Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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A bicicleta como extensão do homem em dez cenas no cinema

Qual a relação entre rodas, bicicleta e aviões? O pesquisador canadense Marshall McLuhan (1911-1980) em seu livro clássico “Os Meios de Comunicação como extensões do Homem” faz interessantes interconexões históricas entre esses três meios técnicos e seus desdobramentos culturais como o cinema e a invenção de um veículo com rodas in line como o meio que conduzirá à aviação. Dos insights do pesquisador canadense podemos descobrir secretas conexões entre a invenção da roda, o cinema e as bicicletas na história da cultura. Mais do que isso, descobrimos a base tecnológica de todo o imaginário de iluminação espiritual e transcendência que a bicicleta passa a construir na cultura pop a partir do pós-guerra.

No capítulo “Roda, Bicicleta e Avião”, McLuhan narra a trajetória dos veículos de tração por arrasto (trenó, esqui etc.) até a tecnologia da roda. Foi necessário muito esforço mental e abstração para separar os movimentos recíprocos com as mãos, do movimento livre das rodas. Os efeitos das carroças de quatro rodas sobre a vida urbana foram extraordinários: desenvolvimento das cidades, separação entre a vida urbana e rural etc. Com as ferrovias e estradas a força configuradora das rodas ganha ainda mais força, até a atual era da informação diminuir o seu poder de moldar as relações humanas.

Mas as rodas deixaram dois importantes legados para a atualidade: o cinema e a bicicleta. A câmera e o projetor do cinema são significativos por serem constituídos por um conjunto sutil de rodas: enrolar o mundo em um carretel para depois desenrolá-lo na tela. Com a convergência tecnológica, testemunhamos mais um subproduto da era das rodas desaparecendo com a obsolescência do dispositivo cinematográfico: o fim dos rolos de filmes e o início da projeção de filmes digitais diretamente em streaming.

Mas foi o alinhamento das rodas em tandem que as elevou ao plano do equilíbrio aerodinâmico, trazendo maior intensidade e velocidade. Não foi por acaso que os irmãos Wright eram mecânicos de bikes e que os primeiros aeroplanos pareciam mais com bicicletas. A aerodinâmica, o equilíbrio, a velocidade que quebra a resistência do ar e a condição de suspensão que o ciclista experimenta em deslocamento criaram a conexão com os veículos aéreos.

Sincronicamente, as rodas alinhadas no dispositivo cinematográfico também estão presentes na bicicleta. Não é à toa que o cinema tão bem representou a evolução do imaginário das bikes na cultura do século XX, de signo da racionalidade do mecanismo na modernidade, passando pela poética realista da sua importância como meio de transporte barato até as conotações mais espirituais ou metafísicas decorrentes da experiência de suspensão que o veículo cria para o usuário. A mesma experiência que levou ao insight da invenção do avião.

“Transformar a vida em impulso”

A bicicleta surge em 1817 na Alemanha pelas mãos do Barão Karl Von Drais que inventou seu laufmaschine (máquina de correr), patenteado por ele como “velocípede” e apelidado posteriormente como “dandy horse”.

A primeira bicicleta por propulsão mecânica foi construída pelo escocês Kirpratick MacMillan em 1839: um projeto de tração traseira usando pedais conectados por barras de uma manivela traseira semelhante à transmissão de uma locomotiva a vapor.

Mas é em 1885 que John Starley cria a chamada “bicicleta de segurança” com a dianteira dirigível e uma unidade com corrente para a roda traseira, dando conforto, rapidez e segurança.

Bicicleta: um importante
papel no movimento
feminista

Se no início, a bicicleta é o símbolo do racionalismo mecânico e do imaginário da máquina como símbolo da organização científica da sociedade moderna como uma “máquina de correr”, após a bicicleta da segurança assume um papel de liberação ao tornar-se peça importante no movimento feminista do início do século XX, dando à mulher a sensação de liberdade e auto-suficiência. “Eu não perderia meu tempo em fricção quando posso transformar a minha vida em impulso”, dizia o norte-americano Frances Wilard em 1895 no seu livro “Como Aprendi a Andar de Bicicleta”, cuja metáfora do ciclismo ajudou a estimular as mulheres a se libertar dos corsets e das saias até os tornozelos para aderirem ao ciclismo.

Na frase de Wilard já está o registro da experiência de suspensão, impulso, deslocamento acima do solo e liberdade, longe dos tempos das primeiras “máquinas de correr” impulsionadas pelos pés no chão. O simbolismo da bicicleta começa a abandonar o campo imaginário maquínico para criar um imaginário mais espiritual da liberdade e suspensão.

Em postagem anterior fizemos uma relação entre essa experiência de suspensão da bicicleta e o estado alterado de consciência da suspensão que propiciaria estados gnósticos de iluminação espiritual (veja links abaixo): a bicicleta é mais do que um mero instrumento de lazer, é algo mais próximo da declaração política. Velocidade, equilíbrio, uma certa liberdade de espírito, manter a forma, técnica e perfeição tecnológica, na aerodinâmica.

A bicicleta é em si um instrumento musical: o som ritmado da corrente, engrenagens, a respiração e batimento cardíaco, tendo como fundo o som contínuo “shhhhhh” do contato do pneu no asfalto. Tal como um mantra, confere uma “liberdade ao espírito” ao esvaziar a mente, seja pela repetição de sons e movimento, seja pelo esgotamento físico. Montar na bicicleta e se deslocar velozmente como se estivesse suspenso e, ao mesmo tempo, o som ritmado do corpo e do mecanismo anulando a atividade racional/mental.

Por exemplo, a música “Bike”, do Pink Floyd, de 1967, associa a experiência de andar com uma bicicleta munida de cesta e campainha a ouvir uma melodia com rimas e ressonâncias que surgem do mecanismo da bike, e convida a mulher amada a escutá-la. É um exemplo dessa representação espiritual e transcendente da bicicleta na cultura pop de pós-guerra.

Acompanhe o trajeto da construção do imaginário das bikes no cinema nessas dez cenas selecionadas:

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

9 Comentários

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  1. Beto Guedes, modéstia a parte dos mineiros

    Tesouro da Juventude

    Beto Guedes

    A pedalar
    Camisa aberta no peito
    Passeio macio 
    Levo na bicicleta
    O meu tesouro da juventude
    Passo roubando fruta de feira
    Passo a puxar meu estilingue
    Vai pedra certeira no poste
    Passa um veterano
    E já cansado
    Herói de guerra
    Grito: Lá vem a bomba!
    E meu tesouro me leva
    Pelas ruas de Santa Teresa
    A pedalar
    Encontro amigo do peito
    Sentado na esquina
    Pula, pega garupa
    Segura o bonde ladeira acima
    Ganha o meu tesouro da juventude
    Ainda que a cidade anoiteça
    Ou desapareça
    Piso no pedal do sonho
    E a vida ganha mais alegria
    Ganha o meu tesouro da juventude
    Que foi em Pedra Azul
    E em toda parte
    Onde tive o que sou

    no youtube …  http://www.youtube.com/watch?v=T-bhxL-XbPA

  2. Adoro esses textos do Wilson.

    Adoro esses textos do Wilson. Tem uma profundidade e ao mesmo tempo são acessíveis ao leitor bem informado. Só às vezes me vem a síndrome de burro e me sinto abaixo do texto, mas aí geralmente encaro como desafio e fica tudo certo.

    1. Nessa lista tem a famosa cena

      Nessa lista tem a famosa cena do filme ” Butch Cassidy and  the Sundance Kid” com a não menos famosa e bela “Raindrops Keep Falling on my Head”?

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