A pós-verdade matou Dona Marisa

Jornal GGN

 

Eu estava a ler sobre o jornalismo e a “pós-verdade”, quando deparei com a notícia da morte da companheira de Lula nesta vida por tantos anos. A passagem da ex-primeira Dama Maria Letícia (nascida Maria Letícia Rocco Casa), foi um choque para mim. Ela foi uma senhora muito tímida e discreta, reconhecida pelo público e imprensa como a “mulher do Lula”.

Dona Marisa (1950-2017) foi uma vítima inocente da pós-verdade, o neologismo mais famoso de 2016, de acordo com o Dicionário Oxford. O que é a pós-verdade? Um outro nome para a mentira publicada? O quanto sabemos nós, pobres leigos, desta nova forma de narrar os fatos? A pós-verdade é a negação da narrativa factual do jornalismo que “tenta moldar a opinião pública através do apelo à emoção e crenças pessoais”, ensinou o especialista em gestão e administração da Fundação Getúlio Vargas Thomas Wood Jr (25/1).

A definição explica bem o modo como a população é saturada diariamente por um universo de desinformação onde os fatos importam menos que os sentimentos sobre determinados assuntos ou temas. O texto de Wood é bom, mas em outro artigo, André Cabette Fábio realizou a proeza de extrair uma grande história de um dicionário. Estes sempre foram fontes de complementação. Mas via de regra estão muito longe de uma ideal fonte primaria. Ou servirem de espinha dorsal para um texto de jornal. André Cabette virou o jogo e criou uma exceção à regra.

Há ocasiões em que tudo muda, e cabe ao jornalista encontrar (ou não ) a brecha para informar o publico sobre o que acontece no mudo real em oportunidades únicas, como a que o Dicionário Oxford proporciona todos os anos ao escolher a nova palavra a ser adicionada ao léxico. Em 2016, a palavra escolhida foi “pós-verdade”. O dicionário (que é um departamento da Universidade de Oxford), explicou muito bem o porquê da escolha desta palavra, qual sua relação com o mundo das notícias e com a vida em sociedade em geral. O texto de André Cabette lançou luz sobre muito do que acontece no Brasil contemporâneo, imerso em um espetáculo de factóides que zombam de todo tipo de comprovação (jornal digital “Nexo”,16/11)

Em 2016, explicou André, a pós-verdade tentou provar que Barack Obama criou o ISIS e que a Inglaterra pagava 470 milhões de dólares por semana para permanecer na União Européia. Dois absurdos que iludiram milhões. O Globo, A Folha de São Paulo e o Estadão abraçaram a moda e alimentaram entre o povo a crença que Lula e sua esposa eram de fato donos de um sítio em Atibaia e uma casa no Guarujá. Muita gente foi convencida, sem prova alguma, da validade dessas acusações. Dona Letícia não vai ter a chance de provar sua inocência e isso é duro de aceitar.

O termo foi admitido pelos lexicógrafos do Oxford como adjetivo em 2016, e foi empregado pela primeira vez em 1992 “pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich”. O dicionário foi preciso com deveria ser em sua concepção original. E ainda ampliou a explicação: a pós-verdade é um elemento crucial no discurso político contemporâneo, “agora frequentemente usado por grandes publicações sem a necessidade de esclarecimento ou definição em suas manchetes”. Em outras palavras, chegou a hora das notícias publicadas sem qualquer verificação na imprensa hegemônica. Argumentações deste tipo proliferaram nas notícias brasileiras em 2016.

Como o caso dos supostos imóveis de Lula. Pouco importa se Dona Marisa apenas exerceu seu legítimo direito de sonhar adquirir um imóvel. Ela fez uma opção de compra e depois desistiu. Onde está o crime? Para seus acusadores e milhões de brasileiros a inconsistência das “provas” nada significa: acreditar com paixão e ódio que Dona Marisa e Lula ocultaram dinheiro através de uma posse simulada de imóveis é mais importante. E uma fantasia impossível de ser comprovada. Mas não importa, desde que o sentimento público possa ser objeto de manipulação pela “pós-verdade”. O importante não é provar a culpa de Lula, mas forçar a crença na existência dela.

