Conversas com minha mãe – Gengibirra, por Daniel Gorte-Dalmoro

Eu conhecia da minha infância essa história das garrafas explodindo, mas tinha dificuldade para imaginar elas em outro lugar que não na despensa recente da casa dos meus avós

Conversas com minha mãe – Gengibirra

por Daniel Gorte-Dalmoro

Findo o almoço – arroz, feijão e couve com ovo – Phah traz uma garrafa com chá de gengibre feito há pouco, ainda morno. O gosto me remete ao refrigerante Cini Gengibirra, que marcou não minha infância – o refri da minha infância foi o Cini Framboesa -, mas da minha idade adulta, mesmo: era o refrigerante que pai bebia sempre, além de água tônica – água normal, que é bom, ele evitava ao máximo. Minha mãe acha que lembra, mas de leve:

“Cini praticamente não tem gosto de gengibre!”

Fabrício concorda que o sabor no Cini é muito de leve, e acrescenta que seu chá, sim, tem gosto de gengibre.

Tânia recorda da gengibirra feita pela nossa avó – a quem ela chama de mãe muitas vezes. Minha mãe corrige:

“Você está confundindo! Quem fazia gengibirra era a avó Ana, a mãe fazia cerveja”.

A cerveja preparada por minha avó, posta em garrafas de vidro, tampadas com uma rolha e amarradas por meu avô. Ficavam, então, guardadas no paiol, por ser mais fresco, e também porque muitas vezes uma garrafa não aguentava a pressão e acabava estourando. Diante dessa eventualidade, no paiol eram menos coisas para se limpar: além das cervejas, ele protegia o poço de água – 20 metros de profundidade trazidos por balde a manivela -, o tanque de lavar roupa e um forno a lenha – o mais difícil para limpar talvez fosse o chão de tijolo.

Eu conhecia da minha infância essa história das garrafas explodindo, mas tinha dificuldade para imaginar elas em outro lugar que não na despensa recente da casa dos meus avós – até porque o poço, desativado, tinha uma cobertura simples e baixa, impossível de abrigar tudo o que minha mãe descrevia -, e imaginava que, por conta da rolha aguentar tamanha pressão, eram amarradas com arame. Pergunto como o vô fazia, se era com alicate:

“Era barbante, mesmo; seu avô sabia dar um nó bem forte”.

Apesar de ser criança, minha mãe também bebia cerveja. A explicação é simples e suficiente: por ser caseira, não possuía álcool – “tanto que até o pai tomava”, justifica ela, visto que meu avô não ingeria álcool (conta minha mãe, desde que tomara um porre, ainda jovem).

Pergunto se a cerveja e a gengibirra eram só para situações especiais.

“Pior que eram”.

“Com que frequência?”

“Natal”.

“E quando mais?”

Só falta minha mãe perguntar “como assim, quando mais?”. Vez ou outra havia uma remessa das bebidas fora do Natal, ela conta, mas era raro; afinal, para prepará-las era preciso açúcar, e para o açúcar, dinheiro. Sobrava, então, o Natal como momento especial.

“Até para não perder a graça, porque se fosse sempre não teria o mesmo encanto”. Sei como é isso: lembro da minha infância, sucrilhos era só uma vez por mês, no sábado em que se “fazia o rancho”, conhecido também como primeiro fim de semana depois de receber o salário; quando começou a ter na mesa sempre que tínhamos vontade (pós oba-oba da classe média com o Plano Real), nunca mais esses alimentos-porcaria foram gostosos como antigamente: a raridade também dá outro tempero aos alimentos.

Daniel Gorte-Dalmoro é escritor e funcionário público. Filósofo e Sociólogo formado pela Unicamp, Mestre em Filosofia pela PUC-SP (se debruçou sobre A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord), Psicanalista em formação. Autor, dentre outros, de Trezenhum. Humor sem graça. (Ibiporã 1011) e Linha de Produção/Linha de Descartes (Editora Urutau).

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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