Armando Coelho Neto
Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.
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Geraldo Vandré, 87 anos, um homem em preto e branco…, por Armando Coelho Neto

Não quero aqui ferir suscetibilidades com suposições, impressões, leituras diversas do que para ele possam ser caras.

Geraldo Vandré, 87 anos, um homem em preto e branco…

por Armando Coelho Neto

Não sei a quantas andam a cabeça de meu ex-vizinho Geraldo Vandré, depois das mil e tantas voltas da terra – que em breve voltará a ser redonda. Sei apenas, que na volta de hoje, o meu querido poeta (como gosto de tratá-lo) está completando 87 anos. O mundo girou nas patas de nossos cavalos. E, alguns desses muitos anos tive momentos mágicos solitários, pois ele é ele e eu sou apenas eu – um fã.

Depois da prostituição da palavra “mito”, tornou-se incômodo chamar de mito os verdadeiros mitos, sobretudo os que entraram de forma mágica em nossas vidas, como Geraldo, naquele junho frio e bolorento, quando fui à casa dele, no centro de São Paulo. Lá, sequer precisamos falar de flores ou das “das dores e tristezas que bem sei, um dia ainda vão findar”. Como numa “canção de um breve amor”.

Numa tarde fria, minha falecida esposa, eufórica, mal esperou eu chegar em casa à noitinha. “Venha para casa agora que tenho uma novidade”. Mais tarde contou que havia conhecido o grande poeta e que ele havia nos convidado para ir a casa dele. Incrédulo, fui, e lá estava Vandré em preto e branco, literalmente – na roupa, nas coisas que exibiu, nos mistérios. Gosta, gostava de ser reticente, intrigante…

A montanha de livros nas estantes e sobre a mesa acabava por dar um tom sépia ao ambiente pouco iluminado, para o qual a luz amarelada mais as paredes empalecidas davam uma forcinha. Havia cheques amarelados de famosos que se recusava descontar. Mas Geraldo estava trajando preto e branco, mais preto do que branco, e suas conversas no passado acentuavam ainda mais essa impressão.

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Sim, Geraldo falou de Theo Barros seu parceiro em Disparada, e até brincou com um trecho da canção “Na boiada já fui boi”, que lembraria um acorde de uma conhecida e clássica sinfonia. Por instantes, lembrei da brincadeira de “Com que roupa” de Noel Rosa, que parecia o Hino Nacional, se não fossem trocadas algumas notas musicais. A carcaça de arcada dentária de boi utilizada na canção Disparada também mereceu referências hilárias. Foi como se estivesse mais para Disparada do que para “Canção da despedida”, que fala do rei mal coroado (1968).

Por instantes tentamos falar de política, de fome (estávamos com fome). Mas, ele preferiu falar de fome ao seu modo. Como morava próximo a uma padaria, disse que seu “maior desejo era comer o conjunto do cheiro”. Entro na padaria de manhã, há cheiro de café, pão, bolo, doces, mas eu fico como um cão buscando o conjunto do cheiro. Meu sonho é comer esse cheiro, disse brincando e mudou de assunto.

Foram conversas a seco. Geraldo gostava, talvez goste ainda de cerveja sem gelo, mas nem isso rolou, o alimento da noite para nós foi mesmo o encantamento, e minha esposa tietando, querendo especular sobre um assunto que até hoje o poeta não gosta muito de falar. “Pra não dizer que não falei das flores”, tratada então por ele como “Uma certa canção popular”. Aliás, roubei esse título para uma crônica.

Percebi mais interesse dele em falar de “Nego”, palavra escrita na bandeira do estado da Paraíba, onde nasceu, a qual servia, serviria ou servirá de título para um livro de sua autoria. O teor principal é, seria ou será um processo no qual recusa a anistia recebida. Afinal, Geraldo é um enigma poético. Ele queria discutir em preto e branco a República dos Estados Unidos do Brasil (nome antigo do nosso país).

