tantas vezes chamado de “país do futuro” ou identificado por alguns portugueses que aqui chegaram como a utópica ilha Hy Brasil – de que há ainda hoje referências entre círculos espiritualistas – que era uma espécie de terra prometida e segundo alguns teria mesmo inspirado o nome que recebemos. Isso contraria a tradicional história da derivação do nome do pau-Brasil.

Seja como for, recorrentemente temos assumido essa aura de terra que poderia ser o “celeiro do mundo”, o porto de salvação e outras bandeiras exaltadas, que podem nos comover.

Embora como anarquista eu tenda à visão de “nem pátria, nem patrão”, porque toda pátria é constituída de um poder instituído, de exército, de um Estado e de uma justiça, que sempre está em proteção dos mais fortes e raramente dos mais fracos – é impossível deixar de amar e se identificar com a terra em que nascemos e sofrermos por causa de seu destino e sonharmos com um futuro melhor.

Mas o amor, como dizia o grande educador Pestalozzi, tem que ser vidente. Enxergar com lucidez o objeto amado. Fora do domínio do mito, sim, o Brasil tem um potencial incrível para ser uma grande nação: recursos naturais, natureza exuberante, vastidão continental em que todos os habitantes falam a mesma língua e têm laços comuns, arte riquíssima, a melhor música popular do mundo… enfim. Mas também tem traços sombrios: uma escravidão mal resolvida e que ainda continua discriminando e matando negros e pobres, uma desigualdade social profunda, uma elite descomprometida com o bem público, retrógrada, racista e classista, em sua maioria; a corrupção endêmica dos políticos, uma oligarquia que se agarra ao poder desde o tempo das capitanias hereditárias, uma religiosidade conservadora em sua maior parte, o que inclui infelizmente os espíritas e agora o exército de evangélicos que tomaram o país de assalto… e outras tantas mazelas históricas.

Penso tudo isso num momento em que estamos assistindo a um desmonte do Brasil: a educação, que nunca atingiu o patamar desejável, plural, democrático, amplo e de qualidade que seria o ideal para o desenvolvimento do povo, está sendo ferida de morte; a saúde desmontada; a previdência ameaçada; a soberania entregue de bandeja; nossos recursos leiloados a preço de banana, a terra envenenada, os índios perseguidos… e os direitos humanos esgarçados por uma justiça parcial, por um Estado invadido por um governo aliado de milicianos… um momento trágico na vida nacional.

Como se encaixam em nossa mente e nosso coração, o sonho de um Brasil bom, justo, fraterno – mas sem os enfeites mágicos da mitificação salvacionista – com o momento em que vivemos?

Vi por esses dias uma frase do nosso brilhante Gilberto Gil que me pegou no fígado: “Esboça-se, pela primeira vez em nossa história, o temor de que a redenção brasileira esteja lidando, não apenas com mais um adiamento, mas com o fantasma de uma terrível impossibilidade. Estamos com medo do futuro. Isso é inédito.”

Lucidez é preciso, esperança é preciso, ação é preciso.

Lucidez para reconhecermos as nossas doenças atuais e centenárias; para sabermos que um dos fatores de nossa desgraça atual se deve justamente às nossas riquezas, como a Amazônia, a água, o petróleo e a nosso potencial de liderança no mundo – tudo isso provocando a ganância e a rivalidade e a posse desavergonhada do Império Americano, para quem o atual desgoverno bate continência… Lucidez para nos unirmos os que têm lucidez e fazermos uma grande frente nacional, para deter o país no rumo do abismo.

Esperança para confiarmos que as forças positivas do povo, da terra (e nós que temos alguma visão de transcendência, da espiritualidade) consigam se erguer acima, além das forças retrógradas, de ódio…

Ação, para fazermos cada qual o que nos compete, mantendo a cabeça erguida e a fala direta, assertiva, esclarecedora no micro e no macro espaço de nossas relações, resistindo, se opondo, para formarmos juntos uma barreira para o trator que está passando por cima de quase tudo que temos (ou tínhamos?) de bom, embora saibamos que todo bom é naturalmente imperfeito.

Hora difícil, tensa, em que orações podem ajudar os que acreditam, mas ações devem preencher nosso dia a dia. Não adianta esperar algum salvador, é preciso que todos nós nos tornemos aqueles que façam o Brasil acontecer, como um projeto de dignidade, respeito, solidariedade e paz para todos e todas.

Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri

Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora

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