Kaepernick: mais que um atleta, o símbolo de uma revolução, por Gianluca Florenzano

Ao ver atletas ajoelhados em protesto, lembre-se sempre do significado do gesto e do legado social de Colin Rand Kaepernick.

Michael Zagaris

Kaepernick: mais que um atleta, o símbolo de uma revolução

por Gianluca Florenzano

Grandes atletas não se formam apenas pelas suas altas performances dentro das quadras e campos. Longe disso, se formam também pelas suas posturas sociais fora das arenas esportivas e pelo legado que deixam para as gerações futuras.

Sob esse aspecto, sem dúvidas, podemos dizer que Colin Rand Kaepernick é um dos maiores atletas de todos os tempos. Dentro de campo, jogando pelo San Francisco 49ers, com seus lançamentos precisos e as suas corridas praticamente imparáveis, ele ficou conhecido por revolucionar a posição de quarterback – a mais prestigiada do futebol americano.

Desse modo, se antes, os quarterbacks se atentavam somente em fazer lançamentos; agora, inspirados no então jogador do San Francisco 49ers, muitos passaram a correr também com a bola oval embaixo dos braços para ludibriar ainda mais os sistemas defensivos adversários.

Kaepernick, no entanto, não entraria para a história do esporte mundial pela sua técnica e alta performance. Isso, de certo modo, ficaria em segundo plano. Ele, na verdade, conquistaria a admiração dos torcedores, ao menos aqueles do campo progressista, pela sua atitude.

Tudo começou em 2016. Mais precisamente, no final daquele ano, entre a transição do governo democrata de Barack Obama para a administração republicana de Donald Trump. Naquela época, as ruas fervilhavam em marchas que clamavam pelo fim da violência policial contra a comunidade afro-estadunidense.

O governo Obama, aliás, ao longo dos anos, de certo modo, ficou marcado por casos de mortes de jovens negros devido ao descaso e ao uso excessivo de força dos agentes de segurança pública. Em 2014, por exemplo, na cidade de Ferguson, em Missouri, o jovem Michael Brown, de apenas 18 anos de idade, apesar de estar desarmado, foi alvejado 6 vezes pela polícia durante uma abordagem. A morte de Brown provocou a ira da população local que tomou as ruas da cidade para protestar contra a brutalidade policial.

Um ano mais tarde, era a vez da cidade de Baltimore, em Maryland, ver a fúria de sua comunidade negra ser despertada depois que Freddie Gray, de 25 anos, foi morto brutalmente por policiais. Gray foi abordado após, supostamente, fazer “contato visual” com as autoridades e fugir em sua bicicleta. Ao ser preso, suas mãos ficaram amarradas por fitas plásticas e ele foi colocado no chão de uma van policial sem o cinto de segurança. Durante o trajeto à delegacia, o jovem bateu a cabeça e ficou desacordado. Depois de um tempo, ele foi levado finalmente ao hospital, no entanto, já era tarde demais. Mesmo passando por duas cirurgias, Gray não resistiu e acabou falecendo.

O caso mais simbólico, porém, aconteceu em 2012, na cidade de Sanford, na Flórida. Trayvon Martin, de apenas 17 anos, foi confundido com um bandido por um vigilante voluntário ao voltar para a casa do seu pai usando um capuz. No tribunal, George Zimmerman, o vigilante voluntário, alegou que atirou no jovem em legítima defesa. Esse argumento bastou para que ele fosse absolvido pelo júri.

Indignados com o resultado do julgamento, a comunidade negra de Sanford promoveu protestos pela cidade. Além disso, para retratar a desumanização e a indiferença do sistema de Justiça estadunidense com os negros, a ativista Alizia Garcia, publicou uma postagem no seu Facebook que foi comentada com a seguinte hashtag: #blacklivesmatter. A partir daí, surgia um dos principais movimentos de combate ao racismo dos Estados Unidos e, posteriormente, do mundo, o Black Lives Matter.

Voltando ao Kaepernick, não se sabe ao certo qual foi o caso, ou se foi a soma deles, que provocou a sua indignação, no entanto, o então quarterback do San Francisco 49ers mudaria a história do esporte mundial.

Dia 1 de setembro de 2016, cidade de San Diego, na Califórnia. À princípio, era para ser uma partida qualquer de pré-temporada entre o San Francisco 49ers e o San Diego Chargers. Entretanto, na execução do hino nacional dos Estados Unidos, Kaepernick, juntamente com o seu então colega de time, Eric Reid, em forma de protesto contra a violência policial e o racismo resolveram se ajoelhar.

