A coleção de Alípio Freire, por Walnice Nogueira Galvão

Na linha da resistência, tem cunho único no país a coleção que ele veio constituindo desde seus 5 anos no presídio Tiradentes. Os presos políticos ocupavam-se com atividades manuais: um desenhava, o outro recortava, ainda outro escrevia, mais um tecia, outro mais pintava.

Na linha da resistência, tem cunho  único no país a coleção que ele veio constituindo desde seus 5 anos no presídio Tiradentes. Os presos políticos ocupavam-se com atividades manuais: um desenhava, o outro recortava, ainda outro escrevia, mais um tecia, outro mais pintava.

A coleção de Alípio Freire

por Walnice Nogueira Galvão

A militância multiforme de Alípio Freire mostrou-se incansável.

Preso e torturado aos 23 anos, quando terminava sua formação em jornalismo pela Casper Libero, era membro da Ala Vermelha. Sua ideia peculiar de humor, bem conhecida dos amigos, determinou que viesse a ter como endereço eletrônico [email protected].  É o melhor que já tive o prazer de ver:incomparável na agudeza, “sem ideologia”, ou seja, dizendo ao que vinha logo nas preliminares. Alípio nunca o trocou. E persistiria até a morte em sua trajetória exemplar.

Na linha da resistência, tem cunho  único no país a coleção que ele veio constituindo desde seus 5 anos no presídio Tiradentes. Os presos políticos ocupavam-se com atividades manuais: um desenhava, o outro recortava, ainda outro escrevia, mais um tecia, outro mais pintava. Também poeta e desenhista, Alípio Freire apegou-se aos desenhos, recortes, versos, pinturas canhestras, frases inscritas, modelagens, esculturas, tecidos entrançados, objets trouvés … E percebeu o alcance do que tinha nas mãos.

Ao deixar a prisão, empenhou-se em  seguir os rastros dos artefatos dispersos. E assim, agora numa empreitada maior, passou a colecioná-los sistematicamente, produzindo fichas que historiavam cada peça.

Um passo avante, e começaria a realizar, já transformado em curador consciente, várias exposições itinerantes pelo território brasileiro, como contribuição às “memórias do cárcere”. A última delas foi há pouco, no Memorial da Resistência, que fica no prédio da Estação Pinacoteca.

Entabularia  tratativas para doar seu acervo a uma instituição universitária capaz de aquilatar seu valor e garantir tratamento adequado, pois a preservação de materiais como esses é custosa, constante e demorada. Contatou o Instituto Edgar Leuenroth da Unicamp e o Instituto de Estudos Brasileiros da USP, mas a certa altura foi desistindo. As negociações não foram avante e ele hesitava entre o apego que tinha a seus tesouros e o desejo de garantir-lhes sobrevivência.  Zombava de si mesmo, em movimento que os amigos logo reconheciam, dizendo que sentia afinidades com a Sinhá Vitória de Vidas Secas. Cismada com a cama de Seu Tomás da Bolandeira, o móvel simbolizava para ela um status elevado, enquanto para Alípio correspondia à enorme mapoteca que comprou para acomodar os pertences da coleção: segundo ele, era sua sina equilibrá-la no cocoruto para sempre.

Ao sair da prisão, Alípio passou a participar do PT e do MST. Fez filmes de curta metragem sobre vários aspectos da luta, colaborou na redação de panfletos, de jornais e revistas. Pertencia ao comitê de redação da revista Teoria e Debate, da Fundação Perseu Abramo. No MST, onde foi membro ativo da editora Expressão Popular, seria também um dos criadores do jornal Brasil De Fato e da revista Sem Terra.

Mas seu ativismo não parava aí. Juntamente com os companheiros Izaías Almada e J. A. Granville Ponce,  organizou o volume Tiradentes, um presídio da ditadura (1997), com 35 depoimentos de ex-presos políticos da negregada instituição, aonde iam parar depois do tirocínio nos infernos da OBAN (futuramente DOI-CODI). O sinistro senso de humor da ditadura esmerava-se em enfatizar  a função desse órgão, que era infligir dor.

Ali se forjaram amizades para o resto da vida. Quem fez o prefácio foi Antonio Candido, que lhe conferiu um título bem adequado: “O Purgatório”. O livro constituiu uma contribuição magistral, de quem enxergava longe, para manter acesa a chama da resistência à tirania. São vívidas as lembranças dos 35 calejados batalhadores.

Viriam ainda os livros de poesia, Estação Paraíso  e Nas brumas de Alcácer-Quibir, que permanece inédito (veja notícia em Teoria e Debate, maio/ 2021).

Nessa militância sem descanso, ainda faltava um belo filme de longa metragem, o documentário 1964: um golpe contra o Brasil. Jorrando luz sobre o que veio antes, esmiúça com  pertinácia a vasta conspiração entre industriais, latifundiários e os Estados Unidos, que culminaria no golpe militar.

E isto é apenas uma rápida síntese, que se desculpa pela falta de fôlego para contemplar todas as facetas de uma vida extraordinária.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Walnice Nogueira Galvão

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador