Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Ensaio de Orquestra: Fellini acerta contas com caos sócio-político, por Wilson Ferreira

Em sua obra, Fellini sempre teve aversão ao tema da Política. Principalmente desde que conheceu a obra do psicanalista Jung: preferiu representar no cinema o eterno, o arquetípico e o inconsciente coletivo. Mas diante da turbulenta conjuntura política da Itália nos anos 1970, Fellini resolveu fazer um acerto de contas com a política no filme “Ensaio de Orquestra” (Prova d’Orchestra, 1978) – sobre as tumbas de papas e bispos em uma igreja do século XIII dotada de acústica perfeita, o ensaio de uma orquestra transforma-se em metáfora do caos sócio-político italiano naquele momento: os conflitos entre o maestro e a orquestra e dos músicos entre si. Fellini confronta o eterno e o arquetípico (a religião, a música e a História) com a fugacidade dos interesses políticos e individuais. E com uma sombria conclusão: diante do temor do futuro, sempre optamos pela manutenção do mesmo.

Ensaio de Orquestra (1978) talvez seja a obra menos conhecida de Fellini. O diretor sempre foi lembrado pelos seus melhores filmes mais distantes como A Estrada da Vida (1954), A Doce Vida (1960) e 8 ½ (1963). Naquele momento, muitos críticos consideravam que Fellini teria perdido o seu talento ou, no mínimo, não tivesse mais o que dizer.

O filme Ensaio de Orquestra foi um projeto originariamente pensado para a televisão – o filme tem 70 minutos. E totalmente rodado em um único estúdio como se uma equipe da TV estatal italiana, a RAI, estivesse fazendo um documentário sobre uma orquestra, entrevistando cada músico e as circunstâncias do ensaio.

Fellini sempre deixou clara sua aversão à temática política. Principalmente depois de 1961 quando, através de um psicanalista, conheceu a obra de Jung a passou a se interessar pelos conceitos de arquétipo e inconsciente coletivo – conceitos amplamente explorados em filmes como 8 ½ , Satyricon (1969), Casanova (1976) e Cidade das Mulheres (1980).

Porém, a produção do filme coincidiu com o sequestro , tortura e assassinato do primeiro ministro, Aldo Moro, pelas Brigadas Vermelhas – Moro pretendia uma conciliação pacífica entre o lado comunista do parlamento com a extrema direita apoiada pelo EUA no contexto da Guerra Fria. Mas as Brigadas Vermelhas, grupo de revolução armado, não aceitava isso. Aliás, nenhuma das partes aceitava, com muitos interesses sectários e pouco preocupados com a situação econômica da Itália.

Dessa forma, a tensa conjuntura política italiana serviu como pano de fundo e metáfora da Itália como uma orquestra confusa e fora de sintonia; tudo isso combinado com uma abordagem arquetípica da música e do som: mas do que fazer parte do mundo, a música é o próprio mundo, apesar da sua banalização pelo gosto e a pretensão individual de cada músico que transforma o seu instrumento em álibi para autoindulgência.

Ensaio de Orquestra foi na época criticado por ser ambíguo e não ter um ponto de vista definitivo: há o autoritarismo do maestro, a exploração dos músicos, a luta de classes, o sindicato que tenta unir os  músicos, os anarquistas, autonomistas, a revolta e os conflitos. 

Porém a mensagem de Fellini é melancólica e amarga – por isso, talvez, tenha desagrado a crítica: apesar do descontentamento e revolta popular, tudo o que se consegue é o caos sócio-político – e o povo, empobrecido com as perdas e temente do futuro, no final acaba sempre optando pela manutenção do status quo.

O Filme

A narrativa inicia a câmera da equipe de TV enquadrando o idoso copista da orquestra (quase sempre os personagens falam diretamente para a câmera e ouve-se em of perguntas e intervenções dos produtores) que explica a história daquele local em que ocorrerá o ensaio (uma igreja do século XIII onde estão tumbas de três papas e sete bispos) que em 1871 foi transformado em auditório para concertos graças a sua acústica perfeita. 

 

Essa abertura do filme é simbólica e essencial: toda a narrativa de conflitos e tensões que ocorrerá daquele ponto em diante, ocorre sobre personagens ilustres enterrados e sobre a própria História – religião e música.

Depois acompanhamos a lenta chegada dos músicos que são avisados por um líder sindical que uma equipe de TV pretende fazer um documentário sobre a orquestra. Inicia-se o primeiro conflito: como o sindicato permite que a TV os entreviste sem pagar nada? Por que deveriam participar?

Também de imediato percebemos que há um proposital atraso no som diegético do filme em relação à imagem – como se Fellini quisesse usar essa “falha” técnica como metáfora da completa falta de sincronia entre os músicos da orquestra.

Todos falam ao mesmo tempo numa mescla de desorganização com falta de educação – um preocupa-se com o resultado de um jogo no seu radinho portátil, outro pensa em tomar os remédios, uma violinista entorna uma garrafa de bolso de uísque enquanto dois outros músicos discutem a posição da cadeira.

Logo o entrevistador (na voz do próprio Fellini) começa a conhecer cada um dos integrantes da orquestra: cada um defende o seu instrumento como o mais importante na execução de um concerto, enquanto alguns recusam serem entrevistados. Mas começamos a perceber que a fala de cada músico nada tem a ver com o instrumento ou a orquestra, mas consigo mesmos – como o instrumento reflete a própria personalidade, mas sempre o melhor lado possível.

 

Por exemplo, uma flautista fala que o vento da flauta afeta a cabeça do artista, o que se espera, por isso, que todo músico faça algo em comum – e a flautista dá uma cambalhota para a câmera da TV. Na verdade, poucos falam sobre música, mas apenas de si mesmos.

Até chegar o maestro, detalhista e severo, que não admite o menor erro e exige a repetição de movimentos até a perfeição. Mas a tensão cresce quando um dos músicos grita uma lei sindical que não permite mais de três repetições. “Vocês deveriam preocupar-se mais com a música do que com o sindicato…”, replica o maestro.

O que dá início ao confronto entre orquestra e maestro (Estado X Sociedade? Capital X Trabalho?) que aos poucos irá se deteriorar em revolta, pichações nas paredes da igreja, dejetos jogados contra os retratos de músicos consagrados, quebra de cadeiras e violência. 

E não tarda para os próprios músicos se dividirem entre os pró-maestro (saudosistas dos “bons tempos” nos quais se respeitavam autoridades), sindicalistas (querem substituir o maestro por um metrônomo), anarquistas (não querem nem um e nem outro) e os simplesmente alienados que continuam a conceder entrevistas como se nada estivesse acontecendo.

Passado versus presente

No Ensaio de Orquestra parece que Fellini apresenta o porquê da aversão à política na sua cinematografia: o tempo inteiro a narrativa contrapõe o passado, a História e o arquetípico com a fugacidade dos interesses individuais ou políticos. Para começar, como destacamos acima, todos os conflitos entre os personagens ocorrem em uma igreja do século XIII, sobre tumbas de papas e bispos.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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