Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri
Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora
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O risco do Estado teocrático, por Dora Incontri

É preciso que reajamos a essa escalada bíblica, antes que tenhamos todo poder político tomado por pessoas terrivelmente evangélicas!

O risco do Estado teocrático

por Dora Incontri

Vimos na semana passada o espetáculo bizarro de policiais militares sendo capacitados numa igreja evangélica no Distrito Federal. O fato ainda está sob investigação, mas ele é um exemplo incontestável da tenebrosa mescla que se dá entre a esfera da religião e a esfera pública no Brasil.

Quando no início do século XX, o educador espírita Eurípedes Barsanulfo foi vereador da cidade de Sacramento (MG), ele já apontava a necessidade de se arrancarem os crucifixos da câmara da sua cidade, entendendo que o Estado é laico e não pode privilegiar nenhuma religião. Quando eu mesma fui fazer no início deste século – portanto 100 anos depois – um projeto pedagógico em escolas públicas em Bragança Paulista, onde moro, me deparei com retratos de bispos e com crucifixo nas paredes. Não sei se 20 anos depois ainda lá estão. Esses dois cenários mostram com um intervalo de um século, que a República brasileira nunca conseguiu se livrar do amálgama inconstitucional com a religião.  Antes, porém, isso era obra da Igreja Católica que foi a matriz mais forte de nossa cultura, e reprimiu durante séculos outras manifestações religiosas no país.

Mas… a Igreja católica se transformou (embora ainda muitas de suas estruturas autoritárias persistam e setores conservadores gostariam de ver o Papa Francisco deposto ou morto) e nas décadas de 70 e 80, tendo-se iniciado nos anos 60, espalhavam-se as Comunidades Eclesiais de Base, inspiradas na Teologia da Libertação, com sua crítica social, opção preferencial pelos pobres e influência de ideias socialistas. Ora, no projeto de desinstalação de qualquer tendência à esquerda da América Latina e particularmente do Brasil, orquestrado, como sempre, pelo Império norte-americano, está um investimento maciço do neopentecostalismo, que vai alinhado não apenas com a teologia da prosperidade (que prevê uma retribuição econômica de Deus ao crente que paga o dízimo e adere à igreja), mas também explicitamente com a teologia do domínio.

Essa teologia, no espectro da extrema direita, justamente quer tomar posse das Leis, dos governos, dos costumes, com forte inspiração do Velho Testamento – porque não há como se propor um projeto de poder com base nas palavras de Jesus, que dizia não ter vindo para ser servido, mas para servir… embora o nome de Jesus seja usado e abusado.

Com a ditadura militar no Brasil e com o avanço colonialista das Igrejas neopentecostais, a face religiosa brasileira foi se transformando. Foi ficando mais intolerante, mais fanática, mais metida na política, mais atrevida em suas ações públicas e temos até uma Baby do Brasil anunciando o Apocalipse e o “arrebatamento”, em pleno Carnaval… Temos até um Caetano Veloso, confesso ateu, gravando um gospel com o pastor Kleber Lucas.

E agora? Agora temos um Congresso com uma bancada bíblica, temos escolas com professores fazendo exorcismos em sala de aula, temos PMs treinados nas igrejas, temos um ministro do Supremo, terrivelmente evangélico, e temos um povo querendo que a Bíblia se sobreponha à Constituição. E há um projeto claro, planejado, de poder, que o anticristo Edir Macedo fez o favor de delinear no livro que intitulou: Plano de Poder. Não são todos os evangélicos, não são todos os pentecostais, não são todos os cristãos que participam consciente ou inconscientemente dessa escalada de fanatismo e dominação. Mas são muitos, em progressão geométrica. Parte da população negra, que antes cultivava seus Orixás e praticava rituais de sua ancestralidade, hoje está rendida a pastores que exploram a fé e, o que é pior, fazem-na acreditar que suas raízes religiosas, ancestrais, são na verdade demoníacas. O mesmo crime se comete contra indígenas, cujos pajés são convertidos em pastores e passam a abominar suas tradições.

E toda essa vertente fundamentalista faz política da maneira mais degradante possível. Daquela iniciativa das Comunidades Eclesiais de Base, que constituía um resgate do poder comunitário pelo povo, num cenário de ecumenismo cristão, em que participavam católicos, metodistas, luteranos, presbiterianos, passamos a uma política de manipulação das massas, agressiva, intolerante, com Malafaias da vida, que não escondem a exploração econômica de seus seguidores e a adesão aos projetos mais extremistas para os rumos do Brasil.

Essa imagem abaixo é uma advertência que nos dá arrepios. Antes e depois do Irã fundamentalista, governado pelos aiatolás. Como dizia a nossa Ritinha (a Lee): “tem sempre um aiatolá para atolar Alá”!

É preciso que reajamos a essa escalada bíblica, antes que tenhamos todo poder político tomado por pessoas terrivelmente evangélicas! Como reagir é a questão. Tendo por uma das tarefas de vida o diálogo interreligioso, sei que pode parecer uma quebra de respeito à diversidade o combate a uma vertente específica religiosa. O caso está  naquele paradoxo: só não podemos ser tolerantes com os que desejam abolir a tolerância. Só não podemos abrir diálogo com os que pretendem abolir o diálogo, a diversidade, a liberdade. Precisamos pensar estratégias de libertar a consciência do povo enganado e cooptado e denunciar e combater os falsos líderes que o exploram e oprimem.

