Tarcísio de Freitas, o tirano que rasgava a constituição democrática, por Fábio de Oliveira Ribeiro

É impossível homenagear um torturador - como é o caso de Erasmo Dias - sem torturar uma vez mais as vítimas dele

Tarcísio de Freitas promulga lei em SP que homenageia torturador da ditadura militar. Foto: Alan Santos/PR
Tarcísio de Freitas promulga lei em SP que homenageia torturador da ditadura militar. Foto: Alan Santos/PR

Tarcísio de Freitas, o tirano que rasgava a constituição democrática

por Fábio de Oliveira Ribeiro

A petição inicial da ADI 7430, através da qual foi questionada a homenagem pessoal que Tarcísio de Freitas fez ao verdugo Erasmo Dias, é juridicamente impecável. Não é possível considerar constitucionalmente adequado o Estado de São Paulo homenagear o tiranete Erasmo Dias. A Lei do Estado de São Paulo nº 17.700, de 27 de Junho de 2023, ofende de maneira acintosa os princípios que orientam a democracia brasileira, notadamente aqueles que constam do art. 1º, II e III, art. 3º, IV, da CF/88. 

Note-se, ademais, que referida norma também pode ser considerada incompatível com o disposto no art. 5º, III, da CF/88. Afinal, é impossível homenagear um torturador sem torturar uma vez mais as vítimas dele. Portanto, a inconstitucionalidade da Lei do Estado de São Paulo nº 17.700, de 27 de Junho de 2023, é manifesta. Através dela o governo estadual não pretende apenas reescrever a história. Na prática, a própria Constituição Cidadã está sendo reescrita para que se torne possível ao Estado de São Paulo impor um tratamento degradante aos estudantes e cidadãos que foram agredidos e torturados pelas tropas do tiranete homenageado. 

A homenagem feita pelo Estado de São Paulo a Erasmo Dias também tem uma finalidade política programática futura. Através dela, aquele militar sorridente (que se considera uma espécie de interventor militar eleito para transformar São Paulo no bunker de uma nova ditadura) incentiva os policiais e militares a voltarem a se comportar como se comportaram sob o comando do homenageado.

Se a Lei do Estado de São Paulo nº 17.700, de 27 de Junho de 2023, não for declarada inconstitucional, Tarcísio de Freitas se tornará mais ousado. Ele mandará consagrar estátuas em homenagem a Erasmo Dias, Brilhante Ustra, Costa e Silva e outorgará uma comenda ao policial que covardemente enforcou Vladimir Herzog numa prisão.

É evidente que como um bom militar bolsonarista, o governador de São Paulo usa o poder que lhe foi conferido para criar incidentes políticos capazes de provocar alguma espécie de reação na e da Suprema Corte brasileira. Portanto, ao tentar reescrever o passado, Tarcísio de Freitas não apenas reescreve a Constituição Cidadã para torturar novamente as vítimas de Erasmo Dias. Na verdade ele criou um incidente que dará ao supremo líder dele oportunidade para continuar a atacar o regime democrático em geral e o STF em especial. 

Mesmo tendo condições de saber que a Lei do Estado de São Paulo nº 17.700, de 27 de Junho de 2023, é flagrantemente inconstitucional e seria inevitavelmente declarada inconstitucional, o governador do Estado a promulgou porque a considera um instrumento para um fim. Há bem pouco tempo, nós vimos que no imaginário dos bolsonaristas não existe nada mais honrado do que invadir e depredar o STF e defecar nas dependências do Tribunal. Nesse sentido, a promulgação de referida Lei equivale a uma maneira indireta de validar tudo aquilo que foi feito em 08 de janeiro de 2023. Isso deveria ser suficiente para o governador ser afastado do cargo. 

Dito isso, sinto-me no direito de fazer aqui uma observação de natureza pessoal, pois me senti especialmente ofendido e humilhado em decorrência da promulgação da Lei do Estado de São Paulo nº 17.700, de 27 de Junho de 2023. Como muitos cidadãos brasileiros honrados e destemidos, meu pai (João de Oliveira Ribeiro, já falecido) não aceitou pacificamente a criminosa interrupção do mandato de João Goulart pelo golpe de estado de 1964. O ativismo político rendeu a ele perseguição policial continuada, algo que obrigou-o a se afastar da esposa e dos filhos por curtos períodos nos anos de 1966 e 1967. 

Em meados de 1967, quando eu mesmo tinha apenas 3 anos de idade, policiais do DOPS invadiram a residência dos meus pais a pontapés gritando “Onde está o comunista filho da puta?”. Em decorrência, minha mãe se viu obrigada a mudar com os 3 filhos pequenos para a pequena cidade de Eldorado SP. Qual foi o crime contra a Segurança Nacional que eu cometi para ser aterrorizado dessa maneira aos 3 anos de idade? Nenhum, exceto mijar eventualmente no meu pai. 

Uma última consideração merece ser feita aqui. E ela diz respeito ao terrível processo histórico de degeneração da nossa democracia que começou com o golpe de estado contra a presidenta Dilma Rousseff. 

A farsa do Impeachment sem crime de responsabilidade foi aplaudida por alguns Ministros do próprio STF. De certa maneira, eles também podem ser considerados responsáveis por tudo o que aconteceu desde o momento em que o general Villas Boas ameaçou por telefone a autonomia da Suprema Corte e não foi imediatamente preso pela Polícia Federal a mando do então presidente do STF.

Todos os princípios democráticos começaram a desmoronar assim que a soberania popular foi removida de cena com ajuda do STF porque era considerada um entrave à adoção de reformas neoliberais. Bolsonaro provavelmente não teria ganhado tanta proeminência se aquela farsa tivesse sido impedida pela Suprema Corte. Todavia, na época o próprio STF reforçou seu compromisso com a virada neoliberal ao impedir Lula de disputar a presidência acintosamente descumprindo uma decisão válida do Comitê de Direitos Humanos da ONU. 

O sucesso do neoliberalismo autoritário que foi imposto ao Brasil com ajuda do STF deve ser medido de duas maneiras: de um lado existem as matérias jornalísticas e estudos econômicos que comprovam e comemoram o exuberante enriquecimento dos banqueiros e dos especuladores sob o governo Jair Bolsonaro e; de outro, podem ser vistas as estatísticas da pandemia que mascaram o assassinato deliberado de centenas de milhares de pessoas inocentes e indefesas pelo presidente da república que sabotou a compra e a produção de vacinas e que incentivou as pessoas a se reunir e a não usar máscaras com o intuito de facilitar a propagação de uma doença letal. 

Tarcísio de Freitas, o governador que gosta de homenagear tiranetes rasgando a constituição democrática, estava ao lado de Jair Bolsonaro no período em que ele usou a pandemia para exterminar centenas de milhares de brasileiros. Ao promulgar leis inconstitucionais com a intenção de radicalizar seus eleitores e dividir a sociedade, o governador de São Paulo trabalha para reconstruir e reforçar as bases políticas do bolsonarismo. E ao que parece o STF já esqueceu o genocídio, crime que aliás não foi nem mesmo objeto de denúncia pelo PGR.

Portanto, não basta o STF declarar inconstitucional a Lei do Estado de São Paulo nº 17.700, de 27 de Junho de 2023. Em algum momento, a Suprema Corte brasileira terá que admitir publicamente que errou ao apoiar o golpe de estado de 2016. Não só isso… o genocídio pandêmico não poderá ser esquecido e superado enquanto não for devidamente julgado.

* Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Fábio de Oliveira Ribeiro

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