Apoiar Lula não é apoiar sua negação do real histórico, por Luciano Elia

O golpe de 1964 mostrou-se iminentemente presente, e não passado, no último governo, e foi agido no 8 de janeiro de 2023.

Apoiar Lula não é apoiar sua negação do real histórico: “esquecer o golpe de 1964?”

por Luciano Elia

Começo por um título que recusa, nega a negação, o negacionismo, de Lula. Sim, há níveis e níveis de negacionismo, e o de Lula certamente é muito menos nocivo que o de seu antecessor e seu rebanho, pelo menos na virulência imediata e devastadora que o negacionismo fascista (que está longe de ser o de
Lula) acarreta, e sobre a qual não preciso me deter aqui. Mas, se adentrarmos o tempo e a densidade histórica de uma análise política dos últimos 35 anos, o Brasil pós-ditadura – a chamada “reconstrução democrática” que se inicia concreta e simbolicamente com a Constituição de 1988 – veremos que a memória do golpe de 1964, como forma de elaborá-lo, no mesmo sentido freudiano de um trabalho psíquico sobre os eventos traumáticos que ensejam repetições, mas no caso em questão uma elaboração histórico-política, é a única via real de criar caminhos outros que não a trilha da repetição. Sem memória, sem um trabalho de memória, elaboração histórica de nosso “passado” político, esse passado não passa, não se torna passado, e insiste em ressurgir no presente. Portanto, a negação da memória e a recusa desse trabalho é uma escolha muito perigosa, por manter intactos determinados nódulos que, blindados desde 1988, operam como tumores cancerígenos que não cessam de produzir metástases fascistas na nossa “democracia”, e a fragiliza incessantemente.

Lula diz: “não vou ficar remoendo esses fatos do passado” e “preciso tocar esse país pra frente”, olhando, segundo ele, “para o futuro”. Não é necessária uma escuta particularmente acurada para se ouvirem nessas declarações os mais ruidosos e perigosos equívocos. O golpe de 1964 mostrou-se iminentemente presente, e não passado, no último governo, e foi agido no 8 de janeiro de 2023. Dizer, como disse Lula, que está mais focado no 8 de janeiro – e por isso não quer remoer o passado de 60 anos atrás – é desconhecer radicalmente o que está em jogo na realidade histórica – e, mais radicalmente ainda, o real em jogo nessa realidade, se entendermos o real aqui mencionado como o que nela opera como elemento causal e se mantém velado ao entendimento conceitual que se pode aplicar a ela. Lula desconhece esse real, e cabe a nós, sociedade civil brasileira, exercer a nossa posição crítica para gerar tensões consequentes com esta posição adotada por ele, presidente em que votamos, que elegemos, e que está à frente de um governo que apoiamos – ainda que não in totum e não incondicionalmente.

Alega-se que Lula estaria agindo com sabedoria, no sentido de que o momento do Brasil é por demais delicado para que se faça o que se deve fazer – a investigação mais ampla possível e a consequente punição dos militares que, em nome da suposta defesa do Estado brasileiro, cometeram crimes durante da ditadura militar. Não defendiam nenhum “Estado brasileiro”, mas o domínio da elite e do capital, a desigualdade econômica e social, os interesses norteamericanos (sem cujo apoio não teriam dado o golpe, adiado desde o suicídio de Vargas e o “contragolpe preventivo do golpe militar que queria impedir a posse de Juscelino, dado pelo general Lott) e combatiam, por mera inversão: a justiça social que se anunciava com o governo de João Goulart, um pacto social civilizatório, uma igualdade de direitos, um desenvolvimento econômico verdadeiro e revertido nos mais amplos e diversos benefícios sociais para a população em larga escala.

O auto-denominado “milagre brasileiro” da ditadura só esgarçou mais ainda a desigualdade social, a miséria e a fome, a miserabilização da pobreza, e consequentemente a violência social, a insegurança pública, porque enraizada na insegurança alimentar, de emprego, de acesso à educação e à saúde, etc. etc. etc. – como é exaustivo ter que repetir isso tudo! Só dá pra aguentar mesmo com as palavras da genial música brasileira: “A lição sabemos de cor, só nos resta aprender” (Beto Guedes) ou “Será que esta minha estúpida retórica terá que soar, terá que se ouvir por mais zil anos?” (Caetano Veloso).

Lula sabe disso tudo, é claro, e é um estadista que sabe como combater a fome – e até acabar com ela! Mas o que ele não sabe, mas não sabe mesmo, é que, se ele nega a memória do golpe, chama de “remoer” o que seria “des-comemorar” na perspectiva de um trabalho histórico da sociedade e do Estado brasileiros como forma de criar o novo na história, ele fica mais ainda na mão dos demônios da repetição fascista.

