A Alemanha e sua segunda incapacidade para o luto: a matança na Palestina e o nazi-fascismo na América do Sul
por Frederico Füllgraf
Desde o atentado do Hamas, de 7 de outubro de 2023 – com a morte estimada de 1.200 pessoas em Israel e o sequestro de 230 civis e militares – até o início de março de 2024, a operação punitiva israelense em Gaza matou cerca de 30.000 palestinos, 70% dos quais são mulheres e crianças, deixou 17.000 crianças órfãs de mãe e pai e 7.000 mortos desaparecidos debaixo de escombros. A fúria israelense também aniquilou a vida de 300 profissionais do setor de Saúde, além de 35 funcionários da Defesa Civil, 110 jornalistas e 136 funcionários da Agência de Refugiados das Nações Unidas (UNRWA), entre eles vários estrangeiros.
Vitimando sobretudo civis, o caráter terrorista do atentado do Hamas de 7/10/2023 foi indiscutível. Apontar o contexto do atentado não o desculpa, mas explica que a fatídica data foi antecedida por 75 anos de invasão e ocupação da Palestina por Israel, mediante a Nakba de 1948, isto é, a expulsão catastrófica de 750.000 palestinos de seu território, usurpado ao longo de sete décadas por 700.000 mil colonos israelenses. No entanto, e a pretexto do atentado do Hamas, a tragédia palestina agrava-se em 2024 com uma “Nakba-2”, muito mais feroz e desumanizadora: o encurralamento e confinamento de 1,2 milhão de palestinos no extremo sul de Gaza, condenados ao extermínio pelas armas israelenses, o desamparo, o desespero, a fome e as doenças.
A morte brutal, em 29/02/2024, de 112 e o ferimento de 760 civis palestinos indefesos, metralhados pelo exército israelense enquanto abordavam caminhões de ajuda alimentar e humanitária em Gaza, expôs em tempo real, com imagens arduamente metabolizáveis por olhos e mente humanas, um dos mais hediondos crimes de guerra de todos os tempos. O massacre desnudou definitivamente o status de Israel como delinquente do Direito Internacional e Humanitário, isolando definitivamente o país perante a comunidade das nações.
Dois países contribuíram de modo significativo para a permanente beligerância e a ação punitiva em curso, mediante o envio de armas e a blindagem política e ideológica de Israel: os EUA e a Alemanha, país de origem e causa de vergonha do autor do presente texto.
Liderando o bloco da União Europeia, na Alemanha reina um clima tóxico desde outubro de 2023, marcado por silêncio sobre a devastação de Gaza, questionamento do número de palestinos massacrados, censura da palavra e cancelamento em massa de eventos culturais, até mesmo envolvendo artistas e intelectuais judeus que expressam críticas ao regime de Benjamin Netanyahu e comoção ou empatia pró-Palestina.
Na Alemanha, o ambiente se instalou com os discursos do Primeiro-Ministro Olaf Scholz e do Vice-Primeiro-Ministro Robert Habeck; o primeiro enfatizando o “apoio incondicional a Israel” e o segundo redefinindo-o como “Razão de Estado”, exaltação empregada originalmente pela ex-Primeira-Ministra Angela Merkel. O binômio desencadeou uma campanha transversal, unindo a coalizão governista (social-democratas, verdes e liberais), os partidos de oposição – incluindo o AfD, de extrema-direita – os meios de comunicação e as redes sociais alemãs na denúncia de um suposto “antissemitismo”, que geralmente mal esconde xenofobia contra imigrantes, ódio islamofóbico e anti-palestino.
Causaram estarrecimento em escala internacional as afirmações de Scholz, proferidas entre no final de 2023, definindo Israel como país “comprometido com os direitos humanos, o direito internacional e que age em conformidade nas suas ações”; atributos desmentidos 24/7 em tempo real pela matança na faixa de Gaza, com a sistemática violação das normas vigentes do Direito Humanitário e Internacional.
“Cancelamento” em massa e assassinatos de reputação
A Alemanha, por tradição e investimentos, é reconhecida como um dos principais centros da produção cultural em todo mundo. Entre 2022 e 2023, os investimentos em Cultura dos 16 Estados da federação, dos municípios e do governo federal totalizaram 14,47 bilhões de Euros. Deste total, somente Berlim, a capital federal com seus 4,0 milhões de habitantes, dispôs de aproximadamente 1 bilhão de Euros para gastar em cultura, sendo considerada, há anos, a top spot da Cultura na Europa, à frente de Paris e Londres, com mais do dobro de população. Nos últimos anos, essa diversidade e cosmopolitismo não
deixaram de atrair centenas de jovens estudantes, artistas e produtores culturais israelenses, que se sentem inseguros e carentes de espaço em seu próprio país.
Mas desde outubro de 2023, nesse “olimpo das artes, do debate e das luzes”, reinam o dedo em riste, o assédio, o denuncismo e o “cancelamento” de quem ousa criticar a ferocidade de Israel contra a Palestina.
Uma semana após o ataque do Hamas, a Feira Internacional do Livro de Frankfurt, a maior do mundo, cancelou a cerimônia de entrega de um prêmio à escritora palestina Adania Shibli. A feira explicou, estar “preocupada com a ressonância da premiação no contexto da guerra”. No mesmo evento, o filósofo Slavoj Žižek foi acusado de “relativizar o Hamas”, apenas porque salientou a importância de ouvir ambos os lados do conflito.
Dias antes, em Baden-Württemberg, no sudoeste alemão, o delegado regional para monitoramento de antissemitismo, Michael Blume, ordenou o cancelamento da exposição “A Nakba – Fuga e Expulsão dos palestinos”, que documentava a catástrofe da expropriação violenta de 750.000 palestinos de seu território em 1948, por milícias israelenses.
