Chile: polêmica sobre aborto derruba ministra da Saúde

Ex-ministra Helia Molina

Frederico Füllgraf

Exclusivo para Jornal GGN

Soou como trocadilho de humor negro: com nove meses exitosos à frente do ministério da Saúde de Michelle Bachelet, no último dia 30 de dezembro, a respeitada médica e ministra Helia Molina violou o pacto da hipocrisia silenciosa que tentava esconder o que todo mundo sabia no Chile: que em clínicas privadas, de alto custo, “famílias conservadoras fazem abortar a suas filhas”. Da direita à esquerda governista ergueu-se um coro de fingida indignação e Helia Molina renunciou ao cargo – a primeira baixa no governo da Nova Mayoría e metáfora de uma gravidez política interrompída.

Ao assumir seu segundo mandato, em março de 2014, a presidenta Michelle Bachelet prometeu acabar com o entulho autoritário do Estado pinochetista, do qual restam leis em vigência, como a penalização criminal do aborto, aprovada em setembro de 1989, no apagar das luzes da ditadura. Diz a lei: “Não poderá executar-se nenhuma ação cuja finalidade seja provocar um aborto”. Em pleno governo Sebastián Piñera (2010-2013), 221 chilenas cumpriam pena por aborto ou auxílio prestado à prática considerada “criminosa”.

É consenso entre movimentos por direitos reprodutivos, a ONU, especialistas médicos e o pensamento ético não-confissional que, longe de ser uma bênção física e psicológica para a mulher, o aborto clama por regulamentação exatamente porque tornou-se uma calamidade psicosocial em escala planetária, principalmente entre adolescentes.

Caso que causou massiva repulsa internacional em 2013, foi o da pequena Belén, de 11 anos de idade, que engravidou após estupro reiterado pelo padrasto, no sul do Chile. Não bastasse o estupro da criança, a lei pinochetista não permitiu o aborto, proibido até mesmo em caso de violação. A Belén, que ainda brincava com bonecas e cuja família vive em regime de pobreza, não restou alternativa senão sujeitar-se à lei infamante e dar à luz o filho do bandido.

Belén, um caso tornado público acidentalmente, transformou-se em símbolo de milhares de outros crimes de estupro e gravidez precoce.

A ministra Molina e a descriminalização do aborto

Com 24 anos no poder, os governos democráticos pós-pinochetistas não conseguiram evitar o aborto clandestino, cujos números, apenas estimados, cresceram assustadoramente.

Dados do Ministério da Saúde chileno indicam a passagem pelos hospitais, públicos e privados, de 33.000 mulheres submetidas ao aborto, não estabelecendo distinção entre casos espontâneos e provocados. “Estes números são apenas a ponta do iceberg”, adverte a Rádio Universidade do Chile online, corroborada pelo relatório anual de Direitos Humanos da Universidade Diego Portales, que estima o número anual de abortos provocados em 70.000 – número que Ramiro Molina, fundador do Centro de Medicina Reprodutiva e Desenvolvimento Integral do Adolescente, da Universidade de Chile, sem pestanejar corrige para seu exato dobro: 140.000.

O atraso do jurisprudência chilena sobre direitos reprodutivos não é crônico e, sim, meramente acidental, pois em 1989 a ditadura pinochetista anulou o direito ao “aborto terapêutico” existente no país andino desde 1931.

A ministra Molina tentou resgatar esse direito, despenalizando o aborto para três circunstâncias: em caso de perigo de vida da mãe, malformação fetal e estupro. Em atenção às pressões das Igrejas e do eleitorado conservador, nenhuma liberação integral, portanto, mas apenas uma liberalização seletiva da interrupção da gravidez.

Os granfinos mandam abortar em Cuba

O tropeço da ministra Molina – que em seu currículo ostenta respeitáveis consultorias para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a UNICEF e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) – não foi sua política, integralmente apoiada pela presidenta chilena, mas sua frase “En todas las clínicas cuicas, muchas familias conservadoras han hecho abortar a sus hijas”.

A ministra mentiu? Não. O que soou desafinado aos ouvidos dos conservadores foi a palavrinha cuica, que na gíria chilena não designa o popular instrumento musical, mas condição de classe: a “granfinagem”.

