A tornozeleira eletrônica e as galés, por João Marcos Buch

As evidências e a ciência não devem disputar espaço com realidades baseadas em opinião ou convicção, baseadas em crendices. Não podemos aceitar que o país se torne uma caricatura regida por uma ópera bufa.

A tornozeleira eletrônica e as galés

por João Marcos Buch

Naquele sábado, aproveitando que o calor intenso que castigara a cidade durante a semana tinha se afastado, saí a pé para algumas atividades essenciais. Na região central, sentei em um banco da calçada, à sombra de uma grande árvore, para ver mensagens prosaicas de WhatsApp. Pouco depois, uma pessoa se sentou ao meu lado. Era um rapaz, cabelo aparado, usando máscara, com camiseta de uma loja multimarcas das imediações, calça comprida e tênis. Tinha em mãos um sanduíche embrulhado, logo desembrulhado. O jovem tirou a máscara e, entre uma mordida e outra no lanche, fazia menção de me dizer algo, mas desistia. Decidi quebrar o silêncio.

– Bom dia!

– Bom dia — respondeu ele — o senhor é o doutor João Marcos Buch, o juiz, não é?

– Eu mesmo.

– Que sorte a minha. Eu preciso muito falar com o senhor.

– Pois fale, então. Você cumpre pena?

– Sim.

– E o que deseja saber?

– Sabe o que é, eu comecei um novo trabalho e tem essa tornozeleira… — levantou a barra da calça da perna esquerda e mostrou o equipamento.

– Sei. Você está no regime semiaberto e saiu com o monitoramento eletrônico.

– Isso mesmo, o senhor me soltou.

– Faz quanto tempo?

– Seis meses.

– E o que você precisa?

– Eu preciso tirar isso.

– Imagino o motivo, mas me conte.

– No meu último emprego, quando o patrão viu essa tornozeleira, fui demitido. Agora consegui este emprego — com a mão puxou o emblema bordado na camiseta. — É aquela loja lá — apontou para o estabelecimento. — Meu novo patrão é legal e até disse que nesse calorão eu podia trabalhar de bermuda, mas eu falei preferir calças. Tenho medo que quando descobrirem que sou ex-presidiário me demitam de novo e eu não posso perder mais um emprego, preciso ajudar lá em casa.

– Entendi, já vi acontecer antes, tudo muito difícil, não é?

– Pois é, doutor João Marcos Buch — ainda não descobri porque apenados que me encontram na rua me chamam pelo nome completo — o senhor não tem como ver isso para mim?

– Tenho, passe-me seu nome.

Ele passou.

– E seu telefone de contato está no processo?

– Sim.

– Certo.

– O senhor vai ver isso para mim?

– Vou estudar o processo, mas já lhe adianto que a maneira de tirar a tornozeleira é pela progressão ao regime aberto — havia a possibilidade de livramento condicional ou outras hipóteses legais, mas eram menos prováveis e resolvi não adentrar nelas.

– E quando será?

– Eu tenho que ver seu processo. Qual foi a condenação?

– 9 anos.

– Pelo quê?

– 157.

– Roubo… bem, eu terei que ver o processo. Farei isso já na segunda-feira e pedirei que lhe avisem.

– Puxa, obrigado!

– Mas como lhe disse, é provável que somente quando der tempo para o aberto, o que pode demorar dias, semanas, meses e até anos, depende do caso.

– É, obrigado mesmo assim.

– Agora vou — levantei.

– Bom final de semana, doutor João Marcos Buch.

– Para você também. Cuide-se, faça o que a justiça mandar, tudo dará certo.

– Farei sim.

Depois das tarefas da rua, retornei para casa e o processo do rapaz retornou com meus botões.

No Código Criminal do Império, de 1830, além da pena de morte, existia a pena das galés. Ambas eram destinadas prioritariamente aos negros. No caso das galés, a pena consistia em trabalhos forçados expostos, em que os condenados andavam com uma calceta (argola de ferro) no tornozelo. Ao que consta, no momento da elaboração do Código, os parlamentares que eram a favor dessas crueldades, e que formavam a maioria, justificaram sua posição, dizendo que os negros,  escravos, tinham que ter medo da pena, não podendo ela ser um prêmio.

As galés e a pena de morte foram abolidas pelo Código Penal de 1890 e o Código de 1940, desde então em vigor no país, seguiu essa linha. Além disso, a Constituição de 1988 proibiu penas cruéis, nelas certamente estando enquadradas as galés.

