A aplicação do Código de Defesa do Consumidor para a mídia

Comentário ao post “O ataque de Augusto Nunes a Lula e os limites da mídia

Diante desse quadro, inevitavelmente surge a pergunta: Fazer o quê, se o principal interessado, Lula, não reclama? Não age na justiça para impedir os achaques aos seus direitos de personalidade?

A liberdade de imprensa não dá ao jornal o direito de esculhambar impunemente com as pessoas assim não. Não existe esse direito. Se praticou ofensas ao direito de personalidade do cidadão, pode e deve responder por isso.

Aliás, eu nem li esse artigo de Augusto Nunes a que o post se refere. Mas já li outros em que ele é extremamente virulento com as palavras quando fala de Lula e do PT.

A crítica política não é proibida. Mas tudo tem limites. O problema é que, pelo menos que eu saiba, Lula nunca tomou providências neste sentido, talvez porque ache que se assim fizer, estará chamando atenção para uma coisa que não merece. Daí ele prefere ignorar.

Incomoda aos outros leitores, que particularmente gostam de Lula. Mas, pela visão jurídica que restou consagrada nos últimos temposassentada inclusive depois dos avanços conseguidos na área de responsabilidade civil, não adianta muita coisa esse incômodo se o principal interessado em fazer frente aos ataques não toma nenhuma providência.

Mas nem tudo pode estar perdido hehehe.

Outro dia discutiu-se aqui a aplicação do CDC em se tratando do “produto” matérias jornalísticas. Ou seja, as matérias jornalísticas seriam produtos comercializados no mercado, assim como o jornalismo também teria um aspecto de serviço disponibilizado no mercado consumidor.

O tema foi muito interessante a até hoje eu penso nisso. Neste caso, pode-se levantar a tese de que, quando um jornal publica um artigo ou matéria ignominiosa, de baixo nível, que ataca agressivamente e de forma vil uma determinada pessoa, que por acaso foi presidente da República extremamente popular, não é apenas a pessoa do presidente em questão que pode se sentir ofendido com os ataquesmas também os consumidores do órgão jornalístico no qual o produto jornalístico foi comercializadoprincipalmente aqueles, dentre os consumidores que compraram a edição do jornal ou revista, inadvertidamente ou não, não vem ao caso, que são ou foram eleitores do presidente que teve seus direitos de personalidade atacados.

Nessa linha de argumentação, ao atacar a pessoa do político, líder de massas, de uma forma grosseira e que afronta inúmeras regras éticas do bom jornalismo, assim como inúmeras normas do ordenamento jurídico brasileiro, os danos causados à imagem, à honra, à dignidade e ao nome do atacado transbordam os limites meramente individuais e passam a atingir também toda uma coletividade de consumidores, que, pela teoria do dano em ricochete, podem vir a ser considerados também vítimas do evento, na categoria de vítimas de um autêntico acidente de consumo (art. 17 do CDC).

Essa teoria quebraria uma série de paradigmas que vigoram na teoria da responsabilidade civil, já que implementaria uma mudança no clássico entendimento de que direitos de personalidade só podem ser reparados, diante de uma violação, mediante ação proposta pelo seu titular imediato.

No entanto, seria o caso de começarmos a falar de um novo direito coletivo, se colocarmos as coisas dentro do direito do consumidor, qual seja, o direito coletivo do consumidor de produtos jornalísticos não se submeter a textos de baixo nível e que agridem a moral coletiva quando atacam, de forma vil, violenta, imoral, os direitos de personalidade da pessoa humana.

Essa tese possui, inclusive, respaldo constitucional, pois o Brasil se constitui num Estado Democrático de Direito que tem como objetivos construir uma sociedade livre, justa e solidária e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, incisos I e IV, da Constituição Federal).

Nessa linha, um consumidor que se sinta também atingido por um texto jornalístico agressivo, que viole direitos de personalidade de uma determinada pessoa, pode propor uma ação de reparação de danos morais, o que está perfeitamente coadunado com os princípios constitucionais anteriormente citados, haja vista que essa atitude claramente defende a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (o consumidor estaria sendo solidário à pessoa vítima dos ataques), além de tal atitude claramente promover o bem de todos, evitando preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 

Acredito que essa tese possui fundamento jurídico-constitucional para passar a ser aceita pelos Tribunais brasileiros. Não me parece nada razoável que os consumidores de jornais e revistas, enfim, dos órgãos de imprensa em geral, sejam obrigados a se submeter a matérias que ofendem gravemente os direitos humanos. Esse tipo de exposição é nociva e totalmente contrária aos objetivos e fundamentos do Estado Democrático de Direito em que se constitui o Brasil.

A situação está muito longe de se restringir à esfera individual privada da pessoa humana que foi efetivamente atacada pela matéria jornalística. Passa a ser de interesse público que um jornal não tenha esse direito, pois é perfeitamente possível que um leitor se sinta pessoalmente ofendido por ter sido submetido à leitura de um texto ignominioso, violento, que difunde valores condenados pela sociedade de uma forma geral, não condizentes com os padrões civilizados que a sociedade brasileira, ao menos, busca alcançar para si. O direito de informar de um órgão de imprensa não pode contrariar esses princípios. E como tais órgãos possuem alcance amplo, atingem muitas pessoas, maior deve ser a responsabilidade no trato da informação. A liberdade de imprensa, portanto, NÃO está acima disso.

O constitucionalista Daniel Sarmento obteve a sua tese de doutorado tratando de tema similar a esse quando falou dos efeitos horizontais da teoria dos direitos humanos, os quais devem ser observados também nas relações privadas. Ou seja, pessoas privadas também devem se submeter à teoria dos direitos humanos e não só o Estado. O livro se chama “Direitos Fundamentais e Relações Privadas” e é um dos mais brilhantes estudos do novo constitucionalismo brasileiro, cujo um dos seus maiores expoentes é precisamente o carioca Daniel Sarmento, que foi pupilo de Barroso na UERJ (Sarmento é também procurador da república, pelo menos era quando eu assisti certa feita a uma palestra dele).

Luis Nassif

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