Agro-fascismo, o mundo-bolha e a guerra civil, por Afonso Junior

São golpes por dentro das democracias. Estamos vendo o desejo de usar as instituições democráticas para impor dogmas e facções.

Marcelo Camargo – Agência Brasil

Agro-fascismo, o mundo-bolha e a guerra civil

por Afonso Junior

Culto na Paulista. Pax do demônio homofóbico.

Luciano Huck recebe uma dupla sertaneja, que logo se torna gospel.

O celular ao lado na viagem fala de como “Janja é uma esposa fake, Lula precisava de alguém pra ser presidente, pegou uma pessoa despreparada, é falsa”.

O taxista celebra “o fim da esquerda desgraçada, os lacradores que falam contra as privatizações…”

O celular de um porteiro repete que Nayib Bukele é o político do futuro…

Na TV, revolta contra o morador de rua que deu sete facadas num cidadão em Caxias do Sul…

Outro taxi:

– Nós vivemos uma ditadura, o senhor sabe? A prisão de Bolsonaro é só o primeiro passo pra esquerda tomar o poder.

Contam: “Eles abriram por dentro o Palácio. Queriam a invasão.”

“O Lula disse que iam implantar o comunismo em 30, 40 anos… Tem o vídeo.”

O motivo pelo qual “não se fala mais em Marielle?””O miliciano que matou a Marielle usava uma camisa do PT. Viu a foto?”

Elon Musk como modelo para a humanidade.

O Brasil profundo é bolsonarista. A esquerda está vivendo dentro de uma bolha. Mas pensa que está no controle.

Mergulho na utopia bolsonarista do acúmulo individual, o “ganhar dinheiro” como centro da existência, a guerra dos valores vendendo a vida agro (bota, bala, caminhonete e rodeio), vejo a busca por desestabilização institucional pela criação da cólera, a política da não negociação, a guerra como solução do conflito…

Começa com a ética do trabalho do imigrante, “não é rico quem não trabalha”, de quem ganhou terras do governo. Passa pela certeza de que tudo que o PT fez foi dar dinheiro pra quem é preguiçoso.

Então, Luciano Huck deixa de ser apenas o garoto propaganda do sentimentalismo agro-gospel e passa a usar o truque das palavras desviantes. Lula devia ter dito “tragédia humanitária”, negando o que todos vimos.

Enquanto isso, Javier Milei, na Argentina deixa descontente até o Congresso colaboracionista chamando de traidores os que o criticam, e a inflação de janeiro chega a 20,3% – ou 53% entre dezembro e janeiro (taxa anual de 254,2% de inflação), mas ele vende seus fracassos como plano genial para chegar à dolarização. Enquanto se entrevê o fim indústria argentina, 200 mil trabalhadores perdem seus postos, o presidente vai ao Vaticano (depois de chamar o Papa de “imbecil que defende a justiça social”) e passa todo o dia repostando tweets bajuladores ou agressivos (517 interações em um dia).

Outra forma de mudar de foco foi atacar a jovem cantora Lali Espósito, já que participaria de festivais com dinheiro do Estado “à custa da fome das crianças”. Ela respondeu que todas as informações falsas que Milei consome e compartilha “retornam ao seu discurso injusto e violento”.

Tão violento quanto as balas de borracha que agrediram manifestantes na Praça do Congresso, um advogado perdeu a visão de um olho.

Milei castiga o estado de Chubut, que foi à justiça contra a retirada de subsídios nacionais ao transporte, uma vingança contra a resistência à sua “Ley Ómnibus”.

Chamar a desigualdade e a miséria de “liberdade” é, em si, uma linguagem de controle.

Parece que todo o interior do Brasil está sublevado contra a Justiça – “o careca” tinha de ter seguranças a la Putin.

Os progressistas estão subestimando a força da ignorância e a cultura de revolta que se instalou? Quem pesquisa e quem busca contrapor essa expansão da mentira de massa?

Não estão mais ouvindo mentiras pela Globo News, agora cada um vive seu mundo de mentira pelo celular – e é pior.

É um modo de vida além da razão, além da análise, uma cognição delirante alterada pela emoção, que nunca responde à verdade. Não é apenas gado – é um conjunto de valores, “gente que quer trabalhar em paz”, ira nascida de uma visão de mundo coesa. Como Bolsonaro convenceu tanta gente de que defende seus interesses?

