Uma introdução ao conceito de EEE: Sobre a vida e obra de JMS, o evolucionista voador, por Felipe Costa

Livros e artigos seus são amplamente citados em trabalhos que lidam com assuntos que vão da evolução da senescência à origem do sexo, passando pelo estudo da especiação

Uma introdução ao conceito de EEE: Sobre a vida e obra de JMS, o evolucionista voador.

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

APRESENTAÇÃO. – Um dos gigantes da biologia ao longo da segunda metade do século 20, autor de uma obra rica e influente, JOHN MAYNARD SMITH (1920-2004) ainda é um nome relativamente pouco conhecido entre nós.

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1. ANOS DE FORMAÇÃO.

Filho caçula de Sidney Maynard Smith, um renomado cirurgião militar, e Isabel Mary Pitman, oriunda de uma família abastada, John Maynard Smith (sem hífen) nasceu em Londres, em 6/1/1920.

Em 1928, após a morte do pai, a família se mudou para a região de Exmoor, no sudoeste da Inglaterra. Foi no meio rural que o pequeno John se envolveu com história natural, tornando-se um exímio observador de aves. Iniciou os estudos universitários na Faculdade Trinity, em Cambridge, obtendo um diploma de engenheiro em 1941. No mesmo ano, casou com Sheila Matthew (1918-2005); o casal teve três filhos. (Graduada em matemática, em 1940, pela Faculdade Girton, também em Cambridge, Sheila teve carreira própria, atuando em diferentes áreas da biologia, antes de se dedicar exclusivamente à família.)

Durante a II Guerra, JMS trabalhou em uma empresa aeronáutica. Em 1947, insatisfeito com o emprego, voltou a estudar. Ingressou no Colégio Universitário de Londres (UCL, na sigla em inglês), obtendo um segundo diploma de graduação (1951). Iniciou em seguida uma pós – jamais concluída –, estudando genética de moscas drosófilas sob a supervisão do naturalista e polímata britânico J. [John] B. [Burdon] S. [Sunderson] Haldane (1892-1964), por quem já nutria grande admiração [1].

2. O LEGADO DE UM GIGANTE.

Em 1952, Peter B. [Brian] Medawar (1915-1987) [2], então chefe do Departamento de Zoologia, o convidou a ministrar aulas; ele aceitou o convite, permanecendo no UCL durante mais de uma década (1952-1965). Naquele mesmo ano, publicou o seu primeiro artigo científico (Maynard Smith 1952).

Em 1965, decidiu mudar de ares, aceitando um convite para assumir a chefia da Escola de Ciências Biológicas (atual Escola das Ciências da Vida), na então recém-criada Universidade de Sussex, em Brighton (Falmer), no sul do país. Graças em boa medida aos seus esforços, a escola se tornaria um conceituado centro de pesquisa. Aposentou-se em 1985, mas continuou ligado à universidade – escrevendo, pesquisando e interagindo com colegas e estudantes.

Recebeu várias honrarias e homenagens ao longo da vida. Na época da aposentadoria, colegas e ex-alunos prepararam um livro em sua homenagem (Greenwood et al. 1985). A obra faz um balanço do alcance e do impacto de suas ideias. As questões abordadas vão da genética de populações aos rituais de acasalamento, passando pelo estudo do cuidado parental e da dispersão de sementes. Outras homenagens semelhantes apareceriam depois (e.g., Michod 2005).

Em 1997, a Sociedade Europeia de Biologia Evolutiva (ESEB, na sigla em inglês) instituiu o John Maynard Smith Prize para jovens cientistas. Em 1999, ao lado de Ernst Mayr (Cap. 6; ver aqui) e George C. Williams (Cap. 11; aqui), ele foi laureado com o Prêmio Crafoord, concedido pela Academia Real das Ciências da Suécia para algumas áreas da ciência não contempladas com o Nobel.

3. TRÊS SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS.

Não lembro exatamente quando passei a me interessar pelos escritos de JMS [3]. Tenho para mim, no entanto, que um dos primeiros artigos dele que me chamou a atenção foi ‘Evolution and history’, cuja versão em espanhol eu encontrei em uma pequena coletânea (Maynard Smith 1979).