Dias depois, em Munique, um incidente aviltou a liberdade de expressão de um artista de renome: a Academia de Belas Artes cancelou um workshop do músico chileno-estadunidense Nicolás Jaar devido a mera postagem no Instagram, na qual o músico criticava o Governo Joe Biden.
No final de outubro, a jovem ativista do clima, Greta Thunberg, foi alvo de um episódio grotesco. Segurando uma pequena faixa com os dizeres “Stand with Gaza” (“Esteja do lado de Gaza”), Thunberg postara uma foto sua no X (ex-Twitter), cuja legenda advertia: “… O mundo precisa se manifestar e apelar a um cessar-fogo imediato, justiça e liberdade para os palestinos e todos os civis afetados”. Às suas costas, na foto, viam-se os contornos de um polvo de pelúcia azul, tornado personagem de uma teoria da
conspiração. Na acepção imbecilizada de seus críticos, a jovem havia tomado “partido do Hamas” e difundido um “código secreto nazista”. Não tardou e a conta oficial do governo israelense no X também aderiu às “denúncias”. Mas então ocorreu o inevitável backlash.
Com outro tweet, Thunberg, que é autista, esclareceu o significado do polvinho: “O brinquedo da foto é uma ferramenta muito utilizada por pessoas autistas como forma de comunicar sentimentos. É claro que somos contra qualquer tipo de discriminação e condenamos o antissemitismo em todas as suas formas. Isso não é negociável. É por isso que apaguei o último post.” De nada adiantou. Em um vídeo postado no Youtube em 16 de novembro, o mundialmente renomado semanário Der Spiegel partiu para a difamação:
“Críticas a Greta Thunberg: como um ícone se tornou uma divisionista”.
No mesmo X, o ex-correspondente do Los Angeles Times no Brasil e escritor estadounidense, Vincent Bevins, contra-atacou a desonestidade intelectual da revista: “O verdadeiro problema aqui é a Alemanha”. Bevins falava por experiência própria.
Convidado pela Universidade de Regensburg para apresentar seu livro If we burn (Ed Public Affairs, 2023), o convite sofreu súbito cancelamento no final de 2023, devido a retweets de Bevins ilustrando o massacre na Faixa de Gaza.
Escrevia-se meados de novembro e então um escândalo sacudiu Berlim, protagonizado por Jeremy Corbyn, ilustre ex-candidato a primeiro-ministro pelo Labour Party (Partido Trabalhista) britânico. Convidado pela fundação Rosa Luxemburg, do partido Die Linke (A Esquerda), Corbyn foi impedido de proferir uma palestra no teatro Volksbühne. Cobrada pelo público, a direção do teatro – fundado na antiga RDA e afamado por sua tendência esquerdista – esclareceu que cancelava Corbyn por causa de “declarações [que ele fez] no passado”; uma regurgitação infeliz de falsas acusações, segundo as quais, anos atrás, Corbyn teria “tolerado” um suposto “antissemitismo” de bases sindicais de seu partido que
protestaram contra os ataques de Israel à Faixa de Gaza.
“Página virada”, em outro teatro de Berlim, o Gorki, a peça “The Situation”, da israelense Yael Ronen foi “adiada”. A justificativa: o teatro “tinha que se posicionar do lado de Israel”.
Os cancelamentos, contudo, não são novidade. Em dezembro de 2018, o jornalista alemão Christoph Rinneberg listou mais de 90 casos de censura e boicote a eventos sobre Direitos Humanos na Palestina, ocorridos entre 2005 e meados de 2018.
O policiamento de ONGs e redes de “vigilância contra o antissemitismo”
Um caso extremo de destruição de carreira profissional foi o da jovem jornalista Nemi ElHassan, filha de refugiados palestinos na Alemanha. Na véspera de sua contratação, em 2020, como apresentadora da emissora WDR TV – a maior da rede nacional de rádio e televisão (ARD) da Alemanha – o canal “cancelou” seu convite a El-Hassan no auge de uma campanha xenófoba do partido neonazista AfD. Porque, em 2014, a apresentadora fora fotografada em uma manifestação sob o lema “Free Palestine from German guilt!” (“Liberte a Palestina da culpa alemã!”). De nada adiantou a posterior e desnecessária autocrítica de El-Hassan – ela foi “apagada”. Em uma reportagem de meados de 2023, sobre o caso El Hassan, a emissora NDR, da mesma rede, alertou: “Como o debate sobre o antissemitismo saiu dos eixos”.
Já o assassinato de reputação da psicanalista e socióloga palestino-alemã, Anna Esther Younes desvendou os tentáculos de uma rede de vigilância policialesca armada por ONGs e associações pró-Israel, distribuídas com outros nomes por muitos países do mundo ocidental.
O escândalo veio à luz com sentença de 16/05/2022, da Autoridade para Proteção de Dados de Berlim (DPA), obrigando certo “Centro de pesquisa e informação sobre antissemitismo (RIAS)” e um “Conselho móvel contra a direita (MBR)” entregar à acadêmica um dossiê secreto por elas elaborado em 2019 e distribuído a incontável número de instituições. Nele, o dueto RIAS/MBR denunciava Younes por “posições sobre Israel e a BDS” e acusava-a de “defensora do terrorismo, de sexismo e racismo antijudaico” (parêntese editorial: BDS é o acrônimo do movimento internacional de “Boicote, Desinvestimento e Sanções” contra produtos israelenses, sobretudo originários de territórios palestinos da Cisjordânia, expropriados violentamente por colonos israelenses financiados pelo Estado). A DPA rejeitou as calúnias de ambas e advertiu que seu “dossiê” carecia de “qualquer propósito científico e jornalístico sério”. Chama a atenção que RIAS e MBR integram a Sociedade para uma Cultura Democrática (VDK), de Berlim, financiada pelo Estado, e o RIAS cita como seus principais parceiros a Comunidade Judaica de Berlim, o Conselho Central dos Judeus na Alemanha (ZdJ) e a Sociedade Germano-Israelense (DIG), versão alemã da Conib brasileira.