Não quero aqui ferir suscetibilidades com suposições, impressões, leituras diversas do que para ele possam ser caras. Eu mais ouvia que falava, e nem sempre entendia coisas como “Fabiana”, a canção que fez para a Força Aérea Brasileira. “Vive em tuas asas, todo o meu viver. Meu sonhar marinho, todo amanhecer… Como a flor do melhor entendimento. A certeza que nunca me faltou…”

Sempre guardou, talvez guarde, certo respeito pela minha profissão. Um dia, quis ver a reação dele na Polícia Federal, ao encontrar Solange Teixeira Hernandes, a famosa Dama da Tesoura dos tempos da ditadura. Paguei, sim, internamente, a censura pela ousadia e pelo frenezi causados. Mas curti ver ambos conversar um pouco com serenidade, como se uma onda de perdão estivesse no ar. Foi lindo!

Não há nada que se possa dizer sem lembrar o passado, sobre a forma como Vandré tornou-se eterno para o Brasil. “Cipó de Aroeira”, “De como o homem perdeu seu cavalo e continuou andando”, “Canção Nordestina”, “Fica mal com Deus”, “Desacordonando” (1969, gravado no Chile de Allende). Mas talvez, sua dor maior se expresse em “Pequeno Conserto que virou canção” e “Das Terras de Benvirá”.

Corta!

Certa madrugada, estava com amigos em casa a cantarolar canções do Vandré. De repente, a campainha toca, eu jurando que era o síndico trazendo reclamações de vizinhos. Não. Era o poeta ao vivo e em cores, não mais em preto e branco. Instaurou o silêncio e a perplexidade. Foi mágico, intenso, profundo, inesquecível como uma alucinógena orgia intelectual, sentimental, sei lá! Tem como expressar isso?

Se eu pudesse presentear Vandré, devolveria para ele a energia que ele provocou nos corações humanistas, sobretudo dos que não lhe cobram explicações, porque a história se reescreve e se revitaliza com exemplos que nos dignificam como os seus. Sim! Zé Ramalho disse em canção, “que nas torturas toda carne se trai”. Mas não quero entrar nesse disse-me-disse por que hoje é festa. Parabéns!

No frevo “Joao e Maria”, o povo alucinado, que andava atrás de qualquer alegria, tomou para si uma canção que era só de João pra Maria. E, de repente a cantiga de Joao, que era só ilusão, virou a esperança que havia. Mais que nunca, meu poeta, a gente precisa de um frevo de João pra Maria! Assim mesmo: preto no branco!

UM AVISO: Poeta. A corda do violão que você quebrou nunca mais foi trocada e nunca mais ninguém tocou no violão. Só você poderá trocar. 

Armando Coelho Neto – Delegado Federal (aposentado), ex-chefe da Interpol em São Paulo e da Delegacia de Segurança Privada

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Armando Coelho Neto

Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.

5 Comentários

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  1. Existe uma história que após o AI 5 Vandre foi preso e espancado por militares. Eu lembro de ter lido que Adelaide Carraro, escritora de livros considerados eróticos, na época, disse ter visto ele no quartel onde ficou presa.
    Com a abertura, em 1979, muitas pessoas passaram a dizer que vivia entre os bairros da Consolação e a Bela Vista, e apresentava sinais de algum tipo de transtorno psicológico devido aos espancamentos. Trabalhava como advogado. Pelo menos, para mim, essa é a versão que conheço

  2. Bom poder ler de novo os seus posts . Inspirado e inspirador, comemora a existência de uma pessoa ímpar,tão rara como são as pessoas radar, aquelas que percebem a vida com todos os sentidos, captando ares e lugares, vendo o que ninguém vê. Vandre não tem mais tempo, já é histórico. Sua materialidade é quase inacreditável, e de tal modo , que também faz histórico quem experimentou de sua convivência.

  3. Armando esse texto está bem coerente com o seu ESTADO DE ESPIRITO ATUAL: parace- me nostálgico , saudoso de tudo e de todos que nunca quis esquecer…
    Ah Tânia porque fostes embora…
    Obrigada ARMANDO por nos presentear com esse texto..

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