Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Cinema de ficção científica do Sul mostra o novo Big Brother

A fala do cientista chefe da NASA, Dennis M. Bushnell, de que a solução para todos os problemas globais seria despachar a humanidade para o mundo virtual das redes eletrônicas, livrando o planeta da ação daninha do homem, é o sintoma de uma crise da nossa percepção de futuro. Filmes de ficção científica da América Latina e de países periféricos à Zona do Euro refletiriam esse sintoma cultural onde o futuro não é nem utópico nem distópico, mas agora hipo-utópico: um estranho futuro cada vez mais parecido com o presente. A alta tecnologia convivendo com favelas, deterioração urbana, precarização do trabalho e muito lixo que, muitas vezes, se confunde com seres humanos ou alienígenas que necessitam ser controlados, confinados, descartados ou eliminados. O novo Big Brother não integra a todos obrigatoriamente como nas distopias 1984 ou Admirável Mundo Novo, mas agora exclui a maioria compulsoriamente como mostrado nos filmes da chamada “Ficção Científica do Sul”.

Um mundo ameaçado pelo aquecimento global e guerras. Causa: política, religião, megalomania, crescimento populacional e disputas territoriais. Solução: inteligência artificial, nanoteconolgia e biotecnologia, substituindo progressivamente a ação humana pela automação e robótica. Afastado de profissões enfadonhas como “caixas de banco, frentistas de postos de gasolina, ensino, pilotos, soldados”, o ser humano ocuparia seu tempo livre habitando mundos virtuais tri-dimensionais simulando, por exemplo, “a experiência de se sentar numa praia tropical”. Mais do que isso, o planeta se livraria da ação econômica e política humanas historicamente danosas ao meio ambiente simplesmente transferindo a humanidade para o mundo virtual das redes eletrônicas conectadas com o sistema neuronal humano.

Sobre o quê estamos falando? A sinopse de algum filme de ficção científica ? Longe disso. Essa é a síntese de uma palestra proferida por Denis Bushnell, cientista chefe da NASA no Langley Research Center, na Conferência da World Futurist Society em Boston, EUA em Julho de 2010. Se essas projeções do cientista chefe da NASA vão ocorrer isso pouco importa. O mais importante é a estranha ironia que guarda essa notícia: no espaço de uma organização civil que pretende reunir cientistas e intelectuais para propor visões para o futuro, Bushnell propõe uma estranha utopia, onde a humanidade, de tão inútil e maléfica para o planeta, seria despachada para uma espécie de nowhere virtual. Contrariando a visão de um futuro como lugar que alcançaríamos (seja utópico ou distópico), Bushnell propõe uma migração da espécie humana desnecessária para um “não lugar”.

Estranha visão futurista, pensada como solução para as mazelas do presente, fruto do crescimento da economia globalizada a que o pensador Zygmunt Bauman denomina por “problemas de acumulação de redundantes”: lixo tóxico, populações excedentes e toda uma variedade de refugos que ameaça entrar em um ponto crítico de autocombustão nas grandes cidades (veja BAUMAN, Zygmunt, Vidas Desperdiçadas, Jorge Zahar Editores, 2005).

Bushnell: despachar a humanidade para os 
mundosvirtuais das redes eletrônicas

Se o historiador francês Marc Ferro estiver certo de que o filme pode ser considerado um verdadeiro documento primário por expressar por meio de imagens e movimento o imaginário e sensibilidades de uma determinada época, então encontraremos uma expressão cinematográfica dessa sensibilidade nowhere de Bushnell em um grupo de filmes de ficção científica denominado de “ficção científica do Sul”: uma produção ignorada por críticos e acadêmicos, mas que nos últimos anos passou a ser descoberta. Filmes provenientes de uma região periférica (como a América Latina, por exemplo) ao hegemônico sistema hollywoodiano, que articulam as narrativas e convenções do gênero com elementos culturais regionais e tradicionais.

Filmes que exploram temas como direitos humanos/trabalho e, principalmente, como uma sociedade estruturada em um sistema em rede com uma interface digital contínua apagaria as tensões étnicas e raciais. A alta tecnologia (ícone característico do gênero) convivendo com favelas, deterioração urbana, precarização do trabalho e muito lixo que, muitas vezes, se confunde com seres humanos que necessitam ser controlados, confinados, descartados ou eliminados – imigrantes e estrangeiros humanos ou de outros planetas.