Helia Molina apenas soprou a poeira de uma placa de sinalização que a chamada “elite” chilena prefere ocultar: a “rota do aborto”, utilizada de forma discreta para interromper a gravidez de suas mulheres e filhas em clínicas de Buenos Aires, Miami e – quem diria – da maldita Havana, em Cuba.

Ou o avião para esses três destinos, baratos, ou o desembolso de 4.0 milhões de Pesos chilenos (aprox. 8,0 mil dólares), cobrados por clínicas privadas, que no Chile movimentam a indústria clandestina do aborto, onde as intervenções são registradas como “apendicite” e não raramente têm desfecho fatal, com a morte da grávida; a terceira causa mais grave de mortalidade feminina no Chile. É mais: pesa sobre algumas das clínicas a suspeita de comércio clandestino de adoção de crianças.

Enquanto o presidente do Partido Socialista, Osvaldo Andrade, resmungou que “era insustentável que [a ministra] continuasse em seu cargo”, em sua maioria, a opinião pública parece ter tomado as dores da ministra Helia, elogiada como corajosa, porque disse a verdade, sequer o fazendo em declaração pública, mas off the record, durante uma entrevista anotada.

 

Redação

8 Comentários

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  1. Ninguém ama o aborto

    Em sã consciência ninguém ama o aborto.

    Nenhuma mulher engravida para abortar.

    Nenhuma mulher sonha em sua vida de menina e jovem, em abortar.

    Mas quando a situação de uma gestação indejada acontece, o que fazer.

    Num mundo de pessoas minimamente inteligentes algumas questões então se colocam:

    QUEM DECIDE?

    A mãe? 

    A familia?

    AS IGREJAS?

    O governo?

    Religiões devem orientar e tratar desses assuntos COM SEUS ADEPTOS, nao tendo o direito de estabelecer leis gerais. Orientem suas adeptas, e limitem-se a isso.

    Governos devem se preocupar com saude publica. E ESSE É ASSUNTO DE SAUDE PUBLICA, quanto a politicas gerais de saúde. 

    A DECISAO caso a caso deve caber à mãe.  Mãe e pai, este geralmente ausente se não foragido.

    Como esclarece o artigo, infelizmente na America Latina vivemos dificuldades.

    As ditaduras acabaram, mas NÃO ACABOU O DESMANDO DE SUAS LEIS.

    As ditaduras acabaram MAS NÃO ACABOU A ESTRUTURA DE CONCESSOES DE MIDIA INSTAURADAS POR ELAS.

    As ditaduras acabaram, o tempo de sermos colonias europeias e de impérios passou, MAS A ESTRUTURA DE INFLUENCIA RELIGIOSA PERSISTE. Localmente mudam os atores, mas a estrutura é a mesma.

    Essa estrutura derrubou a ministra chilena.

    Espero que a gente chilena seja grande e forte para superar, com coragem, o arcaísmo de muitas de suas estruturas.

    No Brasil, nem se fala . Há um tudo a reconstruir, em muitos aspectos, sem perder o que conquistamos com Lula e Dilma nos últimos 12 anos.

    Uma Patria Grande Latinoamericana LAICA é o que esperamos.

     

     

  2. A verdade continua revolucionaria

    Essa mulher merece o premio Nobel da ANTI-HIPOCRISIA.

    A admiro muito. Pena que no Brasil isso não aconteça, todos políticos (Dilma inclusa) preocupados em não ofender as igrejas e a burguesia hipócrita nacional (mas que se avalem das clínicas particulares para fazer abortar suas mulheres).

  3. Lá, como cá

    No Brasil pratica-se aborto cotidianamente, de norte a sul do país.  De vez em quando aparece uma situação como aquela do Rio, em que uma grávida morreu quando se realizava o aborto. Como o procedimento é “clandestino”, os médicos e profissionais envolvidos não tomam os cuidados necessários, pois sabem que não haverá fiscalização de ninguém.

    A última gritaria contra o descaso e a clandestinidade dessa intervenção em nosso país aconteceu a partir de setembro, quando faleceram 2 mulheres por gravidez interrompida de maneira insegura.

    Estudo da Uerj estima que em 2013 pelo menos 865 MIL procedimentos ilegais de aborto ocorreram, no Brasil.  

    http://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2014/09/28/interna_nacional,573606/cerca-de-865-mil-mulheres-fizeram-abortos-ilegais-no-brasil-em-2013.shtml

     

  4. DESCRIMINALIZAÇÂO E

    DESCRIMINALIZAÇÂO E REGULAMENTAÇÂO DO ABORTO JÁ !!!

