“O Ato de Matar” e o espelho oculto, por Juliana Ladeira

Por Juliana Ladeira

O Ato de Matar” (The Act of Killing, Inglaterra/Noruega/Dinamarca, 2013), dirigido pelo dinamarquês Joshua Oppenheimer, é um documentário sobre o regime militar que assolou a Indonésia 40 anos atrás. Na ocasião, o governo se aliou a gangsters que, junto aos paramilitares, executaram mais de 1 milhão de pessoas em menos de um ano, sob a acusação de serem “comunistas”.  Apesar de evocar um acontecimento de outro tempo, o filme não se limita a visitar aquele momento histórico – ele avança sobre o presente e soa terrivelmente atual.

O gênero de documentário tem compromisso com a realidade, mas vale lembrar que é, acima de tudo, uma representação subjetiva dessa realidade. Como já disse Werner Herzog, cineasta e produtor do filme, “O documentário deveria se afastar dos fatos, porque fatos não são a verdade”, e é exatamente aí que o filme ganha em proporção e potência, ao revelar uma Indonésia mais distópica do que muitos seriados de ficção.

A proposta é perturbadora: O diretor convida os assassinos a recriar alguns dos seus crimes, como um filme de Hollywood. Para nossa surpresa, o desafio é aceito. A partir daí, somos testemunhas de uma cruel teatralização de execuções, tortura, massacres de vilas inteiras e, ao mesmo tempo, observamos o deleite daqueles senhores de idade, pais de família e avôs, que voltam a ser crianças com a oportunidade de rodar um filme.

É desgostoso perceber que existe uma dose extra de loucura, de ruptura humana e social, na vida psíquica desses matadores. É incômoda a ausência de remorso nos sorrisos cordiais e nas cenas interpretadas com mais ou menos seriedade. É indigesto acreditar que Anwar Congo, o simpático protagonista, se inspirou nos filmes de ação americanos ao executar centenas de homens, mulheres e crianças.

Não há cenas de arquivo – O diretor, de forma inventiva e interessante, consegue orquestrar uma ficção mais chocante que a própria vida, ao incentivar os seus personagens a mitificar suas experiências. Hoje, os executores distribuem autógrafos, fotos sorridentes e entrevistas bem-humoradas na TV. Para arrematar, uma sequência musical grotesca, que captura a versão fantasiosa da história, compartilhada pelos genocidas.

Ao longo do filme, também somos apresentados a figuras como Ibrahim Sianik, editor de um jornal e a favor do regime, que diz existir “muita democracia” no país de hoje; e também conhecemos o presidente do Pemuda Pancasila, organização paramilitar que ainda conta com 3 milhões de adeptos no país, cujo discurso reverbera aquela realidade política e, como um espelho, reflete o contorno do nosso Brasil atual: “ Todos os membros do Pemuda Pancasila são heróis. Por exterminar os comunistas, por lutar contra os neo-comunistas, extremistas de esquerda, e aqueles que querem destruir nosso país! Esse não é dever único do nosso Exército e polícia! Nós, do Pancasila, temos que nos posicionar. Existem ameaças ao nosso país, e nós temos que agir!”

Soa familiar?

 
Redação

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