Elogio da preguiça, por Homero Fonseca

Faz parte da natureza humana poupar e armazenar energia. O resto é doutrinação.

Elogio da preguiça, por Homero Fonseca

Trabalho vem do latim tripalium, instrumento de tortura. Todo o esplendor da antiga civilização grega se deve ao fato de o trabalho ser relegado unicamente aos escravos, cabendo aos cidadãos o ócio criativo que adubou o terreno para o desenvolvimento da filosofia, da oratória, do teatro, dos desportos, da arquitetura e disso que chamam democracia.

Sob as monarquias, a “carteira de identidade” da aristocracia eram as mãos finas — calos eram para os servos. E as castas superiores indianas somente puderam se dedicar com tanto afinco às práticas sexuais variadas — a ponto de produzirem o manual Kama Sutra — porque não sabiam o que era trabalhar.

Faz parte da natureza humana poupar e armazenar energia. O resto é doutrinação.

Foi com o desenvolvimento do capitalismo e a ascensão da burguesia que o trabalho passou a ser algo dignificante. O burguês precisava trabalhar para fazer dinheiro, ao contrário da aristocracia. A ideologia do trabalho como algo louvável e fundamental foi imposta, via religião, às classes trabalhadoras — com a diferença que elas, como não eram proprietárias de capital, deviam se esfalfar trabalhando até 16/20 horas por dia para conseguir alimentar a família. Não fossem as lutas trabalhistas e essa jornada ainda estaria em vigor. Seu retorno é o sonho dos neoliberais.

Paul Lafargue, jornalista e genro de Karl Marx, e o filósofo britânico Bertrand Russel defenderam expressamente o direito ao ócio, demonstrando como a redução da jornada diminui a taxa de desemprego e aumenta o nível de felicidade das classes trabalhadoras, ou seja, da maioria da humanidade. Seus textos são conhecidos e neste curto espaço não dá para esmiuçá-los. Procurem lê-los.

É a gana de explorar os pobres que gerou a intensa propaganda contra o far niente. Daí o opróbio contido nas palavras “vagabundo” e “vadio” (e as leis contra a vadiagem), vomitadas a toda hora contra os pobres pelos que se beneficiam do trabalho alheio e pagam o mínimo possível por ele.

A preguiça, camaradas, é a mãe da tecnologia e, por extensão, de aspectos fundamentais da civilização como a conhecemos hoje. Não fosse a lei do menor esforço e o bicho humano não teria inventado a alavanca (e daí o guindaste), nem a roda (e daí o carro). Nem o telegrama e o telefone (tudo pra não precisar andar com os próprios pés ou se locomover para falar com o outro). Não existiria o computador (para fazer as contas). Nem a internet (e as redes sociais) para ninguém precisar suar nas ruas.

Homero Fonseca é pernambucano, escritor e jornalista, formado pela Universidade Católica de Pernambuco. Foi editor da revista Continente Multicultural, diretor de redação da Folha de Pernambuco, editor chefe do Diario de Pernambuco e repórter do Jornal do Commercio. Foi também professor de Teoria da Comunicação e recebeu menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Atualmente, dedica-se à literatura e mantém um blog em que aborda assuntos culturais.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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  1. Excerto do verbete “Democracia”, do Dicionário Risosófico” do filósofo greco-baiano Platinho, ainda em preparação:

    ”…Democracia é uma história da carochinha de origem franco-americana, cujo desenvolvimento teve início no final do século XVIII, quando, em França, uma determinada camada social ascendente descobriu que a desgraça humana não era a coisa do mundo mais bem distribuída, e que nem os mais fáceis (e muito menos os mais difíceis) de contentar nas outras coisas todas da vida, não costumavam desejar mais desgraças do que já tinham jogadas sobre si. À medida que ascendiam naquilo que viria a ser chamado de Quadro Social (por outros referido como “belo quadro social”), esses engenhosos espécimes descobriam maneiras de se livrar de uma das desgraças por eles identificadas como o Trabalho (absolutamente necessário para sobreviver, em primeiro lugar, mas que podia – eureka! – servir para prosperar e emular o estilo de vida de uma outra camada social, diminuta em número e opulentíssima em numerário, e que parecia ter, sobre si – ao menos, vista de longe – quase nenhuma desgraça a si infligida, que não as de sua própria criação e extração).”

    E este, do verbete “Trabalho”:

    ”…e o Trabalho, conforme somos ensinados desde a mais tenra idade, dignifica o homem. ‘Ó quão desgraçados são aqueles que não trabalham!’ E aqui temos uma neurose, ou o protótipo de uma neurose, que escapou completamente aos nobres e dedicados precursores dessa não menos nobre cartografia, a cartografia da alma humana – os pares de Charcot, de Freud! Porque, se a neurose se caracteriza, dentre outras coisas, pelo choque entre o inaugural Princípio do Prazer, e o adventício Princípio da Realidade, e os consequentes sinais de afastamento ou estranhamento da realidade, eis aí um campo que oferecia inumeráveis caminhos para o diligente estudo da mente humana: os ricos e nobres, que não trabalhavam, seguiam cada vez mais ricos e nobres, e, principalmente, dignos, apesar da evidente aversão ao Trabalho, das mãos suaves e limpas; e os pobres, com suas mãos calosas e sujas, aspecto pouco higiênico (quando não repugnante), uma vez esgotados e chupados até o bagaço, é que sucumbiam ao pecado mortal da preguiça, arrastando-se pela rua como mendigos, vadios! Algum dentre estes, futuro neurótico, mas ainda dotado de uma fugaz e moribunda capacidade de raciocínio crítico, poderia, tal e qual no perigoso e sangrento confronto dos Princípios, julgar que os ricos, desgraçados por não terem trabalho, não seriam dignos, nem das benesses terrestres, nem das graças de Deus; e que os preguiçosos (na verdade, extenuados e astênicos), é que possuíam em si, não apenas toda a dignidade dos que trabalham (e morrem, em virtude disso), como também o direito aos prazeres celestiais. Se tivessem se ocupado destes homens – os trabalhadores – quanta ilusão e perversidade teriam sido evitadas: as greves, as revoluções, o bolchevismo! Eram todos neuróticos, pura e simplesmente, tomando uma coisa pela outra.”

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