Vítima de intenso choque emocional e restrições à sua vida profissional, até o final de 2023, Younes jamais recebeu desculpas pelo dossiê calunioso ou oferta de indenização por danos morais.
Cegueira e surdez diante do debate interno judaico e israelense
Como já referido, o genocídio em curso na Palestina divide há muitos anos a comunidade judaica em escala internacional. Porém, diante desse debate interno, a Alemanha se comporta como os três macacos da mitologia chinesa: Kikazaru, o macaco que não ouve, Iwazaru, o macaco que não fala, e Mizaru, o macaco que não vê.
Uma poderosa voz nesse debate e caso emblemático de outro “cancelamento” foi o de Masha Gessen. Jornalista russa de raiz judaica, crítica de Wladimir Putin, exilada nos EUA, em 14 de dezembro de 2023 Gessen deveria receber o “Prêmio Hannah Arendt de Pensamento Político”, concedido pela fundação do Partido Verde em parceria com a prefeitura da cidade de Bremen, ícone do progressismo social-democrata há mais de 70 anos. Contudo, após feroz denúncia de “antissemitismo” emitida pela DIG (a Conib alemã), fundação e prefeitura se intimidaram e cancelaram o evento, argumentando ser “inaceitável” a comparação feita pela jornalista em seu ensaio In the Shadow of the Holocaust (À sombra do Holocausto). Publicado dias antes pela revista The New Yorker, nele Gessen comparara o cerco de Gaza por Israel a guetos nazistas na Polônia.
Criticando o apoio alemão a Israel e denunciando genocídio, Gessen afirmou em entrevista que, hoje, até mesmo Hannah Arendt seria censurada na Alemanha.
Mas o que dizer de Ilan Pappé, respeitado PhD em História, escritor e professor israelense no Centro de Estudos Etnopolíticos da Universidade de Exeter, na GrãBretanha?
Autor de brilhantes investigações históricas, como os livros A Limpeza Étnica da Palestina em 1948 (2007) e Dez mitos sobre Israel (2017), Pappé buscou refúgio na Grã-Bretanha após ser acusado de “traidor da pátria” e sofrer ameaças de morte em Israel. Ato contínuo, desde 2009, as conferências de Pappé agendadas na Alemanha sofreram vários boicotes, o mais recente deles, em novembro de 2023. Um dos motivos do “cancelamento” do intelectual é seu apoio à campanha internacional do movimento BDS, com acusação absurda, mas sempre repetida de “antissemitismo”. Porém, mediante resolução aprovada em 17 de maio de 2019, governo e parlamento alemães tornaram-na acusação oficial de Estado, à qual Gideon Levy – colunista, membro do conselho editorial do jornal Haaretz e crítico feroz da ultra direita israelense – reagiu, dois dias depois, com as palavras “Alemanha, que vergonha por sua resolução anti-BDS!”.
Quatro anos mais tarde, sob o impacto da devastação de Gaza, literalmente ignorada pela Alemanha, a estadounidense Susan Neiman – também intelectual de origem judaica e diretora do Fórum Albert Einstein de Potsdam, cidade vizinha de Berlim – expressou forte mal-estar em entrevista do final de 2023, dizendo, “às vezes, sinto que, o que estamos vivendo neste país atualmente, parece uma espécie de filo-semitismo por decreto”. E alerta: a Alemanha corre o perigo de ficar culturalmente isolada.
O isolamento cultural advertido por Neimann é acompanhado por crescente isolamento politico em escala internacional, ao qual Levy já advertia em artigo de 16 de fevereiro de 2020, intitulado “Uma Alemanha diferente? Não com a sua política em relação a Israel”.
Em janeiro de 2024, nas audiências da ação movida pela África do Sul na Corte Internacional de Justiça (CIJ), acusando Israel de genocídio, a Alemanha foi reincidente no mesmo apoio irrestrito, isolando-se ainda mais; agora sobretudo perante países africanos, latinoamericanos e asiáticos.
Incapacidade ao luto e Guerra Fria – a História se repete
Em novembro de 2023, com mais de 10.000 palestinos mortos pelos ataques aéreos contra Gaza, um negacionismo midiático com sonoridades impiedosas estendia-se pela Alemanha. Até mesmo semanários como o Die Zeit – o “crème de la crème” do jornalismo cultural – e o pasquim “progressista” Tageszeitung, ousaram questionar o número de palestinos mortos, com títulos como “Porque não se pode confiar nos números do Hamas” (Die Zeit, 02/11/2023) ou “Os números do Hamas” (Tageszeitung, 11/11/2023), replicados aos milhares em redes sociais como o X. Nem mesmo o respeitado telejornal Tagesschau conseguia resistir à tentação negacionista, questionando “Quão confiáveis são os números de mortes em Gaza?”
Na mídia e nas redes sociais, nenhuma foto da fúria dos ataques aéreos de Israel, da devastação de Gaza, do corte de alimentos, de água e eletricidade. Nenhuma imagem de mulheres, idosos e, sobretudo, de crianças em estado de choque, feridas, amputadas, mortas. Nenhuma referência às filas de corpos no chão dos hospitais bombardeados, de cadáveres entre os escombros.
Nenhuma indignação diante das fotos de soldados israelenses postados em mídias sociais, apontando armas para crianças palestinas indefesas, invadindo casas em Gaza, destruindo seus interiores, roubando os bens de seus moradores expulsos, dançando coletivamente em sinal de “vitória”, ou – expressão repugnante de perversão – exibindo, aos risos, peças de roupa interior feminina como “butim” arrebatado ao inimigo.
