Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Não existe almoço grátis para o remake “RoboCop”

“Não existe almoço grátis”, diz uma frase popular americana que sintetiza bem o espírito pragmático daquele país. E José Padilha, diretor brasileiro de Tropa de Elite (2008), deve ter comprovado isso ao ser convidado pelos estúdios da MGM para dirigir o remake do clássico de ficção científica “RoboCop” dirigido pelo holandês Paul Verhoeven em 1987. Atravessando séria crise financeira, o estúdio não quis se arriscar em fazer uma refilmagem com o mesmo tom crítico visceral da versão original: os temas da ganância corporativa, do desmanche e da privatização da segurança pública estão diluídos em um roteiro onde os vários coadjuvantes se equivalem em meras opiniões ou pontos de vista. Mais ainda, o filme parece apresentar um estranho ato falho: ao colocar o papel da mídia como o principal instrumento de manipulação corporativa, sugere que o próprio filme estaria mostrando que o seu herói RoboCop poderia ser o instrumento de um lobby bastante atuante em Hollywood, o da indústria de armas.

Na verdade o filme seria dirigido por Darren Aronofsky (“Cisne Negro” e “Pi”), que abandonou o projeto no meio do caminho (o roteiro já estava pronto) diante das sérias dificuldades financeiras do estúdio – segundo a revista Financial Time a MGM possui uma dívida atual de 3,7 bilhões de dólares e grande parte dos seus lucros são atualmente drenados para o pagamento dos juros – sobre isso clique aqui. As especulações sobre o motivo da desistência de Aronofsky foram muitas: resistências fazer um filme em 3D, recusa da MGM em pagar alto salário a um consagrado diretor e rejeição do estúdio pelo roteiro apresentado por Aronofsky.

O fato é que José Padilha acabou trabalhando com o roteiro do estreante Joshua Zetuner e como protagonista escolheu o sueco Joel Kinnaman. As locações foram feitas fora dos EUA, no Canadá – as más línguas diriam que todas essas alternativas mais em conta teriam sido escolhas naturais de um estúdio pendurado sobre um abismo financeiro.

Em épocas de vacas magérrimas, o estúdio MGM não quis arriscar-se a fazer um remake tão visceral quanto o original Robocop de 1987. E a estreia de José Padilha em Hollywood não foi um almoço grátis: o roteiro do remake parece querer agradar ao lobby da indústria de armamentos militares, bastante ativo em Hollywood e sempre sintonizado com a política externa dos EUA – quem não se lembra da participação especial na entrega do Oscar no ano passado da Primeira Dama Michelle Obama em um link ao vivo diretamente da Casa Branca anunciando o Oscar de Melhor Filme para Argo, produção que fazia apologia a uma imaginosa tática de libertação de reféns da embaixada norte-americanos presos no Irã em 1979.

A aparente complexidade do roteiro com diversos
coadjuvantes serve apenas para diluir os
temas mais viscerais que 
a versão original destacava

Em 1987 Verhoeven construiu um cenário cínico e direto (é antológica a sequência quando um robô protótipo metralha por mau funcionamento um advogado durante uma reunião de executivos e ninguém dá bola e o encontro segue normalmente) de uma Detroit onde o Departamento de Polícia era privatizado pela empresa OCP criando um sistema corrupto envolvendo um cartel de drogas. A indiferença yuppie e a ganância corporativa, o desmanche do poder público, a precarização do trabalho policial e os consequentes conflitos trabalhistas (policiais resistem fazendo greve) e a utopia da paz social pela força contados sob a forma de uma comédia sangrenta em estética de filme B.

Ao contrário, o roteiro de RoboCop 2014 é ambíguo, indireto e até metalinguístico: todos os acontecimentos do filme são comentados por um apresentador histérico e ultranacionalista de direita de um programa sensacionalista (“The Novak Element”) em que abertamente apoia o projeto da OmniCorp de uma América pacificada por robôs policiais. Bem diferente do original, o remake é construído através de um roteiro que cria um intricado painel de pontos de vista com uma série de coadjuvantes: o cientista e as questões da ética na ciência; a corrupção policial; o debate do poder e influência da mídia através do âncora de TV reacionário e os profissionais do departamento de marketing da OmniCorp (a questão da engenharia de opinião pública).

