Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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‘A disputa de Natal’: documentário sobre o Natal ‘alt-right’ do passado que jamais existiu, por Wilson Ferreira

Um microcosmo que mostra como a América Profunda fez emergir o fenômeno alt-right do Trumpismo, depois irradiado para todo o planeta.

‘A disputa de Natal’: documentário sobre o Natal ‘alt-right’ do passado que jamais existiu

por Wilson Ferreira

Jeremy Morris acredita que tem uma missão: compartilhar o “espírito do Natal” com o maior número de pessoas possível. Por isso, todo ano transforma sua casa num enorme presépio com camelo, coral de 35 vozes, milhares de lâmpadas e inúmeras bugigangas festivas que atrai milhares de turistas. Nem que seja ao custo de uma batalha judicial (marcada pelo “lawfare” de Jeremy Morris – ele é advogado) contra a Associação de Moradores que viu um subúrbio residencial pacato virar uma caótica atração das festas de final de ano. Uma batalha que atraiu a simpatia de grupos de extrema-direita que viram em Morris um herói que lutava contra a intolerância religiosa de… comunistas e ateus! Esse é o documentário Apple TV+ “A Disputa de Natal” (“Twas The Fight Before Christmas”, 2021), um microcosmo que mostra como a América Profunda fez emergir o fenômeno alt-right do Trumpismo, depois irradiado para todo o planeta. Principalmente pela hiper-realidade midiática que enxerta a nostalgia de um passado que jamais existiu. 

O leitor deve lembrar do clássico Férias Frustradas de Natal em que Chevy Chase interpreta Clark Griswold que, depois de muitas confusões, heroicamente consegue ligar sua gigantesca iluminação natalina que envolvia toda a sua casa – trazendo a edificante mensagem de que, não importam as dificuldades, uma família unida sempre consegue enfrentar os reveses da vida.

Combine esse e mais outros filmes (que ajudaram a construir memórias idílicas e hiper-reais das festas de Natal) com fundamentalismo religioso somado ao fenômeno recente da judicialização que ameaça as democracias e terá uma verdadeira batalha em plenas festas natalinas. 

É essa combinação explosiva, num EUA dividido politicamente desde a vitória de Trump e a corrosão da opinião pública pelas táticas de propaganda alt-right, que descreve o documentário A Disputa de Natal (Twas The Fight Before Christmas, 2021) dirigido por Becky Read e produzido por Chris Smith – produtora de outro excelente documentário, Três Estranhos Idênticos” – clique aqui. Um documentário estranhamente sombrio e ao mesmo tempo cômico que oferece diferentes perspectivas de um evento de Natal que deu totalmente errado, transformando-se em uma ferrenha batalha jurídica que até hoje não teve uma conclusão.

 Em um típico e pacato subúrbio de classe média norte-americano em Hyden, Idaho, uma batalha judicial fez a até então desconhecida cidade do país chegar aos noticiários nacionais em todo o mundo. Manchetes como “Guerra jurídica no Natal” que envolviam até a existência de um camelo vivo como decoração em um presépio, chamaram a atenção da cineasta.

Para ela tudo parecia bizarro: uma discussão entre vizinhos sobre uma comemoração de Natal acabou em um tribunal de júri, assumindo proporções políticas combinada com uma custosa artilharia jurídica que, seja o lado que perder na batalha, terá como destino da falência. 

No conflito, de um lado um advogado chamado Jeremy Morris, obcecado pela ideia de transformar em realidade as suas lembranças de infância, cuja hiper-realidade midiática transformaram em memórias idílicas combinada com um senso religioso distorcido; e do outro, a associação de bairro, incomodada por um evento que atrai milhares de pessoas de todo o país, mergulhando o pacato subúrbio em um caos de trânsito despejando multidões, muito lixo e depredações dos bem cuidados jardins das redondezas.

O hiperativo e egocêntrico advogado imediatamente aceitou em contar sua história no documentário. Percebemos nas cenas sua alegria infantil em mostrar suas toneladas de equipamentos decorativos que guarda em um depósito, à espera da chega do final do ano. Porém, uma infantilidade que, de repente, pode se transformar em agressão e ódio instrumentalizado pelo lawfare e práticas ilegais como grampos telefônicos e microfones ocultos para gravar conversas da vizinhança – para, logicamente se voltarem contra ela no processo.

Porém, foi extremamente difícil os vizinhos aceitarem participar do documentário: desconfiados, achavam que a produção seria mais uma arma de Morris para intimidá-los. Com muito esforço, Becky Read conseguiu reverter essa percepção e ganhou a confiança de todos – compreenderam que o documentário mostraria todos os lados do litígio.

E o resultado é não só tragicômico, mas também um instantâneo da atual corrosão social e política resultante das estratégias da chamada direita alternativa que envolvem mídia, judicialização e apropriação oportunista de uma certa noção de liberdade e direitos fundamentais como o impedimento legal da proibição do exercício de religião e de expressão – nos EUA, à Primeira Emenda da Constituição.

O Documentário

Um homem que proclama “amar o Natal mais do que a própria vida”, Jeremy Morris também acredita ter como missão compartilhar seu “espírito natalino” com o maior número possível de pessoas.

É por isso que, em 2014, ele decidiu iluminar e enfeitar sua casa com milhares de luzes e tantas bugigangas festivas quanto possível. E mais! Alugar um coral de 35 vozes, um camelo e distribuir chocolate quente e algodão doce, doando todo o dinheiro para instituições de caridade. 

Depois de publicar o evento no Facebook, o público veio em massa, com carros e ônibus fretados enfileirados por quilômetros. 

Ao ser advertido de que precisaria futuramente de uma autorização da Câmara Municipal, Morris rebateu dizendo que o que ele organizava “não era um evento, mas um milagre de Natal”.

Irritado com a necessidade regulatória e estimulado pelo sucesso de seu projeto, Morris convenceu a esposa Kristy e suas pequenas filhas de que deveriam se mudar para uma casa maior – fora dos limites da cidade.

West Hayden Estates, um bairro de subúrbio com suas ruas largas e abertas, parecia o lugar perfeito. O advogado Morris estava convencido de que não haveria qualquer problema em cumprir o imponente volume de convênios, condições e restrições da associação de proprietários de casas locais. 

Na verdade, foi mais do que isso: com seus conhecimentos a respeito de jurisprudência, Morris buscou no livro de regras da Associação todas as lacunas, pontos falhos ou ambiguidades que pudessem dar margens a interpretações, garantindo-se de quaisquer processos.

Não sem antes intimidar os vizinhos (e principalmente a presidenta da Associação, uma pessoa que no momento atravessava uma extrema vulnerabilidade emocional), com “carteiradas” e ameaças de mobilizar uma equipe de advogados, por meio de cartas, e-mail e telefonemas.

O que se seguiu foram alegações de perseguição religiosa, espionagem, telefones grampeados por Morris, segurança apoiada por grupos de direita, alegações de terrorismo, ameaças legais e físicas e animosidade crescente que ameaçava separar uma comunidade antes tranquila.

Garantido por milícias de extrema-direita (que se identificaram com a causa de Morris, que passaram a ver nele um herói em defesa da liberdade na América), os eventos se realizaram com um número cada vez mais crescente de visitantes – chegando a atrair turistas canadenses.

A princípio, até pensamos que Morris é simplesmente um cara sensível que deseja fazer o bem no mundo. Então, gradualmente, fica claro que ele fará tudo o que for preciso para conseguir o que quer.

Continue lendo no Cinegnose.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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