Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Um salto para o fundo infinito da mente no filme “Nothing”, por Wilson Ferreira

 

Com inegável influência do grupo inglês de humor Monty Python, “Nothing” (2003) acompanha a vida de dois amigos que inexplicavelmente pulam para uma outra dimensão onde apenas restaram eles próprios e a casa, cercados pelo Nada – um aparente gigantesco fundo infinito branco. Ou será que estão prisioneiros no interior de suas próprias mentes? Dirigido por Vincenzo Natali (diretor do cult de terror “Cube”), o filme é uma experiência minimalista com argumento PsicoGnóstico: naquele nada, acharam que viraram deuses, capazes de deletar qualquer coisa de que não gostem (inclusive suas memórias). Mas há um perigo: poderão deletar a si mesmos. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

O humor do grupo inglês Monty Python sempre direcionou sua munição contra os papéis sociais, autoridades e a moral, mostrando o absoluto ridículo e non sense do funcionamento das instituições. Por décadas essa trupe inglesa desconstruiu as normas sociais nas suas piadas em programas de TV e filmes no cinema como Em Busca do Cálice Sagrado ou O Sentido da Vida.

 Com a virada do século, o diretor canadense Vincenzo Natali (fã do Monty Phyton, mais precisamente de um de seus integrantes, Terry Gilliam) decide focar esse humor non sense na própria mente humana, resultando no conceito de “realidade editada”, nos termos do diretor.

O resultado foi o filme Nothing (2003), um dos filmes mais minimalistas e estranhos dos últimos tempos: dois losers que não esperam nada da vida se defrontam com o próprio nada: são inexplicavelmente jogados para uma dimensão que figura como um enorme fundo infinito branco – eles só têm a si mesmos, sua casa e um gigantesco nada por todos os lados como uma espécie de um gigantesco e branco tofu!

Vicenzo Natali já vinha de experiências minimalistas com baixo orçamento como Elevated (1997) e o cult de terror Cube (1997). Mas em Nothing, Natali radicaliza: dois atores contracenando em um fundo infinito branco que certamente é a representação do interior de suas próprias mentes. 

 

Com muitas alusões ao estilo Monty Python de humor (os movimentos de câmera delirante estilo Terry Gilliam, a clássica cena dos braços e pernas decepadas do cavaleiro negro no Em Busca do Cálice Sagrado, cabeças falantes sem corpo como em As Aventuras do Barão e Munchausen, os diálogos non sense etc.) Natali embarca em uma viagem PsicoGnóstica – os atores não são mais prisioneiros em um cosmos material. Agora a prisão é suas próprias mentes.

Em entrevistas Vincenzo Natali afirmava que Nothing era o lado divertido do filme anterior Cube. Certamente, o diretor evoluiu com um conjunto de filmes gnósticos pós-Matrix que começaram a focar o funcionamento da mente como uma nova prisão dos protagonistas. Filmes da época como Vanilla Sky (2001), Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004) ou A Passagem (Stay, 2005) mostravam constantemente protagonistas que de alguma forma tornaram-se prisioneiros ou estavam perdidos no labirinto das suas memórias e nos mecanismos da mente.

Roteiristas e diretores como Charllie Kauffman ou Michel Gondry não estavam mais interessados em ilusões virtuais, tecnológicas ou cenográficas que enganavam protagonistas como em Matrix ou Show de Truman. O século XXI agora oferecia os perigos e as armadilhas da mente.

O Filme

Nothing acompanha a vida de dois perdedores chamados Dave (David Hewlett) e Andrew (Andrew Stan). Dave teve uma carreira musical fracassada e arrumou um pequeno trabalho para sobreviver, enquanto Andrew sofre de agorafobia e não consegue sair de casa: ironicamente trabalha como agente de turismo na Internet, vendendo pacotes turísticos como se já tivesse conhecido o mundo – aqui uma visão cínica de como no mundo virtual cada um é capaz de criar a melhor imagem de si mesmo. 

Eles criaram uma amizade perfeita e moram em uma pequena casa espremida entre duas autoestradas poluídas e barulhentas. De repente, tudo começa a dar errado: Dave é acusado de peculato no trabalho (na verdade, sua namorada roubou o dinheiro hackeando o sistema da empresa), Andrew é acusado de molestar sexualmente uma pequena bandeirante vingativa (não me perguntem porquê) e a prefeitura envia uma equipe de demolição para botar a casa deles a baixo por ser considerada uma ameaça à segurança do tráfego.

Desesperados, Dave e Andrew veem bater na sua porta a polícia, advogados e operários da prefeitura. Eles trancam a porta, fecham as janelas e desejam que todo mundo vá embora e… funciona! Até melhor do que pretendiam: simplesmente o mundo desaparece e descobrem que a casa simplesmente ficou suspensa em um vazio, branco e macio “como um tofu”, como compara Dave. Tudo o que permaneceu foram eles próprios e a casa com tudo no seu interior – inclusive uma tartaruga de estimação.

Depois de explorarem as qualidades físicas daquele nada (o chão é macio e podem pular como num trampolim), descobrem que têm o poder de fazer coisas desaparecerem. Acham que tornaram-se deuses. Mas há uma limitação: não podem fazer coisas aparecerem.

Depois que Dave e Andrew desistem de explorar a geografia inexistente daquele fundo infinito (simplesmente não há distinções entre leste e oeste, norte e sul ou em cima e em baixo), a narrativa de Nothing começa a ficar mais introspectiva: só poderão interagir um com o outro. O que resultará em um mergulho nas memórias e segredos escondidos de cada um, criando tensões, brigas e acertos de contas de diferenças do passado.

A falsa Gnose

Cada vez mais o espectador vai percebendo que tudo aquilo pode ser a metáfora da própria mente dos protagonistas, uma viagem interior por traumas e memórias. E nesse ponto, Nothing sintoniza-se com a visão crítica do filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças – a crítica às chamadas “tecnologias do espírito”, as diversas técnicas terapêuticas e de autoajuda atuais que defendem o esquecimento como forma de superação de todos as nossas barreiras interiores que supostamente limitariam nossas potencialidades e realizações.

 

Se em Brilho Eterno temos uma máquina que escaneava a mente para deletar más memórias, em Nothing Andrew e Dave descobrem que também têm o poder de fazer desaparecer memórias infelizes. 

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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