Publicado originalmente em 1961, o artigo antecipa algumas polêmicas que prosperariam a partir de meados anos 70, especialmente a dicotomia herança genética vs. cultura. Na década de 1960, já tendo saído do Partido Comunista e em plena Guerra Fria, Maynard Smith era suficientemente esclarecido a ponto de não permitir que a revelação dos crimes praticados pelo stalinismo obscurecesse a sua opinião a respeito do marxismo – do qual, a rigor, ele nunca se afastou. Todavia, mais do que um analista político, penso que ele preferia ser visto como um explorador do mundo das ideias ou, mais especificamente, como um teórico do darwinismo, avesso a certos modismos, como a teoria do equilíbrio pontuado [4].

Livros e artigos seus são amplamente citados em trabalhos que lidam com assuntos que vão da evolução da senescência à origem do sexo, passando pelo estudo da especiação, da seleção natural e da genética do desenvolvimento. Escreveu sobre questões fundamentais, quase sempre de modo inovador e inspirador [5].

A bibliografia disponível ao leitor brasileiro nem de longe reflete as dimensões e a relevância do seu legado [6]. É uma pena, pois vários títulos já deveriam ter sido traduzidos. Cito aqui três exemplos (a) The theory of evolution (Penguin, 1958, 1966, 1975 e 1993), o seu primeiro livro; trata-se de uma introdução à biologia evolutiva, acessível ao leitor comum; um sucesso editorial, tendo influenciado gerações de estudantes; (b) Evolutionary genetics (OUP, 1989 e 1998) um belíssimo manual universitário; das três obras sugeridas, esta talvez merecesse a tradução mais urgente; e (c) The origins of life (OUP, 1999), em coautoria com o cientista húngaro Eörs Szathmáry (nascido em 1959), obra de divulgação, correspondendo a uma versão simplificada de uma obra dos dois que logo se converteu em uma referência-chave (para detalhes, ver Szathmáry 2015).

4. ECOLOGIA, COMPORTAMENTO E TEORIA DOS JOGOS.

O impacto da obra de JMS também teve repercussões na ecologia e no estudo do comportamento animal. Dois dos seus livros mais conhecidos, Models in ecology (CUP, 1974) e Evolution and the theory of games (CUP, 1982), tratam desses assuntos. Em seu último livro, Animal signals (OUP, 2003), ele e o coautor, o biólogo inglês David [George Charles] Harper (nascido em 1959) examinaram o conceito de sinal, com implicações importantes tanto no estudo do comportamento (e.g., o mimetismo; ver Cap. 2) como em outros domínios (e.g., semiologia).

Em Evolution and the theory of games, talvez o seu livro mais citado, JMS procura mostrar como a teoria dos jogos, originalmente desenvolvida para orientar a tomada de decisões em situações de conflito (ver a figura que acompanha este artigo), pode ser útil a quem lida com questões biológicas, especialmente quando se adota uma perspectiva evolutiva. Eis aí, aliás, uma situação habitualmente enfrentada pelos teóricos de qualquer disciplina: como equacionar e eventualmente resolver um problema, aplicando para isso modelos importados de outras áreas do conhecimento.

A aplicação bem-sucedida da teoria dos jogos resultou no desenvolvimento do conceito de estratégia evolutivamente estável (EEE), o qual bem poderia ser definido como uma combinação particular de estados fenotípicos (indivíduos que lutam vs. os que fogem; reprodução precoce vs. tardia; árvores altas vs. baixas, e assim por diante) dentro de uma mesma população. Dois (ou mais) fenótipos distintos podem conviver em razão da estabilidade gerada por suas próprias frequências relativas. Isso ocorre quando um atributo, inicialmente vantajoso, torna-se desvantajoso à medida que passa a ser adotado pela maioria dos integrantes da população. A chave para esse tipo de situação é que o comportamento e os eventuais benefícios de cada fenótipo dependem daquilo que os outros fenótipos estão fazendo.

Nas palavras de Maynard Smith (1982, p. 1; tradução livre):

“A teoria evolutiva dos jogos é um modo de pensar sobre a evolução no nível fenotípico quando as aptidões de determinados fenótipos dependem da frequência deles na população. Compare, por exemplo, a evolução da forma das asas em aves planadores com a evolução do comportamento de dispersão nessas mesmas aves. Visando entender a forma das asas, faz-se necessário conhecer as condições atmosféricas sob as quais as aves vivem e o modo pelo qual as forças de ascensão e de arrasto variam com o formato das asas. Teríamos também de levar em conta as restrições impostas pelo fato de as asas das aves serem feitas de penas – as restrições seriam diferentes no caso de um morcego ou um pterossauro. Não seria necessário, contudo, levar em conta o comportamento de outros membros da população. Ao contrário, a evolução da dispersão depende basicamente de como outros coespecíficos estão se comportando, pois a dispersão tem a ver com encontrar parceiros adequados, evitar competição por recursos, obter proteção conjunta contra predadores e assim por diante.