Dora Incontri – Graduada em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP (Universidade de São Paulo). Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pamédia. Mais de trinta livros publicados com o tema de educação, espiritualidade, filosofia e espiritismo, pela Editora Comenius, Ática, Scipione, entre outros.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Conexões – espiritualidade, política e educação - Dora Incontri

Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora

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  1. A investigação que eu pedi contra o PL no TSE por causa do discurso de Michelle Bolsonaro está em andamento. O relator do caso é o Ministro Nunes Marques e ele já está com os autos para proferir decisão: processo número 0600054-68.2024.6.00.0000.

    Abaixo reproduzo o conteúdo da inicial:

    I- No domingo 25 de fevereiro de 2024, vários políticos ligados ao PL participaram de um ato político na Avenida Paulista. Dentre eles se destaca a ex-primeira dama Michelle Bolsonaro. Ela proferiu um discurso incendiário dizendo textualmente que “política e religião devem se misturar” e que “o mal tomou conta quando ambas foram separadas”.

    II- Apesar de garantir a liberdade religiosa, o Brasil é um país laico cuja principal característica é a proibição expressa da União, Estados, Distrito Federal e Municípios estabelecer cultos religiosos (art. 19, I, da CF/88). A nenhum partido político deve ser conferido o direito de unir religião e política para “purificar religiosamente” o país ou tentar transformá-lo numa teocracia. Isso é absolutamente contrário ao pluralismo político e às garantias outorgadas aos outros partidos políticos, bem como aos cidadãos-eleitores que não professam (e não tem obrigação nenhuma de professar) a mesma religião que referida líder do PL.

    III- Michelle Bolsonaro é liderança nacional do PL, com potencial de ser elevada à condição de candidata do partido à chefe de governo e de estado na próxima eleição presidencial. Quando discursa ela fala tanto em nome próprio quanto como liderança do PL, partido que não pode e não deve deixar de respeitar os princípios constitucionais que delimitam o campo político excluindo dele qualquer organização partidária que tente impor uma religião ao conjunto da população ou transformar a Bíblia em lei fundamental acima da
    Constituição Cidadã em vigor.

    IV- A Justiça Eleitoral não pode e não deve tolerar o crescimento do cancro canceroso do
    fanatismo religioso preconizado por Michelle Bolsonaro nos palanques do PL, inclusive e
    principalmente porque esse partido faz propaganda com recursos públicos do Fundo Partidário. Em decorrência do discurso acima referido, devemos imaginar que o PL (ou a facção evangélico política do partido liderada por Michelle Bolsonaro) está preparando novas Intentonas Bolsonaristas como aquela que ocorreu em 08 de janeiro de 2023?

    Face ao exposto, requer o processamento da presente REPRESENTAÇÃO, determinando-se a
    imediata abertura de investigação eleitoral para determinar se o PL deve manter ou perder seu registro eleitoral em decorrência do discurso de Michelle Bolsonaro. Como a mensagem dela (“política e religião devem se misturar”; “o mal tomou conta quando ambas foram
    separadas”) tende a se alastrar em virtude de ser impulsionada na internet por líderes do
    PL que disputarão as eleições municipais, requer seja SUSPENSO liminarmente o registro
    do partido até que a investigação requerida seja processada, concluída e decida.”

  2. Parabéns pelo excelente artigo, Dora. Faz recuperar um pouco a fé no discernimento dos espíritas, depois de ter visto na última década muitos deles, inclusive expoentes, abraçarem alegremente o lavajatismo e, pior, o bolsonarismo. Na minha família mesmo lamentavelmente todos são bolsonaristas, em quase nada diferindo dos neopentecostais.

    Virei agnóstico (não apenas por isso, mas essa crescente ingerência canalha na política foi a gota d’água!) e perdi a paciência com doutrinação de toda espécie; não perco a oportunidade de soltar um “em nome de Jesus” cínico, na lata, toda vez que vejo esses túmulos caiados, que se acham melhores que os outros, pregarem uma coisa e fazerem outra, ou mesmo abertamente defenderem essa adoração ao poder e ao dinheiro.

    Por que esses talibãs não criam um “código canônico”, um código de conduta religioso, e impõem apenas aos seguidores da própria igreja? Deixem o ordenamento jurídico, o Estado, fora disso! Por que essa tara em impor aos outros suas visões de mundo medievais, toscas e podres? Claro, porque as reais intenções são o poder e o dinheiro, não “divulgar a palavra”. Imundície!

    Somos todos ateus, com os deuses dos outros!
    A sua religião é problema seu! Tirem suas mãos do Congresso, do Governo e da Justiça, fora!
    Leu na Bíblia? Azar o seu! Meu livro de cabeceira é a Constituição!

    #suareligiaoproblemaseu
    #leunabibliaazaroseu

  3. Muito bom o texto. Será que um bom começo, não seria mexendo nos bolsos das igrejas? Cobrando os impostos ,como qualquer empresa decente?

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