     

    “O BRASIL PARA TODOS não passa na REDE GLOBO DE SONEGAÇÂO & GOLPES – O que passa na REDE GLOBO DE SONEGAÇÂO & GOLPES é um braZil-Zil-Zil para TOLOS”

  5. DESCRIMINALIZAÇÂO E

    DESCRIMINALIZAÇÂO E REGULAMENTAÇÂO DO ABORTO JÁ !!!

     

    “O BRASIL PARA TODOS não passa na REDE GLOBO DE SONEGAÇÂO & GOLPES – O que passa na REDE GLOBO DE SONEGAÇÂO & GOLPES é um braZil-Zil-Zil para TOLOS”

  6. Las cuicas de ca, iguais.

    Quando me lembro das conversas que tive com alguns chilenos classe média, acho que essa situação não mudara tão rapido por la, tanto o conservadorismo e moralismo estão arraigados. Alias, até 2003 o divorcio ainda não existia no Chile, apenas o desquite era possivel. Não surpreende que o aborto tenha sido, então, abolido em todos os niveis e que um ministra caia por tentar avançar esse retrocesso. 

    Olho para o horizonte da América Latina e não sei ainda quando veremos a questão do aborto, como do casamento gay, sendo tratada sem a mão de ferro das igrejas manipulando essas questões civis. No Brasil, ali na fronteira da Guiana Francesa, muitas mulheres tentam passar a fronteira clandestinamente para conseguir abortar. A realidade é que as mulheres sempre abortaram e continuarão a abortar clandestinamente, arriscando suas vidas. Até aqui, somente elas pagaram o preço.  

  7. Descriminalização

    A ONU admite em um documento elaborado para uma reunião na próxima semana em Viena que os objetivos na luta mundial contra as drogas não foram cumpridos até agora e sugere pela primeira vez a descriminalização do consumo de entorpecentes.

    “A descriminalização do consumo de drogas pode ser uma forma eficaz de ‘descongestionar’ as prisões, redistribuir recursos para atribuí-los ao tratamento e facilitar a reabilitação”, afirma um relatório de 22 páginas do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC), ao qual a Agência Efe teve acesso.

    A UNODC não quis fazer comentários à Efe sobre o conteúdo do documento, mas várias fontes diplomáticas especializadas em política de drogas concordaram que é a primeira vez que o organismo menciona a descriminalização de forma aberta.

    A descriminalização do consumo pessoal, já aplicado em alguns caso no Brasil e vários países europeus, supõe que o uso de drogas seja passível de sanções alternativas ao encarceramento, como multas ou tratamentos.

    No caso específico Uruguai foi legalizada a compra e venda e o cultivo de maconha, e estabelecida a criação de um ente estatal regulador da droga.

    Em qualquer caso, a descriminalização não representa uma legalização nem o acesso liberado à droga, que segundo os tratados só pode ser usada para fins médicos e científicos, mas não recreativos.

    Portanto, o consumo seguiria sendo sancionável (com multas ou tratamentos obrigatórios), mas deixaria de ser um delito penal. A UNODC assegura no relatório que “os tratados encorajam o recurso a alternativas à prisão” e ressalta que se deve considerar os consumidores de entorpecentes como “pacientes em tratamento” e não como “delinquentes”.

    Logo de cara ganharia a sociedade, porque A GUERRA contra as drogas seria imediatamente suspensa.

    Com o aborto deveria ser da mesma forma. Não é questão do Estado ser laico ou não, não tem nada a ver com hipocrisia ou discriminação contra as religiões é questão de direito a vida.

    A mulher que não desejar o filho que gera no ventre teria a oportunidade de doação. Acontece que tanto quem defende o aborto como quem criminaliza, preferem o caminho mais fácil, criar e manter instituições de tratamento tanto para as drogas qto para o aborto, da trabalho e gera responsabilidade e compromisso.

  8. Tanto lá como aqui, os

    Tanto lá como aqui, os conservadores vivem na hipocrisia, destilam ódio contra a liberdade individual, mas quando a filha aparece grávida, obrigam-na a abortar. Conservadores são iguais em qualquer canto do mundo… e a prova viva disso vai assumir como Senador e por coincidência abortou lá no Chile.

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