Um ano sem Eduardo Coutinho e a arte do “cinema humano”

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Um ano sem Eduardo Coutinho

Por Felipe Shikama

No jornal Cruzeiro do Sul

Foi de forma trágica que o cinema perdeu Eduardo Coutinho em 2 de fevereiro de 2014. Considerado o maior documentarista brasileiro de todos os tempos, o cineasta foi morto a facadas pelo seu filho Daniel, durante um surto de esquizofrenia.

Nascido em São Paulo e radicado no Rio de Janeiro, Coutinho morreu aos 80 anos e deixou obras primas do cinema como Cabra marcado para morrer (1984), Edifício Master (2002) e Jogo de Cena (2007). O domínio da linguagem, o respeito com o interlocutor e a preocupação com a temática social são algumas das características do cineasta que contribuiu decisivamente com a valorização do documentário, ao jogar luz a esse gênero fértil do cinema nacional.

Um ano após a sua morte, cineastas e pesquisadores sorocabanos relembram a importância do diretor, conhecido por fazer um “cinema humano”, caracterizado pela entrevista e, sobretudo, pela capacidade de ouvir quem estava em frente à sua câmera. “Coutinho era um desbravador, acho que não tem outro termo que o definiria de melhor forma. Ele trouxe uma nova linguagem ao documentário brasileiro, renovou o olhar, mostrou que o indivíduo tinha importância tanto nas grandes como nas pequenas coisas, e que pessoas comuns poderiam ser protagonistas de grandes histórias”, afirma o realizador de audiovisual Cleiner Micceno, presidente da Academia Sorocabana de Fotografia, Cinema e Vídeo.

Para Míriam Cris Carlos, roterista e professora do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso), Coutinho representa um marco no cinema brasileiro, especialmente por inserir no documentário a marca da subjetividade, a inserção direta e explícita do olhar particular do documentarista, iluminando a realidade a partir da vida comum. “Coutinho foi capaz de transformar o cotidiano em poesia, mostrando que toda vida vale uma história para ser bem contada, desde que se saiba ouvir”, assinala, destacando justamente que o “ouvir” era a principal marca do cineasta. “Ele conseguia extrair o mais profundo das pessoas, a sua essência, por sua capacidade extraordinária de prestar atenção ao que outro tinha para dizer”, enfatiza.

Cineasta, curador do projeto Cinecafé e secretário de Cultura de Votorantim, Marcelo Domingues descreve a sensação que teve ao assistir pela primeira vez Cabra marcado para morrer. “O impacto foi grande. A maestria como Coutinho lida com a história inicial, os acontecimentos reais que envolveram o filme, a família do líder morto e a passagem do tempo são marcas de um cineasta que domina a linguagem como poucos”.

Já para Cleiner, o impacto provocado pelo mesmo filme é comparado a um “soco no estômago”. “É marcante a crueza estética do trabalho, verdadeiro cinema de guerrilha. Acho que esse é um dos grandes momentos do cinema, seja documentário ou não”, enfatiza.

O longa-metragem Cabra marcado para morrer começou a ser rodado em fevereiro de 1964 e pretendia contar a história política do líder da liga camponesa de Sapé (Paraíba), João Pedro Teixeira, assassinado em 1962. No entanto, com a censura imposta pelo regime militar, as filmagens foram interrompidas. A produção seria retomada 17 anos depois, quando Coutinho e sua equipe voltam à região e reencontram a viúva de João Pedro, Elisabeth Teixeira e muitos dos outros camponeses que haviam atuado nas primeiras cenas do filme. “O filme (Cabra marcado) faz pensar sobre a importância de se relatar os fatos, de se interpretá-los, de se dar valor aos acontecimentos, registrando-os a partir de um olhar sensível, atento e paciente”, complementa Míriam.

A margem em cena

“A obra de Eduardo Coutinho é um marco no cinema brasileiro e também mundial. Seu modo de documentar, principalmente os marginalizados, tornou-se referência e escola cinematográfica”, avalia Domingues. Dono de uma extensa filmografia, por várias vezes Eduardo Coutinho se dedicou em filmar a situação vivida pelas classes subalternas da sociedade brasileira, desde os camponeses da década de 1960, até os operários metalúrgicos da região do ABC Paulista (Peões), passando por catadores de lixo do município de São Gonçalo (Boca de lixo) e moradores da favela carioca (Babilônia 2000).