Perguntemos: por que o momento atual do Brasil é delicado, no sentido de um risco de novo golpe militar? Que análise de conjuntura dá fundamento a tamanho receio? Não seria justamente o contrário? O fracasso da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, a investigação e a punição dos seus atores, agentes e financiadores, inclusive muitos militares, a apuração dos crimes de Bolsonaro e sua gangue, o esclarecimento do assassinato de Marielle Franco – apenas no sentido, nada desprezível, de chegar aos nomes de seus mandantes, para o que o governo Bolsonaro criou toda sorte de obstáculos, porquanto mantém com esses mandantes importantes relações e conexões notórias e outras ainda por esclarecer, enfim, tudo isso não configura uma situação favorável a todas as manifestações, inclusive promovidas pelo Estado, em memória e abominação ao golpe de 1964? Qual é, efetivamente, o risco? O medo, nesse caso, reafirma um poder que sequer existe de fato dos militares. Fazer esse tipo de concessão jamais deu certo, pois eleva o grau em que quem concede se torna refém daquele a quem se concede. Líderes de esquerda como Nilmário Miranda, por exemplo, que foi Ministro de Direitos Humanos do primeiro governo Lula e hoje ocupa um importante cargo na restauração da Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério comandado por Silvio de Almeida, afirmam, em entrevista à Folha de São Paulo, que Lula sabe o que faz, e que só nos cabe seguir suas recomendações. Por que essa posição de submissão? Claro que, se houver uma tensão que leve a uma oposição frontal entre Ministério e Governo, um rompimento e a saída do ministério será inevitável. Mas será que não existem mediações, tensões suportáveis, divergências que pudessem afetar e até mudar o presidente em sua posição? Quando se é presidente se fica inflexível, inafetável, imutável? Será que é assim?

Há muitos outros elementos a considerar e debater, mas vou me limitar a um, que considero estrutural, e que assimilei de uma entrevista dada por Luiz Eduardo Soares a Juca Kfouri, na TVT, e que ouvi esta tarde de Páscoa e de véspera dos 60 anos do golpe, sobre os quais o presidente Lula prefere silenciar. A questão de fundo da entrevista era: “O caso Marielle Franco pode ser considerado encerrado?”. Claro que não, e a conclusão das investigações que identificaram os mandantes do crime é só a ponta do iceberg que poderia levar a que ele seja todo vasculhado e, numa feliz imagem de Natuza Nery há poucos dias, “a pena que permite puxar a galinha inteira”, a galinha podre da conexão polícia-política do Rio de Janeiro, extirpação do câncer a corrói este Estado há décadas.

Mas Luiz Eduardo Soares vai mais fundo na análise das condições de possibilidade dessa extirpação. Ele mostra que, na transição democrática de 1988, uma peça-chave do processo foi blindada, um sapo foi engolido pelos constituintes democráticos (isto é, pela sociedade brasileira inteira, por todos nós), e que é um derivado da ditadura militar (que por sua vez é derivada de um processo histórico brasileiro que recua muito mais ainda no “passado” que não passa e por isso se repete). O poder dos militares no Brasil sempre esteve à margem do poder instituído, da institucionalidade democrática, do Estado de Direito. As Forças Armadas jamais se submeteram à ordem democrática do Estado civil, eleito, democrático, e essa sua posição de “fora da lei” é a base do permanente “fantasma de golpe”. A caserna sempre pode armar um golpe, é preciso não “pegar pesado com eles” – eles é que são os que sempre pegam pesado. Na constituição de 1988, pactuamos com a formação de compromisso do artigo 142, cuja interpretação é: “não mexam nas Forças Armadas e na Polícia”, sejam quais forem os pareceres emitidos pelos parlamentares para dar este ou aquele sentido ao texto do artigo.

Para Luiz Eduardo, está nesta concessão a raiz, o ovo gerador de muitas galinhas podres, mas particularmente a do Rio de Janeiro, onde o poder público sempre considera que faz parte do jogo político a associação com tráfico, com milícia, com a polícia “paralela”, até o ponto em que podemos interrogar se ela é mesmo paralela ou já se tornou o eixo central, pois o próprio Estado é habitado por ela.

Em suma, a cura de tamanha e complexa “doença institucional” não é técnica nem jurídica, não será encontrada pelo campo da Segurança Pública ou do Direito. A solução é política e, mais do que isso, ela tem uma dimensão nacional. “É preciso o Brasil para isso”, conclui Luiz Eduardo. Ora, se a solução é política e de nível nacional, é bem evidente que o presidente da República, o governo que ele representa, como Estado brasileiro, está intestinamente implicado nessa solução.

O que só torna mais complicada a posição adotada por Lula, justamente num dos momentos mais cruciais de todo o processo: o momento em que está em ebulição, e portanto ofertado publicamente a todos nós, presidência à frente do processo, totalmente aquecido, no ponto certo para uma intervenção certeira, a trama de mil fios que o assassinato de Marielle Franco constitui, com uma ponta de fio exposta para ser puxado o novelo. E o momento em que acaba de começar a noite em que, há 60 anos, iniciava-se o aborto do futuro do Brasil.

#ACORDALULA

Luciano Elia é psicanalista, ativista de direitos humanos e sociais), membro do Laço Analítico/Escola de Psicanálise, do PUD – Psicanalistas Unidos pela Democracia do Mestrado Profissional em Psicanálise e Políticas Públicas da UERJ/Campus Zona Oeste. [email protected]

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Redação

1 Comentário

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  1. Errado.
    A negação de Lula é muito pior que a do antecessor.

    A negação do antecessor é coerente com a história dele, a história dos que venceram, e contam a história como convém.

    A negação de Lula é a negação de si mesmo, de todos nós.

    E a negação dos derrotados, dos que não têm voz, e só poderiam falar pela voz dele.

    A negação de Lula é a voz do Cabo Anselmo e de todos que traíram a memória dos que sucumbiram, mas vivem na memória que agora Lula quer sufocar.

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