É preciso que estejamos atentos e fortes por nossas crianças, por Bárbara Luisa Gil

A verdade é que as últimas décadas têm confirmado uma realidade incômoda que há muito já se sabia, mas que permanecia escondida atrás da privacidade da família e de seu domínio patriarcal: o ambiente familiar é o mais perigoso para mulheres e crianças.

Foto Observatório 3o. Setor

É preciso que estejamos atentos e fortes por nossas crianças

por Bárbara Luisa Gil

Ontem eu estive sem palavras, mas hoje a dor de cabeça ininterrupta me indicava que era preciso externar a força do expressar. O caso da menina de 10 anos que sofria com estupros desde os 6 e realizou um aborto conturbado, é só mais um exemplo dentre tantos que demonstram uma das maiores chagas de nossa sociedade: a violência sexual contra as crianças.
O mês de agosto começou com duas denúncias chocantes, mas infelizmente sobre realidades comuns. No Espírito Santo, uma criança desesperada chorava por ter uma de suas maiores dores reveladas a partir de uma novidade ainda mais traumática: sua gravidez aos 10 anos de idade. No Rio de Janeiro, uma casa que funcionava como um estúdio de pornografia infantil (me dói só de ter que escrever essas palavras) foi descoberta. Segundo o delegado, em todos os seus anos de polícia, nunca vira cenário tão macabro. Os vídeos ali produzidos eram vendidos para todo o mundo na deep web e seu autor pode estar envolvido em uma rede ainda maior que abrangeria, para além da pedofilia comprovada, tráfico sexual.
Mas o que dói é saber que esses casos são ainda mais corriqueiros do que podemos imaginar. Nas profundezas da deep web, existe um mundo obscuro com o qual boa parte de nós não teria estômago para lidar. Se você, assim como eu, se enoja com os discursos de ódio proferidos abertamente nas redes sociais, provavelmente não suportaria ver ou conhecer toda a obscuridade humana contida abaixo do precipício da dignidade. Mas dói ainda mais perceber que tudo que se encontra lá, pode também ser tão frequente no abismo atrás das quatro paredes das casas das famílias. No interior da privacidade que pleiteia a instituição familiar, moram monstros terríveis escondidos sob a pecha das pessoas de bem — ou não. Não é preciso se aprofundar muito nas pesquisas para se obter dados nefastos: segundo o Disque 100, mais de 70% dos casos de abuso ou exploração sexual de crianças no país são cometidos por membros de suas famílias.
De outro lado, dados recentes têm demonstrado o aumento vertiginoso de casos de violência contra a mulher no período de afastamento social, suscitado pela atual pandemia. No Rio de janeiro, ainda no mês de março de 2020, houve um aumento de 50% no número de denúncias de violência contra a mulher. Mas o que estes problemas têm em comum?
A verdade é que as últimas décadas têm confirmado uma realidade incômoda que há muito já se sabia, mas que permanecia escondida atrás da privacidade da família e de seu domínio patriarcal: o ambiente familiar é o mais perigoso para mulheres e crianças.
Mas e o caso do estúdio de pornografia do Rio de Janeiro, que relação tem com isso?
Para além de se tratar de violência e exploração sexual de crianças e adolescentes, o que por si só já carrega consigo a gravidade da questão, o fio que interliga todos estes casos é a ideia de dominação e sujeição tão presente em nossa estrutura social. Alguns consideram a deturpação do sexo uma patologia individual que poderia eximir de seu autor a responsabilidade da culpa, mas a realidade é que ele constantemente é utilizado como forma de dominação e poder de um ser sobre outro mais vulnerável. E este não é um problema individual: ele é estrutural. Estrutura nossa sociedade e é perpetuado concomitantemente aos hábitos que o conformam. Eles estão entranhados no dia a dia com a objetificação de corpos, desumanização de pessoas e silenciamentos.
Essa não é uma ferida aberta que sangra somente no seio das famílias em que estes casos ocorrem. Na realidade, ela macula toda uma sociedade que fecha os olhos para o que não quer ver e se abstém da culpa sobre aquilo que a estrutura. A ideia de dominação e sujeição está na base de nossa civilização e apodrece nossa sociedade; nos apodrece. Por isso, é preciso que estejamos atentos e fortes na defesa daqueles e daquelas que são vulneráveis. Mulheres e crianças necessitam ser livres.
Enquanto grupos cristãos e antiaborto vão às ruas acusar de assassina uma criança de 10 anos de idade (e Sara Winter comete o crime de divulgar o nome da criança e o local em que seria feito o procedimento), milhares de crianças são abusadas no interior de suas famílias sob o véu do moralismo e dos bons costumes. Enquanto alguns se importam com uma criança que não nasceu, outras tantas que poderiam ser felizes e verdadeiramente vivas, sofrem caladas aos abusos que são expostas e aos constrangimentos que são submetidas por uma sociedade deteriorada, que se importa mais com as aparências do que com a realidade. Enquanto fingem viver suas vidas castas na superfície, as rasas profundezas e seus monstros se perpetuam à distância de apenas dois palmos. A sociedade está preocupada em conservar a maçã com a casca vermelha e brilhosa, apesar de seu interior nitidamente podre.
São verdades duras de serem encaradas. São doenças feias e que não são fáceis de serem tratadas, mas enquanto fingimos que não vemos, o câncer cresce e nos mata por dentro. Acaba com nosso futuro.
Se desejamos ser motores de mudanças, é preciso que estejamos atentos e fortes.
Bárbara Luisa Gil – Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da mesma universidade. Pesquisa política e representação, gênero e desigualdades.
Redação

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