Lula teve uma vida dura e foi muito bem preparado para ser um político. Acabou melhor que o projeto original: aprendeu a sofrer e a resistir às pressões de uma sociedade injusta que o vem rejeitando há décadas. Dona Marisa era delicada. Nunca esteve a vontade com a imprensa ou grandes audiências. Parecia angustiada e nervosa, quando obrigada a falar para multidões. Seu mal-estar era visível para quem se dispôs a observar o comportamento da esposa de um dos políticos mais marcantes de nossa época.

O cerco da mídia machucou Lula, mas  abateu Dona Letícia de forma muito mais grave. Quando o Ministério Público a transformou em ré, ela não resistiu. É duro ser qualificado como criminoso e inimigo do bem-comum, sem nunca na realidade ter sido um deles. Sem jamais ter desfrutado das benesses publicadas na imprensa “pós-verdadeira” e pós-factual. A pós-verdade não se importa com inocentes: são aborrecidos, levam uma vida centrada em si ou na família, não aumentam circulação de jornais ou o movimento nas páginas da web.

Uma acusação pode mudar tudo. E ela veio, impiedosa. Lula perdeu sua companheira de caminhada e milhões estão solidários a ele. Outros não. Mas todos sabem o quão duro é não poder chorar uma perda quando ainda temos muita luta pela frente. Não há tempo para prantos e nada pode ser mais sofrido que isto: não poder chorar por quem se amou a vida toda. Não conheço sentimento mais opressor que este. A verdade não traz consolo, e quem acredita em seu poder libertador é um inocente. Por isto a pós-verdade viceja como flor maligna em nosso pântano de corrupção: ela é atraente, espetacular e mentirosa.

Ela é a imagem mais perfeita do Brasil, com sua imprensa manipuladora e seus políticos imundos. Alimenta- se do ódio e das emoções viscerais mais baixas. É a voz da mentira a clamar vítimas para aplacar a ira do deus dinheiro. A pós -verdade é a maior amiga dos corruptos e suas grandes fortunas. Através dela, a imprensa justifica o mundo cruel que nos massacra a cada dia. A pós-verdade (ou mentira), uma vez estabelecida, traz a impossibilidade da comunicação, e com ela a violência.

Ubíqua em nossos dias, ela pode ser encontrada nas redes sociais, nos blogues e na grande imprensa. Dominou as narrativas da direita, conseguiu atrair parte da esquerda e aponta o caminho da morte para quem não aceita julgamentos e condenações sem provas: crença é a palavra-chave aqui. O Ministério Publico não encontrou provas concretas contra Lula e seus supostos imóveis. Mas sua convicção que poderá obtê-las um dia (quem sabe) o faz prosseguir além de sua obrigação como instituição de defesa do interesse público.

O pior da pós-verdade é que ela borra a linha que separa realidade da crença apoiada em arroubos de paixão. Passamos a desconfiar de nossos próprios discursos e a nos auto-censurar. Em tempos de pós-verdade nem os fatos concretos suportam bem nossas narrativas. A todo momento nos perguntamos se nossas analises não são apenas um reflexo, ou uma reação emotiva a uma provocação de um adversário. E se este for o caso, nosso discurso também não seria também, pelo menos em parte, pós-verdade? Uma reação emocional com pouco fundamento factual?

Não existe “pós-verdade”, caro(a) leitor(a). Além da realidade dos fatos estão a metafísica e as especulações, alheias a qualquer tipo de verificação . Elas não informam nada, mas são instrumentais na manipulação da opinião pública e da consciência de uma determinada população. Seu discurso fantástico, seu apelo emocional e descomprometido dos fatos espelham como nenhum outro a loucura coletiva que vivemos hoje no Brasil na imprensa e na política.

Redação

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