São golpes por dentro das democracias. Estamos vendo o desejo de usar as instituições democráticas para impor dogmas e facções.

Como disse um general em julho de 2022: “Acho que as coisas têm de ser feitas antes das eleições (…) Vamos ter de agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas”. (Congresso em Foco, 08/02/2024).

Some-se a isto números reveladores:

“(Há) 783.385 caçadores, atiradores esportivos e colecionadores, quantidade superior ao efetivo das forças de segurança, que soma 657.385 agentes” (Correio Braziliense, 22/07/2023)

Em 1922, padre Enrico Rosa, editor de “La Civiltà Cattolica”, advertia contra o fascismo: “violento e anticristão, encabeçado por homens sinistros (…) o esforço falido do velho liberalismo, de maçons, proprietários de terras, industriais ricos, jornalistas, políticos insignificantes e coisas do gênero…” (KERTZER, 2017).

A cultura agro-fascita e o fundamentalismo religioso-político criam uma distopia colonial (sem classe média) quando até os críticos de direita são “traidores”. Não houve minuta, é apenas o Sistema reagindo a quem combate a corrupção.

Lembremos a ex-empresária de Anitta, Kamilla Fialho:

“Tem muito dinheiro, meu amor. Ali é boi. Eu pago para tocar uma música na rádio e eles compram a rádio… Como fica a concorrência? ‘Queria pagar para tocar aí. Ainda existe essa metodologia?’ ‘Não, não, porque o sertanejo passou aqui na semana anterior, comprou a rádio e aqui não toca mais música pop”. (O Hoje, 11/01/2022).

O interior do Brasil é uma fazendinha de fake-news, nossos adolescentes do interior são plantações de fake-news ouvindo dia e noite propaganda pelo YouTube.

A fábrica de fake-news é propagação de valores das grandes fortunas (Guarantã do Norte – no MT – teve 81,14% de votos em Bolsonaro; Goianápolis – em GO – 67,53%).

Essas pessoas revoltadas, que te dizem “Por Que ninguém fala da Amazonia agora?”, são também o Brasil que conhece pouco de História e vive em cidades sem livrarias, sem cinemas, sem bibliotecas. A leitura seria perda de tempo, quando se pode ostentar um pouco mais como o dono da vinícola ou o fazendeiro (que paga a única cultura da área – o rodeio).

Segundo a BBC News, o Brasil “está se tornando mais primário mais dependente da agropecuária e da mineração – e menos tecnológico.”

“Deixamos de priorizar a indústria, essa é a grande verdade”, diz o economista Paulo Morceiro, pesquisador na Universidade de Joanesburgo, na África do Sul. (BBC News Brasil, 12/04/2023)

Se a esquerda percebesse que estamos em guerra, que estamos perdendo, seria preciso verdade de massa e pesquisa séria.

A pergunta que me faço é por que motivo não seria o Brasil ditadura de novo.

A Justiça parece ignorar as massas fanáticas, mas é justo perguntar: o mundo-bolha é o começo da guerra civil?

Infelizmente, também na percepção e na atitude, o pragmatismo deve abrir as portas para outros aventureiros.

Afonso Junior Ferreira de Lima – historiador, Mestre em Filosofia (PUCRS), doutorando UNB.

KERTZER, David I. O papa e Mussolini: a conexão secreta entre Pio XI e a ascensão do Fascismo na Europa. Editora Intrinseca, 2017.

https://ohoje.com/noticia/cultura/n/1370652/t/ex-empresaria-de-anitta-expoe-influencia-do-sertanejo-e-do-agronegocio-no-cenario-musical-entenda/

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/justica/investigacao-da-pf-mostra-que-heleno-queria-acoes-contra-instituicoes-antes-da-eleicao/

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxr0vlvqdgqo

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Redação

1 Comentário

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  1. Uma transição para um Brasil que não conhecíamos e que nenhuma força progressista foi capaz de contrapor e sequer perceber o monstro que surgia e se desenvolvia nas entranhas do país.
    Infelizmente, é questão de tempo estarmos em uma estrutura efetivamente teocrática, retrógrada e apolítica. Como muito bem abordado no artigo, a legião de fanáticos alienados dominados pela extrema-direita, vai garantir isso.
    Questão de tempo.

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