Nenhum protesto contra as repugnantes frases de políticos israelenses, tratando os palestinos como “animais”, ameaçando extinguir Gaza com uma bomba atômica e – exibindo um mapa aleatório de um “Grande Israel” – obliterar a Palestina inteira com a expulsão de seus habitantes para o Sinai egípcio.
Nenhum retrato, portanto, nenhuma comoção. O que “não existe, não comove”. Com a sublimação do terrorismo de Estado israelense, a Alemanha democrática reincide em seu comportamento coletivo durante o assim chamado “milagre econômico”, nas décadas de 1950 e 1960. A conduta de então chamou a atenção do casal de psicanalistas da Escola de Frankfurt, Alexander e Margarethe Mitscherlich que, baseando-se em sessões de psicanálise realizadas pela Dra. Margarethe, escreveu o livro “Die Unfähigkeit zu trauern. Grundlagen kollektiven Verhaltens” (A incapacidade para o luto. Noções básicas de comportamento coletivo,1967).
À época, a publicação foi recebida como arranhão doloroso em chaga coletiva. Segundo a obra, a maioria significativa dos alemães das décadas de 1950/1960, avaliava o apoio ao regime nazista como espécie de “doença infantil”, transferindo a culpa pelo genocídio do povo judeu exclusivamente a Adolf Hitler e sua cadeia de comando. Os depoimentos apontavam para sintomas perturbadores: a maioria dos pacientes revelava-se sem empatia pelas vítimas do genocídio, com atitude empedernida, blindando-se de culpa, vergonha e, sobretudo, do luto pela perda alheia.
Observou o casal Mitscherlich que uma democracia sustentável na Alemanha não era sentida como necessidade pela maioria dos alemães e, sim, como imperativo ditado de cima para baixo pelas forças aliadas vencedoras.
Porém, o que faltou na observação dos autores foi o efeito simultâneo da Guerra Fria, iniciada em 1947 e, antes de seu início, o resultado pífio dos Julgamentos de Nürnberg (novembro de 1945 a outubro de 1946), com a condenação de apenas 24 altos funcionários da ditadura nazista. Evento simbólico e espetacularizado à época, enquanto transcorriam os julgamentos, os EUA já davam início à famigerada “Operação Paperclip”.
Através deste programa conduzido pela Agência Conjunta de Objetivos de Inteligência (JIOA) entre 1945 e 1959, mais de 1.600 cientistas, engenheiros e técnicos alemães – entre os quais vários ex-membros e ex-líderes do Partido Nazista – foram recrutados e levados secretamente aos EUA para o desenvolvimento da indústria bélica, sobretudo nuclear, aeroespacial e balística, como em Whtite Sands, onde foram testadas dezenas de foguetes alemães V-2.
A obstrução pelos EUA do genuíno luto coletivo alemão foi muito além. Ato contínuo à derrota alemã, a agência de inteligência OSS, o FBI e a CIA, fundada em 1947, recrutaram estimativamente 1.000 agentes da inteligência de Hitler como espiões e informantes da Guerra Fria contra a então União Soviética, mas também com missões de “combate ao comunismo” em várias regiões do mundo, entre elas a América Latina. Como ilustrou reportagem do New York Times de dez anos atrás (In Cold War, U.S. Spy Agencies Used 1,000 Nazis, 26/10/2014), durante mais de meio século os governos estadunidenses ocultaram a envergadura da operação e os laços oficiais com os exagentes alemães residentes nos EUA.
Não bastasse o recrutamento de agentes do “Führer”, os EUA fizeram vistas grossas e encorajaram as famigeradas “ratlines” (“linhas” ou “túneis dos ratos”), um sistema clandestino organizado por nazistas alemães e fascistas/colaboracionistas de vários países europeus, com proteção de bispos do Vaticano e da Cruz Vermelha, que – segundo dados díspares de diversas fontes – permitiu a fuga de centenas, se não de milhares de seguidores de Hitler para a Argentina, o Chile e o Brasil; tema retomado pelo presente texto em sua parte final.
Domínio da narrativa: a instrumentalização do antissemitismo, do holocausto com H e a negação dos genocídios colonialistas
De 1945 a 2023, os sucessivos governos alemães pagaram aproximadamente 88 bilhões de dólares em reparações a aproximadamente 245 mil sobreviventes do holocausto nazista, que extinguiu a vida de estimativamente 6 milhões de judeus em toda a Europa.
Porém, a notável soma não foi suficiente para redimir a Alemanha pós-guerra, pois é mantra por demais batido de que dinheiro não devolve vidas e não compra a felicidade.
Como Norman Finkelstein – cientista político estadunidense e filho de sobreviventes do genocídio nazista na Polônia – documentou em seu livro “A indústria do Holocausto”, este sentimento de culpa alemão foi persistentemente retroalimentado durante décadas por pressões políticas e de caráter moral, que Finkelstein elenca como “lobby” ativo desde os EUA e Israel.
A obra custou a Finkelstein a destruição de sua carreira acadêmica nos EUA e a proibição de pisar em território israelense. Contudo, sem entrar no mérito da polêmica de seus detratores, cabe registrar que nenhuma das denúncias do livro foi jamais refutada com fatos. Entre elas, duas acusações graves: a de que a Alemanha sofreu “extorsão” e de que parte das reparações bilionárias foram desviadas para a criação de entidades de propaganda e policiamento de narrativa mundo afora.
