A ditadura já começou, por Luis Felipe Miguel

O novo regime busca hoje manter ao máximo a aparência de legalidade, mas a tendência é que caminhe para formas cada vez mais escancaradas de violência
 
 
Luis Felipe Miguel, pelo Facebook
 
Assim como sofremos um golpe de novo tipo, estamos vivendo o início de uma ditadura de novo tipo. Não será o regime de um ditador pessoal, até porque nenhum dos possíveis candidatos ao posto tem força suficiente para alcançá-lo. Não será uma ditadura das forças armadas, ainda que sua participação na repressão tenda a crescer. Provavelmente, muitos dos rituais do Estado de direito e da democracia eleitoral serão mantidos, mas cada vez mais esvaziados de sentido.
 
A ditadura se expressa no alinhamento dos três poderes em torno de um projeto claro de retração de direitos individuais e sociais, a ser implantado sem que se busque sequer a anuência formal da maioria da população, por meio das eleições. Entre muitos outros sinais de que ela já começou, é possível citar:
 
– A decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no dia 22 de setembro, concedendo ao juiz Sérgio Moro poderes de exceção. Na prática, as garantias constitucionais ficam suspensas para qualquer um que seja alvo do juiz curitibano.
 
– A decisão do Supremo Tribunal Federal, do último dia 5 de outubro, de permitir o encarceramento de réus sem que os recursos tenham sido esgotados. Vendida como medida para impedir a impunidade dos poderosos, amplia o poder discricionário de um Judiciário que é notoriamente enviesado em suas decisões. Apenas como ilustração, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro afirmou em nota que mais de 40% de seus recursos ao STJ têm efeito positivo. É, portanto, um contingente muito expressivo de pessoas que começariam a cumprir penas depois consideradas injustas.
 
– Outra decisão do STF no mesmo dia permitindo que a polícia invada domicílios sem mandado judicial.
 
– O aumento generalizado da truculência policial, algo que vem desde o final do governo Dilma, estimulado pelo clima político de avanço da reação – e também pela legislação que o próprio governo Dilma aprovou.
 
– O rolo compressor das mudanças na lei e na Constituição, com o uso inaceitável do instrumento da medida provisória (como no caso do ensino médio) ou a ausência de qualquer debate, seja com a sociedade, seja dentro do próprio Congresso. A entrega do pré-sal e a PEC de estrangulamento do investimento público servem de exemplo: a “base governista” nem tentou fingir que não estava apenas cumprindo o ritual da aprovação parlamentar, sem qualquer engajamento em discussões com a oposição.
 
– O avanço da censura e a imposição da narrativa única pelos oligopólios da mídia empresarial, parceiros de primeira hora da ditadura em implantação. Isso se dá em várias frentes. Há o estrangulamento econômico dos meios de comunicação independentes. Há a intimidação das vozes críticas, da qual o exemplo maior são as inúmeras decisões judiciais que penalizam qualquer um que ouse falar sobre o ministro Gilmar Mendes. E há o cerceamento à liberdade de expressão nos espaços em que ela possa ocorrer, como faz o projeto Escola Sem Partido. A comissão especial criada para discuti-lo na Câmara dos Deputados é formada quase que exclusivamente por fundamentalistas cristãos e outros direitistas extremados. Uma ação no Supremo, contra a lei que foi aprovada em Alagoas, mas que barraria iniciativas similares no Brasil todo, está parada nas mãos do ministro Luís Roberto Barroso.
 
– A volta da tortura a prisioneiros, com motivação política. O encarceramento por tempo indefinido, com o objetivo expresso de “quebrar a resistência” de suspeitos (pois nem réus são) e levá-los à delação, tornou-se rotina no Brasil e é uma forma de abuso de poder, de constrangimento ilegal e, enfim, de tortura. (E antes de que alguém lembre que a tortura a presos comuns nunca se extinguiu no Brasil, cabe ponderar que a extensão da prática em nada melhora a situação dos presos comuns; ao contrário, pode piorá-la.)
 
– A volta da perseguição política, com inquéritos farsescos contra alvos selecionados, com o objetivo de apenas encontrar justificativas para punições definidas de antemão. O cerco a Lula é o exemplo mais claro.
 
– A criminalização do PT e da esquerda em geral, alimentada pelos meios de comunicação empresariais e pelos poderes de Estado, com destaque agora para a campanha do governo Temer sobre “tirar o Brasil do vermelho”. A agressividade crescente dos militantes da direita, produzida de forma deliberada, tenta emparedar as posições à esquerda, progressistas e democráticas, ao mesmo tempo em que a cassação de registros partidários torna-se uma possibilidade mais palpável.
 
O novo regime busca hoje manter ao máximo a aparência de legalidade, mas a tendência é que caminhe para formas cada vez mais escancaradas de violência. Há uma razão simples para isso. Seu projeto é a confluência de quatro eixos: (1) entrega do patrimônio nacional; (2) ampliação da taxa de exploração do trabalho; (3) retrocesso nos direitos de grupos subalternos, com a reafirmação das hierarquias tradicionais (penso nas mulheres, na população negra, em lésbicas, gays e travestis); e (4) permanência das práticas de corrupção e de saque do Estado em favor da elite política reinante. Os eixos revelam o espectro de interesses diversos que se reuniram para a deflagração do golpe.
 