Receio, entretanto, que a coisa não seja tão boa assim e que esse tipo de pena ainda exista, sob novo formato.

As normas de hoje permitem que uma pessoa que cumpre pena de reclusão no regime semiaberto — são três regimes que a lei prevê: o fechado, o semiaberto e o aberto — em não havendo vaga no sistema para tanto, pode antecipar sua saída com o monitoramento eletrônico. Há situações para as quais essa possibilidade é mais restrita, ou não recomendável, como, por exemplo, quando a pena que se cumpre é por violência intrafamiliar. Fora desses casos, no regime harmonizado o apenado coloca uma tornozeleira e, monitorado 24h por dia, fica autorizado a cumprir a pena em seu domicílio, podendo, conforme as peculiaridades do processo, sair para o trabalho, estudo, ir ao supermercado, farmácia, culto etc, tudo previamente ajustado pela Justiça.

São milhares de apenados no país que estão nessa condição.

É claro que, conhecendo a prisão como eu conheço, tenho certeza que, se eu fosse um condenado, sonharia com o dia da saída com tornozeleira. Aliás, os detentos, quando me veem no cárcere, com frequência a pedem. Eu sempre lhes explico as condições da lei e digo que tudo será no seu tempo. Imagino que, no dia em que recebem a notícia de que autorizei a saída antecipada monitorada, exultam de alegria.

Alegria que dura pouco.

Ainda que a economia que o estado faça com o regime harmonizado seja extraordinária, levando-se em conta o custo de manutenção de uma pessoa presa, que em média é dez vezes maior que o de uma em domiciliar com a tornozeleira, não há política de reintegração efetiva do egresso à liberdade, estando ou não monitorado.

A tornozeleira, que num primeiro momento é comemorada, pois significa retorno para casa, logo se torna um empecilho, um estigma, um obstáculo quase intransponível. A justiça manda que o apenado arranje um emprego e o estado e a sociedade o impedem que o faça. O indivíduo fica no meio de um redemoinho, por entre dedos acusadores e olhares preconceituosos e frios. O recomeço se torna muito mais duro que o previsto.

Portanto, a história daquele rapaz não era nova, nem excepcional ou episódica. Num país que pouco faz pela educação e distribuição de renda e que nem sequer superou o histórico racismo, ela infelizmente era a regra.

O ideal seria a sociedade se esclarecer e se despir de preconceitos, discutindo honestamente ideias humanistas que envolvem o sistema carcerário e a superação da violência, sem recorrer a ódios e perversidades, entendendo que quem esteve preso precisa de oportunidades para um recomeço. Entretanto, o debate público sobre fatos que interferem nas nossas vidas como as prisões, tem sido pautado e centrado em teratológicos temas, em coisas que o iluminismo já defenestrou há séculos. Tristemente, retornou-se com maior destaque à cantilena do “bandido bom é bandido morto”, do “tá com pena, leva pra casa” e do “é só não matar e não estuprar que não vai preso”.

A racionalidade e os valores fundantes da civilidade pedem socorro. Precisamos reunir forças e desconstruir novamente o discurso obscurantista. As evidências e a ciência não devem disputar espaço com realidades baseadas em opinião ou convicção, baseadas em crendices. Não podemos aceitar que o país se torne uma caricatura regida por uma ópera bufa.

Especificamente no caso dos egressos em regime semiaberto, indo mais além, o melhor seria que a prisão domiciliar fosse independente do apetrecho eletrônico. Como alternativa, o estado poderia destacar um agente, oficial probatório, algo que já existe em outros países, que fiscalizaria determinado número de apenados em prisão domiciliar, esclarecendo condutas, apontando caminhos, dizendo o que pode e o que não pode ser feito, de tudo reportando periodicamente ao juiz. Isso traria o imprescindível caráter humano à reintegração social.

Mas até lá, o mínimo que devemos e podemos fazer é criar coragem e olhar nos olhos das pessoas condenadas, não nos seus tornozelos, reconhecendo sua humanidade e estendendo a mão para um recomeço.

Se evoluirmos como cidadãos, daqui a 100 anos as tornozeleiras eletrônicas serão vistas como elas realmente são, as galés do século 21.

Quanto ao rapaz que se sentou ao meu lado no banco da calçada para lanchar, a calceta tecnológica nele teria que permanecer por mais tempo.

Redação

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