O policiamento capturou a politica alemã e ilustra uma outra esquiva: a da falta de coragem para um discurso autônomo que materialize a divisa “Nunca mais em qualquer lugar!” em politica convincente de Direitos Humanos. Regurgitando e instrumentalizando de modo obsceno conceitos como “holocausto”, e “antissemitismo” como acusação aos críticos de Israel, a Alemanha nada mais revela do que sua mal-resolvida “cultura da Memória”, que tenta compensar, refugiando-se no apoio incondicional a Israel.
No entanto, no turbilhão diário de acusações de “antissemitismo”, uma sutil miudeza escapa à observação da maioria das pessoas: a apropriação unilateral do atributo linguístico e etnográfico de “semitismo”.
Para ilustrar o desprezo pela História, caberia um episódio anedótico. Pergunte-se a um cidadão de Il Belt, se ele considera a crítica à crueldade imposta a Gaza como manifestação “antissemita”. A resposta surpreenderia, pois cidadão de Il Belt responderia:
O que é que nós, malteses, temos com isso?!. E teria toda a razão, pois Il Belt – o nome originário de Valetta, a capital da ilha de Malta – significa “a cidade” no idioma maltês. Que, ao lado do árabe, hebraico, mas também do amárico, aramaico e tigriniano, virtualmente extintos, é um dos principais idiomas de raíz semita.
A apropriação unilateral do conceito ocorre desde o final do séc.XIX, e tem como raiz evocações históricas, sobretudo religiosas, jamais provadas, evocando a figura bíblica de Shem, filho do não menos mitificado Abraão, que mediante a versão grega da Bíblia, no Ocidente passaria a ser chamado Sem, ou Saam em idioma árabe.
Sem o mesmo, mínimo cuidado, a Alemanha também rendeu-se à pregação do genocídio de 6 milhões de judeus na Europa pelo nazismo como Holocausto, ou Shoa em hebraico. Seu H, maiúsculo, sugere não apenas sua unicidade, mas sua incontestabilidade; ao preço da acusação a seus críticos de “relativizadores antissemitas”. Resumidamente, a defesa da excepcionalidade do Holocausto aponta a um extermínio de caráter racista, calculado e obscenamente industrial; excepcionalidade, sem dúvida, correta, que conferiria caráter único ao crime, desautorizando qualquer comparação.
Em artigo publicado em dezembro de 2023, na revista Internationale Politik – financiada pelo think tank Conselho Alemão de Relações Internacionais (DGAP) -, o jornalista alemão Richard Herzinger ousou afirmar que “… ao contrário do Hamas, Israel não ataca civis de forma deliberada e específica”. Ato contínuo, partiu para o ataque contra o historiador Omer Bartov e outros intelectuais judeus, que em novembro de 2023 denunciaram o “uso indevido da memória do Holocausto” em Carta Aberta publicada pelo New York Review of Books.
A ousadia de Herzinger e outros, ilustra uma aberração: como milhares de alemães fanatizados nas redes sociais, jornalistas e intelectuais não-judeus acusam seus pares judeus ou israelenses de “antissemitas”.
Dois anos antes, o jornalista Thomas Schmid escancarara outra aberração: o negacionismo dos genocídios perpetrados pelo sistema colonial. Definindo como proibitiva qualquer comparação do holocausto nazista com outros genocídios históricos, Schmidt comentou sem pestanejar no Die Zeit (11/04/2021): “Por mais sangrento e assassino que tenha sido o colonialismo, o objetivo não era a destruição pela destruição. É por isso que o Holocausto é singular. Foi um genocídio antissemita”.
Em outras palavras, segundo a lógica de Schmidt e consortes,
● a aniquilação pelo império britânico entre 1880 e 1920, de estimativamente 100 milhões de indianos, segundo pesquisas acadêmicas divulgadas em 2022,
● o extermínio pelo colonialismo britânico, espanhol e português de, pelo menos, 55 milhões de indígenas de norte a sul do Continente Americano entre os séculos XVI e XXI,
● ou que entre os séculos XV e XIX, segundo estimativas acadêmicas consensualmente aceitas, a escravidão na África e nas Américas chacinou aproximadamente 18 milhões de escravos africanos,
● ou ainda que, apenas no Congo, a monarquia belga exterminou pelo menos 10 milhões de africanos mediante genocídio tenebrosamente descrito em “No coração das trevas” de Joseph Conrad…
não foram intencionais, não são comparáveis e não merecem ser chamados de holocaustos.
Associar-se a tamanho cinismo, aponta a uma desastrosa decadência ética da Alemanha.
Pecados comuns inconfessos: espiões nazistas no Mossad e tolerância da limpeza étnica
Em seus 75 anos de existência e sem ônus à sua defesa do Estado de Israel, a Alemanha democrática desprezou várias oportunidades de exortar as lideranças israelenses para se distanciarem publicamente do projeto racista, violento e colonialista prenunciado para a Palestina pelos fundadores da Organização Mundial Sionista, atualmente sediada em Jerusalém.
Afinal, em seu livro “O Estado Judeu” (Der Judenstaat, 1896), Theodor Herzl, fundador do movimento sionista em 1897, escancarara um repugnante etnocentrismo de corte supremacista para quem combatia a segregação racial dos judeus, ao recomendar a criação de Israel na Palestina: “Deveríamos ali formar parte de uma muralha da Europa contra a Ásia, m posto avançado da civilização em oposição à barbárie (sic!). Deveríamos, como Estado neutro (sic!), permanecer em contacto com toda a Europa, que teria de garantir a nossa existência”.
Vinte e cinco anos mais tarde, Vladimir Z. Jabotinsky, judeu russo da ala radical do sionismo, em seu manifesto intitulado “O muro de ferro” (The iron wall, 1923) reforçava o mote da “muralha” de Hertzl, mas cobrando que tal obra segregasse os palestinos em seu próprio território: “A colonização sionista deve parar ou então aumentar a população. O que significa que só pode prosseguir e desenvolver-se sob a proteção de um poder que seja independente da população nativa – atrás de um muro de ferro, que a população nativa não pode romper”.
Já Leo Motzkin, liderança de uma ala abertamente violenta do movimento sionista, defendera em 1917 a completa expulsão dos palestinos de seu território: “Nosso pensamento é que a colonização da Palestina deve seguir em duas direções: o assentamento judaico em Eretz Israel e o reassentamento dos árabes de Eretz Israel em áreas fora do país. A transferência de tantos árabes pode parecer embaraçosa e a
princípio inaceitável economicamente, mas não deixa de ser prática. Não é necessário muito dinheiro para reassentar uma aldeia palestina em outra terra”.
E aqui entra em cena a família Rothschildt, a dinastia de banqueiros e investidores originária de um gueto judeu de Frankfurt, do séc. XVIII, cujo atual patrimônio diluído é estimado por diversas fontes entre US$ 500 bilhões e US$ 1 trilhão em 2024, desse modo liderando com vantagem o diminuto grupo do 1% mais rico do mundo contemporâneo.
Coube ao banqueiro Edmond de Rothschild, residente na França, de tornar realidade o projeto politico da Organização Mundial Sionista. Fundando a Associação Palestina Judaica de Colonização (Palestine Jewish Colonisation Association – PICA) em 1924, Edmond deu início à colonização judaica com a compra, em 1929, do cobiçado, porque fertilíssimo Vale de Jezreel, com uma área de 364 km2. A partir daí, a PICA forçou a conquista massiva de território, fosse mediante compra legal ou pressionando seus proprietários palestinos até o abandono de suas terras.
Indignados com a Aliya, o massivo desembarque de colonos judeus da Europa, em 1948, forças árabes da Palestina e de países vizinhos tentam impor resistência armada à ocupação violenta do território, mas foram derrotadas, dando origem à Nakba.
Embora a Alemanha afirme defender a solução de dois Estados autônomos – Israel e Palestina -, sua posição formal colide com sua prática de fato: a do apoio incondicional a Israel, cujos 700.000 colonos armados usurparam 61% do território da Cisjordânia. Em suma, como adverte Pappé, a Alemanha assumiu uma postura hipócrita.
A Alemanha aponta ao Hamas como organização terrorista, mas assistiu em silêncio ao desempoderamento sistemático da Autoridade Palestina, encabeçada pela OLP, laica, mediante múltiplas chantagens, seguidas pelo ascenso do Hamas e estimulando uma escalada com conotações religiosas de ambos os lados.
Entretanto, em seu relacionamento com Israel, a “Razão de Estado” da Alemanha dissimula algumas particularidades surpreendentes. Sua historiografia oficial esconde, por exemplo, as raízes terroristas da fundação de Israel, quando milícias de judeus europeus – como Haganah, Irgun e Stern Gang – perpetraram atentados contra a então Autoridade Britânica e, entre 1945 e 1948, assassinaram 15.000 residentes palestinos. Um caso emblemático foi a dinamitação, em 1946, do Hotel King David, em Jerusalém, matando 91 pessoas. Responsável pelo atentado foi a Irgun comandada por Menachem Begin, futuro presidente de Israel (1977-1983) e fundador do partido de Benjamin Netanyahu, o Likud, de extrema-direita.
A Alemanha tampouco gosta de ser lembrada que, no início da década de 1960, a Organização Gehlen – precursora do serviço de inteligência BND – iniciou cooperação clandestina com o serviço de inteligência israelense Mossad, surgido em 1949 das fileiras das milícias. Assim ocorreu em um dia gélido do inverno de 1960/61, quando Isser Harel – judeu bielorrusso e chefe do Mossad – reuniu-se na antiga mansão de Martin Bormann, nos arredores de Munique, com o general Reinhard Gehlen, ex-chefe de inteligência da
Wehrmacht de Hitler. O encontro secreto ocorria antes mesmo do estabelecimento de relações diplomáticas entre Israel e a Alemanha, dando início extraoficial à cooperação militar e de inteligência que dura mais de sessenta anos. Entre outros, Gehlen e Harel combinaram nada menos que a contratação do ex-coronel das SS, libertador de Benito Mussolini e cobiçado perito em operações especiais, Otto Skorzeny, para infiltrar o programa balístico então em curso no Egito e, desde Madri, coordenar o tráfico de armas para Israel. Skorzeny não estava implicado no genocídio judaico, mas queria que sua prestação de serviço o liberasse de incômodos por parte de Israel.
Personificando a política dos dois pesos e duas medidas dos EUA, da Alemanha e de Israel durante o processo de desnazificação da Alemanha, Skorzeny atuou como um dos articuladores da espionagem alemã e norte-americana na América do Sul e, mediante a organização fascista Paladin, por ele fundada, como precoce ponte ideológica entre a extrema-direita europeia e sul-americana.
Do Kaiser, pelas ditaduras militares, ao bolsonarismo: a passividade alemã diante da expansão neonazista na América do Sul
Embora submetida em seu território ao Programa de Desnazificação (desmilitarizadora, jurídica e educativa) imposto pelos aliados vencedores na conferência de Potsdam, de 1945, a Alemanha Ocidental do pós-guerra cometeu grave omissão histórica ao desdenhar a imperativa desnazificação e democratização das comunidades de origem germânica na Argentina, no Chile e no Brasil em cooperação com seus respectivos governos; omissão com graves consequências, como os golpes de Estado e as ditaduras militares sangrentas, entre as décadas de 1960 e 1990.