Quando os joelhos dos dois atletas tocaram o chão, rapidamente o estádio inteiro entrou em ebulição e começou a vaiá-los. A torcida, especialmente os torcedores que se identificavam com o lado conservador, viam aquilo como um desrespeito à bandeira do país.

As vaias, no entanto, não intimidaram os jogadores. Ao contrário, formava-se naquele momento um movimento de atletas, das mais variadas equipes de futebol americano e, posteriormente, de outras modalidades, que passaram a se ajoelhar em protesto contra o racismo no hino nacional dos Estados Unidos.

Se, por um lado, o movimento de atletas, liderado por Kaepernick, passava a mobilizar a população a aderir à luta antirracista; por outro lado, eles provocam a ira de grupos nacionalistas e ultraconservadores e, em especial, em Donald Trump.

Valendo-se de sua nova função como presidente e evocando o discurso do patriotismo, Trump instigava sua base eleitoral a se colocar contra os atletas que estavam se ajoelhando no hino nacional. Além disso, publicamente, ele pressionava os donos das franquias do futebol americano que, em grande parte eram seus apoiadores, a punirem os jogadores.

Por mais que o republicano fizesse pressão, de uma maneira inusitada, a NFL (National Football League – a Liga de Futebol Americano dos Estados Unidos), não puniu nenhum dos atletas que estavam se ajoelhando. Exceto um. A punição ao movimento de atletas contra o racismo caiu toda sobre os ombros de seu líder, Colin Kaepernick.

Com a justificativa de que era por questões técnicas (e não políticas), o San Francisco 49ers, dispensou, ao término do contrato, em 1 de janeiro de 2017, Kaepernick. E, desde então, o então quarterback não encontrou espaço em mais nenhuma franquia do futebol americano.

Desse modo, ironicamente, o jogador que revolucionou a posição de quarterback, passando a correr com a bola oval embaixo de seus braços para furar os bloqueios adversários; agora, não tinha mais oportunidade em nenhum time do futebol americano por, conforme os donos das franquias, questões técnicas.

Com o líder “banido” dos gramados, os demais jogadores que faziam parte do movimento de atletas contra o racismo, temendo sofrer a mesma punição que Kaepernick, pararam de se ajoelhar durante a execução do hino nacional dos Estados Unidos. Sendo assim, sem recorrer a qualquer tipo de punição ou ação apelativa, a NFL atendia o desejo de Trump de cessar o movimento dos atletas. Logo, o futebol americano e, consequentemente os outros esportes, sob a ótica conservadora, voltavam à normalidade, ou seja, voltavam apenas para o entretenimento.

O que parecia ser um “problema resolvido”, com Kaepernick fora dos gramados, anos mais tarde, em 2020, voltaria à tona. Impulsionados pelas manifestações antirracistas que tomavam conta dos Estados Unidos e do mundo depois da morte de George Floyd, os atletas, ao menos aqueles comprometidos com a causa negra, retornaram com o gesto simbólico de se ajoelhar durante o hino.

Mesmo assim, Kaepernick não pisou mais nos gramados, pelo menos profissionalmente, da NFL. Seu legado, no entanto, continua a ecoar nos times de futebol americano, em outros esportes e em diversos países. Atletas de basquete, vôlei, futebol, dentre outras modalidades, espalhados pelo planeta passaram a reproduzir o gesto de Kaepernick de se ajoelhar.

Mais do que isso, em alguns casos, ampliaram o seu significado. A seleção masculina inglesa de futebol, por exemplo, durante a Copa do Mundo do Qatar de 2022, se ajoelhou antes do apito inicial de todas as suas partidas para protestar contra as violações de direitos humanos cometidas pelas ditaduras árabes e em favor dos direitos da comunidade LGBTQIA+ na região.

Dessa maneira, o movimento criado por Kaepernick de combate à discriminação racial dentro do futebol americano, não apenas alçou voo para outros esportes como também passou a abranger outras lutas sociais.

Portanto, ao ver atletas ajoelhados em protesto, lembre-se sempre do significado do gesto e do legado social de Colin Rand Kaepernick.

Gianluca Florenzano (escritor, mestre em ciências sociais, jornalista e pesquisador. Autor do livro “O jogo das ruas: movimento de atletas contra o racismo”).

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  1. “Entende-se que o escritor deva escrever a verdade no sentido de que não deve suprimi-la ou silenciá-la, nem escrever inverdades, nem curvar-se perante os detentores do poder, muito menos enganar os fracos. Naturalmente, é muito difícil não se curvar diante dos poderosos e é muito vantajoso enganar os fracos.

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    https://www.marxists.org/portugues/brecht/1934/mes/verdade.htm

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