Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
[email protected]

Gritos engavetados, por Maíra Vasconcelos

Gritos engavetados, por Maíra Vasconcelos

Facilitara o peito ao grito, pois a garganta se encheu encheu encheu. Já não resta nenhum grito? Está tudo pronto – quase, não fosse a existência flutuante do nada. Ficou fácil, talvez talvez. O grito cansado, como se na esquina pendurasse sapatos que por agora não mais irão caminhar. Os sapatos no cabide para quem aprecia o descanso. Ficou bonito? Como cenário de teatro: reparem. E não apenas os sapatos, aquela roupa tampouco seguirá. Outro cabide, por favor. Adeus. Desfiz-me aparentemente de quase tudo – quase. Apenas para gritar, pois a garganta se encheu encheu encheu.

Quando poucas coisas estão a servir, tem-se a ausência o ar frio o desmantelo. Após estabelecidos, finca-se o corpo mais ereto e saudável, como maçãs precisadas de tão pouco se já são vermelhas. Muito pouco seguirá, quando se necessita quase nada. Entra o sol em meus olhos, em meu peito: essas poucas coisas estão a caber. Ou seja, quase nada. Sapatos e roupas viraram enfeite teatral – quanto você calça?, uma pergunta íntima. O corpo parece mais apertado ou o mundo cada vez mais encostado em nós. 

Uma música, talvez talvez. A música ao piano satisfaz o ouvido sublime. Tente usar essas teclas: uma música no vestuário para experimentações. Essa música pode ser mística, se houver simplicidade durante o café da manhã com caqui bem vermelho – comprei vários caquis, durante onze dias coloridos, logo, todos viraram lembrança poética e levaram junto aquele entusiasmo. Nem sempre toda música seguirá – haverá composição musical sem agitados intervalos de silêncio? Ou apenas o tango: virou personagem do livro a ser lançado em 2027, 2057, após da morte dessa autora? A palavra depende do bafo do tempo.

O grito depende do sapato, da roupa, da escolha de uma música entre todas as simplezas. Se apodera do instante, faz-se rastro, depois solidão: gritar em si mesmo e nunca ao outro. Escuta quem souber, os demais são exatos muros de concreto. O grito é durante a vida – a morte não se agita, no máximo bafora. O grito desperta, a palavra mata alguma coisa, sempre. Então, melhor escrever essa crônica agora, nunca se sabe o dia de amanhã. quaquá. Qual céu te servirá?, uma pergunta pela preguiça.

Encontre o volume: da música ou do grito? Às vezes, os dois são equivalentes e apenas bem se disfarçam, como coisas teatrais – a música sendo a impossível eternidade do movimento acontecendo. Eis que o berro vive. Tenho o grito realizado e há anos o lapido, todos os dias. Por isso, agora escrevo lentamente e quase nada, como essas crônicas. Tenho a gaveta aos berros a serem decepados, musicados ou versados. E ainda cada um desses gritos como recurso interrogativo, se irão funcionar ou não.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador