Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Computadores, aplicativos e o rebaixamento da noção de inteligência no filme ‘Bigbug’, por Wilson Ferreira

“Bigbug” é uma comédia burlesca que reflete uma tendência atual desde que as pesquisas em inteligência artificial deixaram de tentar emular a inteligência humana

Computadores, aplicativos e o rebaixamento da noção de inteligência no filme ‘Bigbug’

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

Na comédia maluca de ficção científica “Bigbug” (2022, disponível na Netflix), estamos na França retrofuturista de 2045 na qual subúrbios de classe média alta vivem em conforto e cercados por conveniências com a ajuda de inúmeros assistentes robóticos, aplicativos e Inteligência Artificial que se tornam parte integrante do dia a dia. Todos tão imersos nas suas bolhas de facilidades e prazer que não percebem uma rebelião de androides contra o “homo ridiculus”. Presos na própria casa pelo protocolo de segurança de uma IA, para protegê-la do caos que toma conta nas ruas, uma família está tão idiotizada pela tecnologia que não consegue compreender o que passa ao redor. “Bigbug” é uma comédia burlesca que reflete uma tendência atual desde que as pesquisas em inteligência artificial deixaram de tentar emular a inteligência humana: o fenômeno da autoabdicação humana – o rebaixamento da noção de inteligência, permitindo-nos humanizar as máquinas e aplicativos.

Nos anos 1960 havia um otimismo generalizado entre os utopistas tecnológicos de que um dia os computadores poderiam pensar como seres humanos. Eram ainda épocas em que todas as pesquisas no campo da Cibernética e Inteligência Artificial estavam orientadas pelo paradigma antropocêntrico: seja o corpo ou a mente, as máquinas tentariam emular os humanos, seja através de servomecanismos ou a pela busca da autonomia e senciência digital – a definição da inteligência humana. 

O humanismo ainda era o centro do desenvolvimento tecnológico. Mesmo no computador distópico HAL 9000 que pretendia eliminar a tripulação da nave Discovery a caminho de Júpiter, no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Kubrick (para a máquina, uma decisão racional para eliminar o “erro” humano que potencialmente poderia colocar em risco a missão), a maior inteligência artificial falhava por não conseguir emular a “alma” humana.

Porém, a partir dos anos 1980 o conceito de Inteligência Artificial abandonou o paradigma humanista para ingressar nos projetos de desenvolvimento de algoritmos capazes de transformar o Big Data das redes em lucrativas estimativas probabilísticas (como o computados Alladin da empresa de gestão de riscos BlackRock que manipula 7% dos ativos financeiros mundiais) ou estabilizar o ego dos indivíduos que abandonam o real para se protegerem nas bolhas das redes sociais e fugirem das complexidades do mundo.

Mas, apesar dessa mudança de paradigma, o conceito de “Inteligência” ainda permanece, porém, numa irônica paródia: a “superinteligência”, recurso de retórica propagandística para reduzir os nossos padrões e expectativas sobre inteligência.

Enquanto as compras na Internet chegam em nossas casas, enquanto luzes acendem e ar-condicionados ficam na temperatura certa ao comando da nossa voz ou a IA  Alexa sabe a nossa play list de cor e salteado, acreditamos que tudo isso é “inteligência” – confundida com “conveniência”.

Se simplificarmos tanto a nossa ideia de inteligência, as máquinas poderão finalmente realizar o projeto de HAL 9000. Não porque ficaram “inteligentes”. Nós é que nos tornamos burros por acharmos que os computadores são realmente inteligentes.

 Essa é a discussão de fundo de uma comédia maluca de ficção científica francesa chamada Bigbug (2022, disponível na Netflix), sobre robôs e inteligências artificiais, dirigida e escrita pela dupla de longa data Jean-Pierre Jeunet e Guillaume Laurant de produções como A Cidade das Crianças Perdidas (1995), Amélie (2001) e Micmacs (2010).