Justamente pelo seu olhar de um ponto de vista periférico, a FC “do Sul” expressaria de forma mais aguda essas contradições criadas pelo movimento de Globalização dos fluxos sociais e econômicos.

A FC do Sul seria a confirmação de uma tendência de produção cinematográfica que ocorre nas margens de Hollywood a partir de filmes como “Blade Runner, O Caçador de Andróides” (1982, co-produção EUA/Hong Kong), “Matrix” (1999, EUA/Austrália), “Código Fonte” (2011, EUA/França), “eXistenZ” (1999, Canadá/França).

Hipo-utopia: o futuro é cada vez mais
parecido com o presente

Se a principal característica do gênero é a especulação sobre mundos futuros utópicos ou distópicos, nessa produção de FC periférica, ao contrário, cria-se uma utopia que poderíamos chamar de “hipo”: na hipo-utopia o futuro tal qual previsto nas utopias científicas e tecnológicas modernistas não se realizou, nem nos seus aspectos positivos (utópicos) ou negativos (distópicos).  “Hipo” no sentido de “insuficiência”, “posição inferior” + “topia” do grego “topos”, “lugar”.

Por exemplo, filmes como a coprodução África do Sul/EUA Distrito 9 (2009) de Neil Blomkamp e o curta Cybraceros (México/EUA, 1997) de Alex Ribera são produções de FC que, paradoxalmente, parecem se ressentir de ausência de futuro: refletem mais as mazelas do presente e as projetam de forma hiperbólica em futuros próximos. Na verdade o futuro não existe, ele é apenas uma tela paródica ou cínica do presente.

Sua forma hiperbólica se manifestaria através de uma narrativa mockumentary (filmes em estilo documentário com um tom paródico), tornando ainda mais explícito esse “futuro do pretérito”: através de uma narrativa realista e hiperbólica, o presente curva-se sobre si mesmo, produzindo um estranho não futuro e um não lugar, muito semelhante ao imaginado pelo cientista chefe da NASA Dennis Bushnell.

Utopia e a imaginação da Modernidade

O pensamento inaugural da utopia (Utopia de Thomas Morus ou Cidade do Sol de Campanella) criará três categorias que tornarão comum na imaginação da modernidade: o topos projetado, o logos excêntrico e o novum estranho.

Esse topos ou lugar outro é projetado no futuro: a consciência inquieta que quer enxergar longe, que quer transpor o estado atual do sonhador. A consciência da carência e precariedade do real, uma projeção do melhor que criaria uma brecha no espaço e no tempo, descontinuidades no fluxo do presente e que abre para caminhos possíveis.

Nessa ontologia do real, o logos do ser seria “excêntrico”, ou seja, se expande do centro (o presente) para explorar o que está fora, nas regiões periféricas do futuro.

Esse topos projetado seria o novum estranho, cujo narrador apresenta esse futuro como novidade e espanto. Esse choque com a nova realidade é ainda potencializado pelo olhar de um “narrador-estrangeiro”, aquele que se deslocou do centro ou do presente em direção da periferia ou do futuro.

Essas três categorias farão parte dos cânones tanto da ficção científica da utopia quando da distopia, embora esse “lado negro da utopia” subverta o novum para um topos hostil e inseguro.

De qualquer forma tanto na utopia quanto nas distopias representadas por obras como 1984 de George Orwell como Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley ainda apresentam, de forma perversamente invertida, o espírito positivo oitocentista nos termos de evolução total da humanidade a partir de uma ideia teleológica de progresso: uma tecnociência que aspira a universalidade através do planejamento e controle da totalidade social, cultural e urbana. A distopia é o topos projetado dos princípios modernos de integração, planejamento e controle elevados ao paroxismo – o “ver para prever” da tecnociência positivista levado ao ponto em que se transforma em pesadelo.