“Já no caso da forma das asas, queremos entender por que a seleção favoreceu determinados fenótipos. A ferramenta matemática apropriada é a teoria da otimização. Nós nos deparamos com o problema de decidir que aspectos específicos (e.g., uma razão ascensão/arrasto elevada, um raio de giração pequeno) contribuem para a aptidão, mas não com as dificuldades especiais que surgem quando o sucesso depende daquilo que os outros estão fazendo. É neste último contexto que a teoria dos jogos se torna relevante.”

Sobre as origens do conceito de EEE, Maynard Smith anotou (1982, p. 174; tradução livre) [7]:

“Em sua origem, o conceito de EEE é altamente polifilético. Para mim, ele surgiu de uma tentativa de formalizar algumas ideias do falecido dr. George Price [8] a respeito de disputas entre animais: por isso o termo ‘estratégia’ e um modelo com base em disputas pareadas.”

5. CODA.

John Maynard Smith faleceu em casa, em Lewes (cidadezinha ao lado de Brighton), em 19/4/2004, vítima de complicações advindas de um câncer. Deixou viúva, os três filhos e netos. E saudades, mesmo entre alguns leitores que não o conheceram pessoalmente…

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NOTAS.

[*] O presente artigo, assim como vários artigos anteriores (e.g., ver Anjos & insetos e Anjos & insetos. IX), é uma versão resumida e simplificada de um dos capítulos que integram o livro O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017). Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, os quatro livros já publicados do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato com o autor pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] JMS escolheu o UCL por causa de Haldane. Além da afinidade acadêmica, ambos eram de esquerda. JMS foi militante do Partido Comunista (1939-1946), mas abandonou o partido em 1956 (Haldane já havia abandonado), desencantado com o stalinismo – a gota d’água foi a invasão da Hungria pela URSS.

[2] Laureado com um Nobel (1960) e autor de uma hipótese pioneira sobre a senescência (ver aqui), Medawar trabalhou no UCL de 1951 a 1962.

[3] Durante a minha graduação (segunda metade da década de 1970), pouco ou nada ouvi falar sobre os autores incluídos neste livro. Uma exceção foi o meu contato (acidental) com T. R. E. Southwood (Cap. 8).

[4] Modelo proposto por Stephen Jay Gould (1941-2002) e Niles Eldredge (nascido em 1943), em 1972, como uma explicação para a ‘escassez de elos’ nos achados fósseis – sobre o modelo saltacionista, ver o meu O QUE É DARWINISMO (2019).

[5] Ver o volume 239, n. 2 (2006), do Journal of Theoretical Biology.

[6] Em português, caberia registrar: Maynard Smith & Szathmáry (1997) e a introdução ao livro de Cronin (1995). Em 2012, apareceu A evolução do sexo (SP, Editora da Unesp), versão brasileira de um livro originalmente publicado em 1978. Neste caso, porém, é difícil não pensar que, a despeito da grande relevância da obra, a escolha tenha sido motivada pelo apelo mercadológico do título. Em Portugal, foram publicadas ao menos outros dois volumes, Maynard Smith (1994) e Maynard Smith & Szathmáry (2007).

[7] Na sequência, JMS (1982, p. 174; tradução livre) escreveu:

“A ideia de que comportamentos variáveis podem ser explicados por seleção dependente de frequência foi proposta independentemente por Gadgil (1972) e Parker (1970a) havia interpretado o comportamento de moscas-do-esterco em termos de equiparação da aptidão. Ideia muito semelhante surgiu no estudo da evolução da razão sexual. O conceito original é de Fisher (1930). Shaw & Mohler (1953) procuraram um equilíbrio, equiparando os benefícios na produção de filhos e filhas, e MacArthur (1965) usou técnicas muito semelhantes àquelas usadas neste livro para encontrar a razão sexual estável. Hamilton (1967), lidando com o problema da razão sexual em uma população estruturada, explicitamente usou ideias da teoria dos jogos; sua ‘estratégia imbatível’ é essencialmente equivalente a uma EEE. Para se atingir o conceito de distribuição livre ideal, Fretwell & Lucas (1970), em sua análise da dispersão animal, tiraram partido do fato de que, no equilíbrio, as aptidões devem ser iguais. Mais recentemente, ficou claro que a ideia de altruísmo recíproco de Trivers (1971) é mais bem entendida como uma EEE em um jogo reiterado entre os mesmos dois oponentes, e Axelrod & Hamilton (1981), ao aplicarem conceitos evolutivos ao Dilema do Prisioneiro, deram um passo adiante visando unir a teoria clássica e a teoria evolutiva dos jogos.”