A Alemanha obviamente tinha conhecimento dos enclaves do conservadorismo alemão nos países do Cone Sul. Definindo-se como súditos da monarquia Guilhermina desde meados do séc. XIX, as colônias alemãs inspiraram a organização prussiana dos exércitos como o do Chile, permitiram a posterior infiltração nazista de seus clubes e escolas, participaram da implantação de filiais sul-americanas do NSDAP, o partido nazista de Adolf Hitler, atraindo nazistas da Europa e acolhendo-os em suas comunidades.
Embora a fuga massiva de nazistas aos países do Cone Sul, sobretudo à Argentina, estivesse cercada por mitos desde a década de 1950, investigações realizadas várias décadas mais tarde, comprovam uma “nazificação” setorial do Cone Sul. Uma suposta organização “Odessa” para a infiltração na América do Sul de nazistas em fuga, os “12.000 nazistas escondidos na Argentina”, uma fantasiosa conspiração para a criação de um “VI Reich”, ou ainda de que Hitler tivesse vivido na Argentina, foram, sem dúvida, desatinos jamais confirmados pelos fatos, alardeados ee.oo. pelo lendário “caçador de nazistas” (sobrevivente de campo de concentração nazista e posterior agente de inteligência estadunidense) Simon Wiesenthal, pela OSS dos EUA, ou ainda por obras literárias sensacionalistas como “Morte e Honra” de W. E. B. Griffin e “O Dossiê Odessa” de Frederick Forsyth.
No entanto, o pesquisador Holger Meding (“La ruta de los Nazis en tiempos de Perón”, Ed. Emece, 1999) indica que pelo menos 300 (talvez até 800) oficiais nazistas de alta patente teriam emigrado para a Argentina, incluindo 50 criminosos de guerra. Por sua vez, o historiador Gerald Steinacher (“The Cape of Last Hope: The Flight of Nazi War Criminals through Italy to South America”, 2006), apontou para, pelo menos, 150 criminosos nazistas listados em relatório da historiadores argentinos. Porém, a maioria dos exmembros da SS desembarcou na Argentina com identidade e nacionalidade falsas, obstaculizando sua identificação. E mais grave, segundo Steinacher: “Sempre existiram – e existem – interesses políticos poderosos em jogo”.
A Guerra Fria (1945-1990) mobilizou poderosos interesses políticos, alinhando a Alemanha Ocidental pós-guerra à OTAN e envolvendo a maioria dos países latinoamericanos em uma encarniçada cruzada “contra a ameaça comunista”. A campanha fez vistas grossas à anêmica “desnazificação” na Alemanha, na América do Sul encorajou o conservadorismo latente das populações de origem europeia, sobretudo alemã, e não hesitou em recrutar ex-militares nazistas e criminosos de guerra como espiões da CIA e
do BND alemão.
Foi assim que Hans Ulrich Rudel, ás da força aérea de Hitler, desembarcou na Argentina, posando como representante comercial de várias empresas multinacionais alemãs, entre elas a Siemens, e assessorando o então presidente Juan Domingo Perón no desenvolvimento do Pulqui, o primeiro caça supersônico do continente, adaptado de caças alemães pelo engenheiro Kurt Tank. Embora não fosse criminoso de guerra, Rudel não abdicou de sua simpatia pelo nazismo, criando na Argentina um tal “Kameradenwerk” – “obra (social) dos camaradas” – como rede de aglutinação e proteção de correligionários imigrados.
Entre os “camaradas” de Rudel figuravam Otto Skorzeny e um tal “Klaus Altmann”, nome falso de Klaus Barbie, ex-coronel da SS e da Gestapo nazista, conhecido como o “açougueiro de Lyon” devido à deportação de 842 pessoas – a maioria de resistentes franceses, além de 85 judeus adultos e 44 crianças judias de Izieu – para campos de extermínio nazistas.
Porém, pasme-se. Apesar de condenado à morte pela Justiça francesa em 1946, Barbie conseguiu escapar de um campo de detenção na Alemanha com ajuda da CIC, ao lado da OSS, outra agência de inteligência precursora da CIA. Sua primeira missão consistiu em espionar o serviço secreto francês, suspeito de infiltração pela KGB soviética. Outra vez com ajuda dos EUA, entre 1950 e 1951, Barbie conseguiu fugir para a Bolívia, onde continuou atendendo a CIA e o BND alemão. Já na década de 1960, assessorou a ditadura do Gen. René Barrientos como instrutor de inteligência e tortura de prisioneiros políticos, contribuindo para a localização e o assassinato de Che Guevara, em 1967. EUA e a Alemanha justificaram recrutamentos de agentes como Barbie na Bolívia, porque “o Ocidente temia que o país pudesse cair na esfera de influência soviética como Cuba”.
Otto Skorzeny traficava armas para Israel a partir da Espanha, já Barbie o fazia na Bolívia e, completando o trio, no Chile, desempenhava-se Walter Rauff, ex-oficial de inteligência da SS na função de assessor de Reinhard Heydrich, comandante do Serviço de Segurança (SD) hitlerista e um dos autores intelectuais da “solução final”, isto é, o completo extermínio dos judeus europeus. Responsabilizado por fontes judaicas pelo assassinato de 100 mil judeus mediante o emprego de câmaras de gás móveis – as famigeradas “carretas do gás” – foi preso em 1945, mas conseguiu escapar. Segundo indicação do jornal israelense Haaretz (“In the service of the Jewish State”, 29/03/2007), após Rauff atuar como espião israelense na Síria, em 1950, o agente Edmond (Ted) Cross do Mossad o abasteceu com documentação necessária para submergir, rumo à Argentina, de onde se deslocou ao Chile, país em que residiu até sua morte, em 1984, sem jamais enfrentar qualquer julgamento e condenação presencial.
