Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Dominó de Botequim: antes de ouvir o texto de Virgínia e Nonato João, por Rui Daher

Quando na despedida Netinho disse “desculpa qualquer coisa aí”, o Osório explodiu.

– Desculpa o quê? Não percebi nada. Você peidou? Fez xixi na tábua da privada? Aquela porra de café saiu muito fraco? Que merda de mania que vocês, se achando humildes, têm de antes de sair dos lugares para onde são convidados pedirem desculpas?

Intervenho:

– Calma Osorinho, é força de expressão, hábito de linguagem, etiqueta, parece educado.

– Porra nenhuma! Nós é que deveríamos pedir desculpas a eles, nós que vivemos bem. Veja aquele milico de merda. Não deu certeza de vir. O que fez ou faz na vida? Depois da musculação e da sauna, contou que passa as tardes na piscina do Clube Militar. Lutou alguma vez? Defendeu fronteiras? Encarou algum general e disse não quando o mandaram torturar um moleque idealista durante a ditadura? Se foi para o Araguaia, aposto que a maior valentia foi espancar um índio e comer a irmã adolescente.

– Mas, seu Osório, foi meu pai quem ensinou a sempre me despedir assim. A gente nunca sabe se fez alguma coisa de que o dono da casa não gostou.

– É isso, Osorinho. Jeito dele.

– Pois então vai esquecendo o que o pai ensinou. Os tempos de casa grande e senzala já se foram.

– Foram, Osório? pergunto disfarçando o riso.

No “Rei” da Waldemar Ferreira, discutindo os perrengues do Serafa e empolgado com as “boazinhas”, cachaça e Virgínia, propus uma “Assembleia dos Amigos do Dominó de Botequim”.

Liguei para o Osorinho, pedindo que cedesse a edícula de sua casa. Meu frequente companheiro na mesinha do boteco, onde dispúnhamos as preciosas pedras, está bem de vida. Tem uma revenda de carros usados na Barão de Limeira.

– Te respondo amanhã.

Logo entendi. Antes iria se certificar que seu odiento cunhado não estaria por lá. Irmão de sua mulher, mora em Tatuí, e vez ou outra vem passar um tempo na casa do Osório. Passa os dias em frente à TV, bebendo cervejas, com um enorme short do Palmeiras e uma camisa do Vasco. Osório, são-paulino roxo, achava tudo uma infâmia.

Confirmamos o sábado. Todos convidados, nem todos apareceram. Mas a chamada “diretoria” estava lá.

Osório, eu, Netinho ajudante, o professor Filgueiras, Virgínia, Nonato João, Buqué e, dio mio (!), Dona Zilá com umas focaccias que havia preparado especialmente para a ocasião. Trouxe junto Benedito, o velho cão negro, que imaginávamos finado.

Depois que o boteco fechou, Zilá o adotara. Companheiro de viuvez.

Pergunto:

– Zilá, o Benê ainda dá aquelas escapadelas atrás de cios espetaculares?

– Pois é, meu caro. Às vezes some por mais de dez dias. Me deixa louca. Só que agora já sei onde resgatá-lo.

– Como assim?

Bello, não tem passeador de cachorro, hotel, salão de beleza, cemitérios, restaurantes, delivery de comida caseira, perfumes, brinquedos, por que não um puteiro para eles se divertirem?

Brinco:

– Mas Zilá, eles têm que pagar alguma coisa pelo programa?

– A maioria sim, o Benê, ao contrário, recebe. Arrumou uma beagle maluquinha que sempre o presenteia com um saquinho de Whiskas.

– Comida de gato?!

– Fazer o quê? Ela insiste que o “gato dela chegou”.

Fora as focaccias, o Osório providenciou o chope, levei quatro garrafas de Salinas e cinco quilos de amendoim torrado. Nonato e Virgínia escreveram um texto explicativo, e Buqué, que não me pareceu bem da cachola, chegou com uma bandeira de Portugal. Netinho ficou com o café e o serviço, pelos quais pediu desculpas. O professor Filgueiras trouxe pacotes de sequilhos, feitos por sua esposa para ajudar nas despesas da casa.

Quando nos preparávamos para ouvir o texto de Virgínia e Nonato João, já um tanto altos, o militar da reserva, Prudêncio, apareceu. Sem dúvida, movido por Virgínia e não por solidariedade a Serafim.

Temi recepção agressiva do cordelista. Pegou leve:

– Você por aqui? Pensei que estava no Paraná, pondo os professores no lugar que merecem, a cadeia.

O militar engoliu seco. O texto começaria a ser lido por Virgínia com o apoio luxuoso do cordel de Nonato.

Será bonito o próximo capítulo.

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

5 Comentários

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  1. Prosa boa, é pouco !

    Rui, alguem falou que a sua prosa é boa.

    Eu diria que ela salva um domingo, em que este humilde escriba, admirador de coisas típicas paulistanas, como um bom jôgo de dominó na praça, com os amigos aposentados, ou uma reunião de uma Associação, como esta que você criou e que tem tantas caras paulistanas, resolveu “curtir”,  inovando demais.

    Conto em detalhes: Estimulado pelo SPTV desta semana, resolví sair do bom e velho Tatuapé, e ir conhecer alguns dos butecos que a Globo recomenda, no tal de “Comida de Buteco” aonde teria os melhores petiscos e comidinhas de Sampa, e as bebidas mais exóticas da cidade.

    Prá quem acabou de chegar de uma guerra, pode ser um bom programa, porém para quem já havia se empanturrado de pizzas, neste sábado à noite( não há quem convença a “dona da pensão” a fazer um jantar trivial, nos sábados) é programa de índio.

    Saí, e comecei pelo bairro do Canindé, passei por uns barzinhos da Bela Vista, tão pequenos(embora aconchegantes) que muitos dos frequentadores, chamavam-o ao chegar aos gritos, de Pé prá Fora, e de aspéctos meio que sinistros, que lembrei-me dos antigos “Jesus me Chama” dos meus tempos de estudante da PUC, e de quando trabalhava no Mappin, do Bexiga, estiquei até a Vila Madalena, que infelismente depois da Copa, virou lugar de gringos ricos, tanto que os petiscos e as bebidas mais conhecidas, têm novos nomes, todos americanizados, é claro. Ainda bem, que aceitaram os meus pobres Reais, e não exigiram Dólares.

    Depois de “beliscar” em 3 dos 6 lugares recomendados pelo G 1. com, quase não conseguí dirigir até em casa, de tão empanturrado que fiquei, e quer saber ? só comida cara, com aspécto exótico( mistura de salgada com adocicada, e com misturas afro e inca) que incha ao cair no estômago, e dá enxaquêca.

    Aí, leio esta saborozíssima crônica, com a qual o amigo nos brinda, com este jeito brasileiro de cidade do interior, e fico pensando: Não há nada mais paulistano, que uma rodada de “branquinha” seguida de cervejas estupidamente geladas, e umas beliscadas em petiscos caseiros, e feitos exclusivamente para os contadores de prosa, e jogadores de um bom e velho dominó.

    1. Caro Raí,

      já havia respondido a você, mas acho que me compliquei e não saiu.

      Sua prosa é ótima, essa sua última aventura nem tanto. Evite “roubadas Globais” e “viradas qualquer-coisa-aí”. No seu “bom e velho” Tatuapé deve ter vários botecos do Serafim, honestos, com ou sem dominó. Fora os que você já deve conhecer, nosso amigo Juncal poderá nos indicar outros. Quanto à Vila Madalena, onde moro há 33 anos, hoje, não passa de uma Oscar Freire menos fresca. Abração.  

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