Sobre a teoria evolutiva dos jogos, ver Dawkins (1989) e Krebs & Davies (1996); para uma introdução aos jogos matriciais, Weiss & Yoseloff (1978).

[8] Cap. 4. Ver artigo ‘Anjos & insetos. V. O preço do altruísmo’; fora do ar, no momento, mas publicado neste GGN, entre setembro e outubro de 2018.

[9] A figura que acompanha este artigo: Tabela adaptada de Maynard Smith (1982). Exemplo clássico de conflito é o caso da mosca-do-esterco (Scatophaga stercoraria), estudado pelo biólogo inglês Geoffrey A. [Alan] Parker (nascido em 1944), ainda nos anos 60. Porções de esterco bovino são usadas como sítios de acasalamento e oviposição, sendo que as fêmeas preferem acasalar e ovipôr em porções frescas. Para o macho, as chances de acasalar são máximas se ele estiver esperando pelas fêmeas em um monte de idade ‘ótima’, mas diminui se ele estiver acompanhado de outros machos. A solução prevista pela teoria (e observada no campo) é escolher montes de qualidade inferior à medida que a densidade de machos aumenta, de tal modo que as chances de acasalamento são igualadas em montes de idades diferentes – em português, ver Krebs & Davies (1996).

Um exemplo envolvendo uma situação semelhante à do jogo pedra, papel e tesoura foi recentemente proposto por Dingli et al. (2009). Eles modelaram a dinâmica de três populações de células: mieloma múltiplo (MM); osteoblastos (OB), células formadoras de novos tecidos ósseos; e osteoclastos (OC), células responsáveis pela reabsorção óssea. O aparecimento de células mm rompe o equilíbrio habitual entre OB e OC, inibindo aquelas e favorecendo (e sendo favorecidas por) estas. Destruir células mm, como é feito atualmente, inibe o desenvolvimento da doença e prolonga a sobrevivência do indivíduo. Mas não altera o resultado final, pois as células cancerosas tendem a reaparecer. Segundo os autores, o mais indicado seria interferir na dinâmica do jogo (e.g., alterando o impacto que as células mm têm sobre OB e OC), de modo que as populações de células normais suplantem as células cancerosas, levando-as à extinção.

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REFERÊNCIAS CITADAS.

+ Cronin, H. 1995 [1991]. A formiga e o pavão. Campinas, Papirus.

+ Dawkins, MS. 1989 [1986]. Explicando o comportamento animal. SP, Manole.

+ Dingli D & mais 4. 2009. Cancer phenotype as the outcome of an evolutionary game between normal and malignant cells. British Journal of Cancer 101: 1130-6.

+ Greenwood, PJ; Harvey, PH & Slatkin, M, eds. 1985. Evolution: Essays in honour of John Maynard Smith. Cambridge, CUP.

+ Krebs, JR & Davies, NB. 1996 [1993]. Introdução à ecologia comportamental, 3ª ed. SP, Atheneu.

+ Maynard Smith, J. 1952. The importance of the nervous system in the evolution of animal flight. Evolution 6: 127-9.

+ —. 1979 [1972]. Acerca de la evolución. Madri, H Blume.

+ —. 1994 [1986]. Os problemas da biologia. Lisboa, Gradiva.

+ — & Szathmáry, E. 1997 [1995]. Linguagem e vida. In: Murphy, MP & O’Neill, LAJ, orgs. ‘O que é vida’ – 50 anos depois. SP, Editora da Unesp.

+ — & —. 2007 [1999]. As origens da vida. Lisboa, Gradiva.

+ Michod, RE. 2005. John Maynard Smith. Annual Review of Genetics 39: 1-8.

+ Szathmáry, E. 2015. Toward major evolutionary transitions theory 2.0. PNAS 112: 10104-11.

+ Weiss, NA & Yoseloff, ML. 1978 [1975]. Matemática finita. RJ, Guanabara Dois.

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Redação

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