Trata-se de um projeto extraordinariamente lesivo para a grande maioria do povo brasileiro. Graças à baixíssima educação política da maior parte da população e à campanha incessante da mídia, para muita gente a ficha não caiu. Mas os efeitos da redução dos salários, do aumento do desemprego, do subfinanciamento do Estado e do desmonte dos serviços públicos logo se farão sentir de forma plena. Para conter a inevitável reação popular, será necessária uma escalada repressiva e restrições cada vez maiores aos direitos.
 
Diante deste cenário, de uma luta desigual e prolongada, o campo democrático brasileiro parte atrasado e sem clareza. As eleições municipais funcionaram e ainda funcionam como uma bela armadilha para colocar as forças de esquerda, progressistas e democráticas brigando entre si, enquanto os novos donos do poder nadam de braçada. É triste perceber a falta de visão e de grandeza que faz com que lideranças e militantes do PT e do PSOL prefiram puxar o tapete uns dos outros em vez de unir forças contra o inimigo comum; é triste ver um candidato de esquerda anunciando que a campanha no segundo turno será “municipalizada” e não tocará em questões nacionais; é triste ver como a energia que devia ser canalizada para a construção da resistência é desperdiçada no conflito interno.
 
Há muito o que criticar na trajetória das organizações de esquerda e suas lideranças – sobretudo do PT, que foi o principal partido durante décadas e exerceu o poder. Que o PT errou, todos sabemos. Mas a discussão, necessária, sobre seus erros e seus limites não pode impedir a unidade de ação contra o golpe e sua agenda. A expressão “Frente Ampla” está na boca de todo mundo, mas para muitos ela parece designar “somente eu e meus amigos”. Não. É uma frente, isto é, reúne uma diversidade de grupos. E é ampla: nela devem estar aqueles com quem eu divirjo sobre muitas coisas, desde que possamos agir juntos em relação a algo que concordamos que, no momento, é o prioritário.
 
E o prioritário é restabelecer a vigência das regras democráticas e impedir o recuo social. Se as lideranças da esquerda brasileira não entendem isso, não entendem nada.
 
Redação

17 Comentários

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    1. 9) Aumento considerável

      9) Aumento considerável de grupos de extermínios liderados por filhotes do facínora Fleury .

      10) Instalação de tropas e equipamentos das forças armadas norte-americanas nos atuais quartéis e bases das milícias armadas do brazil .

      11) Construção de vários novas “centros de interrogatórios”, iguais a tenebrosa “Casa da Morte de Petrópolis” administrada pelos coronéis Paulo Malhães e Cyro Etchegoyen 

  1. Marx explica outra vez

    Em suma, o sexismo, o racismo e o ciclismo falharam como ideologias políticas.

    Eles não tocam na exploração do homem pelo homem. Ao contrário, os dividem.

    Não é o sexo, nem a cor, nem o veículo que nos separam.

    Hillary Clinton é a maior expressão do feminismo e Obama do racismo, todos senhores da guerra. O ciclismo ainda precisa pedalar muito.

    A luta de classes está mais viva do que nunca…

     

    O bom velhinho tinha razão. De volta à prancheta…

     

    1. Rapaz, em que planeta você

      Rapaz, em que planeta você vive?

      Hillary Clinton não é nem nunca foi feminista. Muito menos “maior expressão do feminismo”. Quanto a Obama ser racista, uma pergunta: você tem a mais remota ideia do que seja “racismo”?

      Ciclismo é simplesmente a prática de andar de bicicleta. Não é, nunca foi, nunca pretendeu ser uma ideologia política.

      Se você não puder falar sobre o mundo real com o mínimo de propriedade, por favor, não meta o velho Marx no meio. Ele já tem inimigos demais, não precisa de “amigos” falando asneiras em nome dele.

      Cada uma…

    2. Você precisa se atualizar

      Que visão mais atrasada…

      Em que as lutas contra qualquer forma de opressão e discriminação cotidiana prejudicam a luta de classes? Não há mais espaço para essa visão binária do mundo.

      Hillary Clinton maior expressão do feminismo? Me poupe.   Hillary por acaso é mulher, assim como o foi Margareth Thatcher. O feminismo é contra qualquer forma de imperialismo e opressão, portanto é sempre ligado ao campo progressista.

      Essas lutas não dividem a luta da classe trabalhadora – ao contrário, a enriquecem.

       

  2. Furando a bolha midiática

    O foco da Frente Ampla deve ser a democratização dos meios de comunicação, trazer o tema novamente a tona. Se não a visão única dos meios de comunicação que atingem as massas permitirá o apoio popular acrítico ao aprofundamento da ditadura em implantação.

  3. Um monstro chamado PSDB… partido, seita, mídia, blindagem

    Os blogs de esquerda tem que começar a alertar a população sobre a formação desse monstro gigantesco: o PSDB.