Hipo-utopia e Globalização

Com a evolução da modernidade para a sua fase pós-industrial ou pós-moderna depois da Segunda Guerra Mundial e a aceleração dos fluxos econômico-financeiros com a Globalização na década de 1990 temos uma erosão das categorias que norteavam o paradigma modernista. Autores como Chesneaux (1995), Harvey (1994 ) e Gumbrecht (1994) convergem na tese de que o novo processo econômico baseado em aceleração de fluxos financeiros, humanos e de mercadorias baseou-se em uma nova configuração das tecnociências rompem com o antigo paradigma moderno, ao criar uma ambiência tecnológica computacional onde o sujeito humano é desnaturalizado: da tecnologia como extensões do homem ao momento atual de ruptura onde a tecnologia virtualiza o humano. O resultante é um mundo viscoso, menos estruturado, flutuante que pode ser sintetizado em três palavras-chave: destemporalização, destotalização e crise da noção de progresso.

A destemporalização corresponderia a uma crise teleológica: ruptura com a temporalidade moderna marcada por um fluxo constante que caminha do passado em direção ao futuro. Nelson Brissac Peixoto argumenta que a ficção científica atual perdeu a visão de futuro: primeiro ao mostrar o futuro como pós-apocalipse (como catástrofe, lixo, saturação e decadência) ou como passado, um olhar nostálgico contemporâneo retro, o ímpeto pela vivência intensa de uma época quando a aspiração pelo futuro foi formulada. Em síntese, o futuro do passado.

A ciência se transforma em 
tecnociência e gadgets

Se o futuro como um “não lugar” ou um topos projetado e estranho são um dos cânones do gênero ficção científica, o que teríamos na atualidade seria a sua desconstrução como um percepção de futuro “fraca” que muito mais se remete ao presente – a hipo-utopia.

Outro cânone da ficção científica, a sofisticação tecnológica, entra em crise com a destotalização. A tecnologia até continua sofisticada, porém perde o seu caráter de planejamento, totalização e controle. A Ciência abandonou qualquer projeto que aspirava à universalidade, ao planejamento da totalidade global, social ou urbana. Ao assumir a forma de tecnociência, ela privatiza e individualiza seus propósitos. Abandona o macro para concentrar-se no micro: gadgets tecnológicos sofisticadíssimos e prédios inteligentes conectados com velozes fibras óticas enquanto as ruas e o entorno público são dominados pelo caos da poluição, trânsito e lixo.

A tecnologia transforma-se em gadget: personagens lidam com sofisticados aparelhos a partir de complexas telas, manipulam telematicamente eventos distantes, perscrutam, vigiam e controlam. Porém, diferente das utopias e distopias de controle e totalização do passado, apenas intervêm pontualmente, fragmentariamente, o que só fomenta o caos e a desordem pós-apocalíptica.

Como consequência desse abandono do planejamento macro econômico e social, temos a terceira crise: a perda da noção de progresso. Seja na utopia onde a ciência e a tecnologia conduziriam a humanidade à maioridade através da igualdade e do aperfeiçoamento moral e espiritual; ou seja na distopia onde a ciência domina todos os aspectos da vida a tal ponto que se torna autoritária e abusiva ao massificar os indivíduos como mais um número em uma gigantesca contabilidade, temos visões teleológicas de progresso em seus aspectos positivos e negativos.

O novo Big Brother

Zygmunt Bauman descreve como o progresso da Globalização não cria desigualdades, crescimento dos abismos das classes ou pobreza como nos sistema econômicos clássicos marcados pela exploração da força de trabalho. Simplesmente, o pleno desenvolvimento econômico trouxe a exclusão ou “baixas colaterais”: lixo tóxico, tecnológico e refugos humanos – velhos, estrangeiros, imigrantes etc., todos sem possibilidade de serem integrados. Assim como o lixo informático (baterias, placas etc.) são enterrados em contêineres em algum país africano, da mesma forma uma massa de “redundantes” são empurrados para periferias, guetos ou caçados ou barrados pela polícia de imigração, sem possibilidades de integração. Para o novo sistema global nem são considerados “exército industrial de reserva”, mas “redundantes” e “superpopulação”.

Ao contrário de distopias como 1984 onde o Big Brother integra obrigatoriamente os indivíduos como necessidade econômica de uniformização e controle, o novo Big Brother da hipo-utopia faz o inverso: exclui compulsoriamente. Esses redundantes devem “desaparecer”, seja física ou virtualmente.

Vamos agora analisar alguns exemplos de filmes de FC do Sul e as suas conexões com esse futuro hipo-utópico.

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Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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