Entre a década de 1970 e 1980, Coutinho trabalhou no Globo Repórter e lá pôde filmar a “elite” econômica brasileira, representada pelo fazendeiro Theodorico Bezerra. Para o programa televisivo, Coutinho realizou um documentário de média-metragem, em 16mm, intitulado Theodorico, o imperador do sertão (1978). Rodado em uma fazenda do Rio Grande do Norte, o cineasta conseguiu expor a visão de mundo do personagem, o “coronel” Theodorico, ferrenho defensor do paternalismo, do autoritarismo e da exploração de seus empregados em nome do acúmulo de riquezas.

Linguagem própria

Cleiner Micceno defende que Eduardo Coutinho foi responsável por criar uma “linguagem própria” do documentário brasileiro. “Ele fez o documentário ganhar novo patamar estético, assim como dar o devido destaque que esse trabalho merece. Coutinho fez o documentário se tornar algo de maior interesse para o público, indo além, influenciou a sua própria geração e continua influenciando a atual de documentaristas. Esse legado acho que é sua principal contribuição para todos realizadores brasileiros”, opina.

Entre os principais nomes da nova geração de documentaristas brasileiros, todos diretamente influenciados por Coutinho, Cleiner cita Gabriel Mascaro (Doméstica e Um lugar ao sol), Marcos Prado (Estamira), Marcelo Masagão (Nós que aqui estamos por vós esperamos) e Roberto Berliner (A pessoa é para o que nasce).

Míriam Cris compara Coutinho ao cineasta francês Jean Rouch, fundador do chamado “cinéma-vérité” ou cinema verdade. “Ele inaugurou um cinema singularmente dele, deixando uma marca indelével que é da sua própria subjetividade. Coutinho consegue ser autoral dando voz ao outro”, resume. “Trata-se de um cinema que privilegia o humano e desnuda o outro. Nesse exercício de alteridade é que Coutinho se revela”, complementa Míriam.

Domingues complementa que os filmes de Coutinho são capazes de emocionar plateias com apenas o enquadramento de um rosto. “Um cineasta que nos deixou um legado de obras-primas e uma inconfundível linguagem que se transformou em escola”.

Dono de um estilo próprio e com grande domínio da linguagem cinematográfica, Coutinho lança em 2007 Jogo de cena, obra que radicaliza o debate situado na linha tênue que separa realidade e ficção ou, quem sabe, encenação. No filme, como um espelho cinematográfico, mulheres anônimas e atrizes contam histórias de suas vidas ou representam episódios vividos por outras pessoas, evidenciando a tese original de que “cada um é dono da sua história”. “O jogo entre real e ficção, objetividade e subjetividade, interpretação e representação fica hiperbólico no meu filme preferido, que é Jogo de Cena. Ali Coutinho dá uma aula do que é ouvir e do que é narrar”, considera Míriam Cris.

O homem em foco

Para alguns pesquisadores, a obra de Eduardo Coutinho pode ser dividida em pelo menos duas fases, sendo a primeira como foco central as grandes questões sociais (como Cabra marcado; Theodorico; e Boca de Lixo) e uma segunda, no qual o indivíduo passa a ser o principal objeto de descoberta de seus filmes. É o caso de Santo forte (1999), no qual Coutinho ouve depoimentos sobre a relação das pessoas com a religião; Edifício Master (2002), que reúne histórias de moradores de um antigo edifício situado em Copacabana; e Canções, que Coutinho desenvolve junto de personagens anônimos a partir da seguinte questão: “Qual é a música que marcou a sua vida”. “Como todo cineasta que deixa um legado tão grande e tão importante que atravessa décadas, é possível identificar fases. Todo artista engajado em contextos sociais, como é o caso de Coutinho, tende a refletir o momento em que está inserido”, explica Marcelo Domingues.

Marcelo reitera que após deixar a equipe do Globo Repórter, Coutinho seguiu fazendo documentários mais focados em questões sociais, mas na virada do milênio foi possível identificar uma obra mais focada no indivíduo e suas pequenas/grandes histórias, no humano. “De qualquer maneira, podemos dizer que as questões sociais, humanas e os marginalizados sempre foram matéria-prima para esse cineasta que domina a linguagem do documentário de forma profunda, capaz de extrair do simples as reflexões mais ricas sobre a vida”, conclui.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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