    Já li vários posts separados que mostram o crescimento do PSDB… eles hoje são o governo, a oposição, a imprensa, o juíz, o réu, o executor… estão em todas as pontas… o Brasil virou uma democracia 100% manipulada por esse grupo de poder.

    -Em São Paulo eles já tem metade das prefeituras… ainda tem a ausência completa de oposição contra a prefeitura de Dória e contra o governo Alckmin… e 2018 parece que será servido numa bandeja.

    -A parte amarga da agenda deles é colocada em prática pelo Governo Federal.

    -Eles tem a imprensa 100% favorável em todos os Estados. Rádios, TV, jornais e revistas completamente partidários… nunca foram criticados severamente por nenhum representante da mídia… esses que costumam dar chiliques diários.

    -Na internet os grupos de mídia também aparecem como cabos eleitorais da direita que eles representam. A propaganda eleitoral deles é contínua  durante 365 dias do ano.

    -O STF protegendo descaradamente os grandes caciques do partido… TODOS atolados até o pescoço em corrupção.

    -O Judiciário agindo para blindar o partido com juízes com ligação direta e indireta com o partido. NUNCA houve excesso contra nenhum Tucano na história do Brasil… domínio do Fato então passa longe.

    -A própria Polícia Federal teve delegados fazendo campanha para Aécio.

    -Relações com as igrejas pentescostais… com a maçonaria… o catolicismo conservador.

    -Eles tem o apoio da extrema direita bolsonarística… da esquerda moderada do PV…

    -Os novos “movimentos sociais” anti-corrupção apoiam e fazem parte do projeto de poder tucano.

    -Já se consideram praticamente eleitos em 2018 e já falam em tirar Temer antes do tempo… apesar dos principais nomes do partido estarem atolados em corrupção nao existe no horizonte nenhuma ameaça de qualquer punição mínima ou até mesmo constrangimento… simplesmente ignoram qualquer acusação e seguem dando entrevistas para os maiores veículos de imprensa.

    O PT era conhecido como “partido do Polvo” por muito menos… falavam que o PT estava grande demais… ameaçava a democracia… os que falavam hoje aplaudem o crescimento do PSDB em todos setores.

    1. Já havia chamado a atenção das ótimas análises do Rui.

      No meu blog já havia chamado a atenção das ótimas análises do Rui. Qualquer pessoa, mesmo não concordando com a linha programática do PCO, tem que dar o braço a torcer, pois a capacidade de análise do mesmo e de antecipação não encontra nada semelhante nas diversas agremiações de esquerda.

      Só não aconselho a fazer qualquer crítica sobre a forma da análise, que tem uma dinâmica muito fraca e apesar de consistente e boa torna-se cansativa.

      Acho que os militantes do PCO tem uma séria tendência ao culto da personalidade, pois acham que além de boa a análise a FORMA da mesma é perfeita. Falta o Rui mandar o pessoal fazer uma auto-crítica!

  4. Extremamente procedente este artigo.

    Quando se vê um elefante não se chama de um cavalo gorducho com grandes orelhas e uma tromba, temos que começar a mostrar a todos qual são os reis objetivos do GOLPE.

  5. Patologia pós-moderna

    Excelente análise, e sobretudo o puxão de orelha no Freixo e no PSOL, que não erra apenas em municipalizar a campanha no Rio, mas também por negar apoio ao PCdoB/PT em Aracaju. É o defeito do “localismo” (e de uma espécie de “ideologia underground”), que está aí se revelando como uma das mais nefastas”patologias” da esquerda que se deixa pautar por temas pós-modernos. Como o próprio texto de Miguel indica, esta esquerda certamente irá acordar depois que os rigores da ditadura se instalarem. Mas há que torcer para que os narcóticos que lhes foram oferecidos não tenham sido utilizados em doses muito exageradas.

  6. Isso é que dá não usar

    Isso é que dá não usar Loctite trava-rosca nos parafusos da cabeça. Eles vão todos caindo com o tempo.

    Sabe o que iria acontecer com o Brasil se continuasse o PT no poder?

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Descreveu a Venezuela bolivariana, não o Brasil.

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

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  7. Os golpistas conseguiram

    Os golpistas conseguiram dividir o povo em coxinhas e petralhas, tudo planejado, se quiserem acabar com essa aberração tem que deixar de lado os partidos, esquecer os ataques mútuos e criar uma união com um só objetivo, defender a democracia, os direitos do cidadão e a soberania da pátria, e isso só virá em um governo legítimo, vamos exigir e lutar pelo voto direto agora. O Brasil é dos brasileiros.

  8. O início

    Para uma nação democrática o maior indício da implantação de uma ditadura é a instabilidade política e  econômica, o desemprego, a carência de direitos sociais. E este processo começou em 2014 e pouca gente sabia.

  9. Bom raciocínio, pena que os

    Bom raciocínio, pena que os esquerdistas, em qualquer época e em qualquer parte do mundo, jamais estiverem unidos. E agora, pela circunstâncias do poder usado pelo PT, será ainda mais dificil. Oxalá eu esteja errado.

  10. Acompanhem as condenações nos

    Acompanhem as condenações nos Tribunais de Contas, para ver se o petismo não está sendo varrido a golpes de glosas e multas.

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