Entretanto, o que unia Skorzeny com Barbie e Rauff eram missões de duplo caráter, como agentes do BND e como traficantes de armas a serviço da empresa Merex AG. Fundada por Otto Skorzeny em sociedade com seu ex-oficial subalterno da SS, Gerhard Mertins e com sede na Suíça, geralmente, o comércio da Merex recorria ao “negócio sujo” do tráfico de armas em desuso, realizado com a cobertura clandestina do BND.
A partir de 1956, com o nome-de-guerra “Urano”, Mertins também foi recrutado como agente pelo BND, passando a cultivar uma relação (ou missão) especial com o Chile. A relação se aprofunda após o golpe militar de 11/09/1973 – que derrubou o presidente Salvador Allende, impondo até 1990 a ditadura Augusto Pinochet – e se concentra em dois cenários: na amizade de Mertins com o general Manuel Contreras – comandante da DINA, a polícia secreta de Pinochet – e na “Colônia Dignidad”, localizada trezenos quilômetros ao sul de Santiago do Chile. Fundada na década de 1960 pelo alemão Paul Schäfer – pedófilo foragido da Justiça e pregador de uma seita evangélica fundamentalista – com aproximadamente 300 colonos adultos, a colônia logo saiu em apoio à ditadura Pinochet. “Dignidad” celebrizou-se de modo macabro como centro de tortura clandestino de presos políticos chilenos da DINA – dos quais estimativamente 150 foram “desaparecidos” na colônia -, mas também como palco de selvageria social, mediante escravidão no trabalho e a separação radical dos casais e, destes, seus filhos, em grande número tornados objetos de abuso sexual do hierarca Schäfer. Logo após o final da ditadura Pinochet, “Dignidad” sofreu intensa investigação e interdição judicial, com a prisão da rede de comando subalterna a Schäfer, que morreu na prisão em 2010.
Durante os mais de trinta anos de existência da obscena colônia, Gerhard Mertins foi assíduo visitante e hóspede de “Dignidad”, que servia de palco clandestino do tráfíco da Merex com a ditadura Pinochet, à qual Mertins chegou a fornecer armas de fogo e helicópteros. Em contrapartida, na Alemanha, Mertins recebia o comandante da repressão chilena, Manuel Contreras, ingressado com documento falso, e fundando um “Círculo de Amigos Colônia Dignidad (“Freundeskreis Colonia Dignidad”) com ilustres políticos do Governo Willy Brandt (1969-1974), que atuava como lobby de blindagem contra as acusações dos crimes em curso na colônia.
Com o devido respeito à sua trajetória anti-fascista de exilado político na Noruega durante a ditadura hitlerista, como futuro líder social-democrata Willy Brandt deixara-se capturar por interesses comerciais durante sua gestão como ministro do exterior (1966-1969) do governo conservador de Kurt Georg Kiesinger, visitando o Brasil em outubro de 1968, na véspera da decretação do AI-5. Como se agradecesse a assinatura do Acordo de Cooperação Cientifica a Tecnologica entre o Brasil e a Alemanha, com foco na área de enriquecimento de urânio, na oportunidade Brandt presentou um relógio de luxo ao então ditador, general Costa e Silva. Detalhe ao que os meios de comunicação brasileiros só teriam acesso anos mais tarde, através do meu livro “A bomba ´pacífica” (Brasiliense, 1988): como coordenador alemão da cooperação na área de enriquecimento de urânio, atuava o professor Alfred R. Boettcher, antigo coronel da SS e interventor na Universidade de Leiden durante a ocupação nazista da Holanda, sem mais nomeado Diretor de Relações Internacionais do Centro de Pesquisa Nuclear Jülich do Ministério de Pesquisas Científicas do governo alemão.
Sete anos depois, o também social-democrata e sucessor de Brandt como primeiroministro, Helmut Schmidt, ousara comprar uma briga com o então Governo Jimmy Carter dos EUA, que se opunha à exportação de tecnologia nuclear alemã ao Brasil, advertindo ao perigo de seu desvio militar. Carter conseguiu a substituição da tecnologia de urânio recomendada por Boettcher. Porém, em 1975, Helmut Schmidt celebrava com o general Ernesto Geisel a assinatura do mal-lembrado e bilionário acordo nuclear, que previa a construção de sete usinas nucleares da Siemens, além da instalação de tecnologia de enriquecimento de urânio; acordo que ficou reduzido apenas às usinas Angra-2 e -3 e cuja linha de enriquecimento seria desviada para o centro de pesquisas da Marinha, em Iperó, comandado pelo almirante Othon Pinheiro.
“Será que para Brandt e Helmut Schmidt a eliminação pela ditadura brasileira do Estado de Direito que lhes era tão caro na Alemanha, não importava? Será que a censura draconiana dos meios de comunicação, a supressão dos sindicatos, a atuação dos esquadrões da morte, os centros de tortura e o destino de milhares de presos políticos lhes eram tão indiferentes?”, questionei em ensaio publicado em 2014 pelo jornal Tageszeitung, de Berlim.
Cinco décadas depois, os sinais dos tempos advertem que a omissão desnazificadora somada às escandalosas operações da Guerra Fria, foram os ovos da serpente que excitaram a extrema-direita reclusa aos armários e pariram um Jair Bolsonaro no Brasil, um Javier Milei na Argentina e um José Antonio Kast, de tocaia no Chile.
Frederico Füllgraf é filho de imigrantes alemães, criado no Brasil. É Mestre em Comunicação pela Universidade Livre de Berlim, escritor/autor ee.oo. de “A bomba ´pacífica´” (Brasiliense, 1988), ex-produtor associado da rede nacional de TV Alemã (ARD), da Deutsche Welle TV e roteirista/diretor de filmes documentários.
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Frederico Füllgraf desde sempre um jornalista independente, corajoso e de grande habilidade
crítica.
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