O filme abre com uma sequência da cidade de Teerã “pacificada” por um exército robótico da OmniCorp – num futuro próximo os EUA já dominam o Irã (!), uma evidente projeção da atual pauta da política externa norte-americana. “Tudo isso sem arriscar vidas americanas!”, exclama o âncora que defende também a aplicação de drones e robôs nas cidades violentas dos EUA. E com uma vantagem: máquinas não são corrompidas como os seres humanos.

Um senador com o argumento humanista de que máquinas não podem puxar um gatilho e decidir sobre a vida e a morte porque não têm sentimentos ou juízo moral, bloqueia no Congresso todas as tentativas da OmniCorp de expandir seus negócios no mercado norte-americano.

E aí surge a grande chance para os negócios corporativos: o honesto policial Alex Murphy da polícia de Detroit é vítima de um atentado de um cartel de drogas corruptor de policiais. Uma explosão o deixa com apenas 20% do corpo que será completado pela biotecnologia ciborgue em sofisticados laboratórios em uma sucursal na China. Ele será a peça de marketing perfeita: a alma humana dentro de uma máquina, o personagem ideal para que a opinião pública aceite a nova paz social mantida por ciborgues da OminiCorp.

Mas o que deveria ser uma aliado, torna-se um conflito: os sentimentos humanos de Alex Murphy diminuem a resposta e performance do novo ciborgue, comparado com os RocoCops que rodam softwares 100% digitais. Sentimentos como compaixão e medo reduzem o desempenho em momentos de ação. Solução: dopar a consciência e emoções do policial até transformá-lo em zumbi comandado por um software.

Ambiguidades e clichês

 Se fosse na versão original de Verhoeven, esse conflito seria o momento para expor de forma direta a ganância corporativa e os danos coletivos de um projeto de privatização da segurança pública. Ao contrário, RoboCop de José Padilha em primeiro lugar dilui esse núcleo temático no drama familiar de Alex Murphy: o filho não quer ir mais para a escola e a esposa luta contra a corporação apenas para trazer seu marido de volta para casa – ou o que restou dele.

Clichê hollywoodiano: esposa enfrenta a 
corporaçãopara reaver o marido e 
salvar sua família

Típico clichê hollywoodiano onde o contexto político é diluído em um drama onde uma família ou um casal de amantes luta para, desculpe o trocadilho, reunir os pedaços – clichê comum em thrillers e filmes-catástrofe como Guerra dos Mundos ou 2012 onde, diante do apocalipse, dramas familiares tentam ser resolvidos.

Mas o pior é a ambiguidade dos múltiplos pontos de vista representados pelos diversos coadjuvantes do filme: o cientista (Gary Oldman), o apresentador de TV histérico (Samuel Jackson), o CEO da OmniCorp (Michael Keaton), a oficial de polícia (Marianne Jean-Baptiste) e o senador Hubert Dreyfuss (Zach Grenier). Todos os pontos de vista parecem encontrar suas justificativas e motivos, anulando qualquer juízo do espectador. A impressão é que estamos diante de uma narrativa complexa e profunda, mas tudo é mera diluição.

Efeitos em CGI como vídeo games

O mais sério é o caso do apresentador de TV Pat Novak. Se o pesquisador em mídia o francês Regis Debray estiver certo, toda imagem é afirmativa: é impossível criticar uma realidade através de uma imagem midiática que mostre essa mesma realidade – leia DEBRAY, Regis. Curso de Midiologia Geral, Vozes, 1993.

O mais alto investimento do filme RoboCop foram nos efeitos em CGI envolventes e sedutores (bem diferentes dos efeitos stop motion da versão original)  onde, por exemplo, acompanhamos a interface da mente de Alex Murphy e as decisões que ele tem que tomar em frações de segundo. Somos rendidos aos argumentos de Novak e da OmniCorp porque parece que nos divertimos muito mais com o Alex Murphy sem sentimentos humanos e sob o comando do software. Tudo porque os pontos altos do filme não são as ironias e a violência em humor negro (como na versão original), mas a tecnologia dos efeitos especiais em CGI.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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