Tudo se passa em uma casa de subúrbio de classe média em 2045. Computadores, robôs e IA controlam tudo através de uma rede de conveniências que vai de abrir a uma simples lata de ervilha na cozinha, acionar pequenos robôs que limpam a casa a uma extensa rede que controla todas as máquinas da cidade, como a Skynet do clássico Exterminador do Futuro.

Toda a ação se passa no interior de uma casa na qual uma família está prisioneira no interior de uma casa depois que um protocolo de segurança foi automaticamente acionado: a IA chamada “Nestor” e um conjunto de robôs domésticos leais cerraram todas as portas e janelas para proteger a família de um gigantesco “bug” – uma raça militarista de androides chamada Yonyx (que parecem o androide policial Murphy de Robocop) estão dando um golpe de Estado quando assumem o comando da Internet das coisas, provocando um gigantesco congestionamento que aprisiona os humanos em seus carros automáticos.

Todo o humor sociopolítico de Bigbug vem do contraste entre os humanos (tão confortáveis com os gadgets excêntricos que abdicaram das suas próprias inteligências) e as máquinas e os oniscientes algoritmos que automatizaram as funções mais básicas do cotidiano – tal como o HAL 9000, chegaram à conclusão de que a humanidade é um “ruído” que deve ser eliminado da equação.

O Filme

Toda a ação de Bigbug se desenrola no interior de uma residência como fosse uma reality show.  Elsa Zylberstein é a dona da casa, uma mulher recém-separada com uma filha adolescente adotiva (Marysole Fertard). Ela convidou seu novo namorado (Stéphane De Goodt) e seu filho (Helie Thonnat ) para uma visita ao mesmo tempo em que seu marido (Youssef Hajdi) e sua secretária/amante (Claire) estão se preparando para sair de férias. 

Por trás de todas as respetivas tensões sexuais e hostilidades passivo-agressivas dos humanos entre si, roda as complexas camadas hipertecnológicas domésticas e sociais.

Várias gerações de tecnologia são representadas na tela. A filha tem um robô de brinquedo pequeno e comparativamente simplista que costumava ser seu companheiro de infância; é brilhante e branco e tem uma cabeça redonda e membros arredondados. 

Há um pequeno roover com pneus aderentes, braços retráteis expansíveis e pescoço — um robô doméstico que vemos pegando coisas, limpando o piso e ajudando na cozinha. 

Também há um robô com um rosto de fios de espaguete de latão e pernas curtas de inseto conhecido como Einstein (dublado por André Dussollier) que coordena os outros robôs de geração mais antiga. Há uma humanoide (Claude Perron) que se assemelha às fantasias de uma empregada doméstica da década de 1960 da animação Os Jetsons. E há uma IA invisível a qual os habitantes acessam sempre que desejam controlar exibições de vídeo ou áudio, aumentar ou diminuir o calor ou o frio ou abrir as portas para sair ou admitir visitantes.

Diante do caos urbano, a IA caseira Nestor tranca todos os protagonistas na casa. E não importam o que façam ou tentem, não conseguem abrir as portas, criando um cenário típico do grande diretor espanhol Luis Buñuel nos filmes O Anjo Exterminador e O Discreto Charme da Burguesia – sátiras sobre uma mimada e complacente classe média alta presa sob um mesmo teto. Se em Buñuel os motivos são surreais ou metafísicos, aqui em Bigbug tudo se origina na tecnologia que, de tão precisa, onipresente e intrusiva, alcançou um estado de “hipertelia”: estado de “vanish point” do desenvolvimento no qual a obesidade tecnológica chega a tal ponto de complexidade em que ocorre uma paradoxal inversão da finalidade inicial, tendendo à inutilidade, inércia, disfuncionalidade. Ponto de viragem tecnológica que inviabiliza a finalidade inicial para a qual o sistema foi construído.

Continue lendo no Cinegnose.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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