Lembranças de uma Poços que se vai

Em Poços de Caldas, na rua Prefeito Chagas, há o barzinho dos antigos. Todo dia, às 11 da manhã, reúnem-se para relembrar histórias de antigamente, dos tempos do jogo, das disputas políticas dos anos 50 e 60, as histórias da rádio Cultura.

Antes de pegar a estrada paro para tomar café e pergunto dos últimos mortos. Contam-me que foi Robertão Junqueira, que morreu há alguns meses perto de completar 90 anos.

Grande figura! Quando montei o Jornal da Mantiqueira em 1974, com meus parcos 24 anos (e já trabalhando em São Paulo), houve uma briga feroz com os Junqueira e os Navarro – que se apossaram da cidade quando a ditadura decretou prefeito nomeado e assumiu Ronaldo, irmão de Robertão.

No jornal, éramos em quatro sócios. Os Junqueira e Navarro adquiriram a participação dos outros três e fiquei na mão.

A vingança se dava nos carnavais, quando eu aportava em Poços com marchinhas satíricas, a mais conhecida das quais foi a Macrita.

Foi um belo trote. Minhas irmãs participavam do Bloco do Bolinha e pediram uma música enredo. Compus uma marchinha com um refrão bem marcante, para o golpe final:

Macrita, pixotó, micrata

Tribobó, sacritá,

Quiproquó, socrata

Que não significava nada, servindo apenas para marcar bem a música para o segundo tempo.

A marchinha disputou o concurso da Prefeitura em nome de outras pessoas e venceu. Foi o primeiro tempo.

O segundo tempo foi à noite, no histórico Restaurante Castelões, que desde os anos 30 abrigava o mundo político de Poços. Nosso grupo tomou o lugar na mesa que o dono Rodolfo sempre reservava para nós. Tiramos os instrumentos da sacola e cantamos a letra principal:

Acharam petróleo em Campos

Vão achar em Cascadura

Mas aqui em Poços, tem um poço mais rico

No porão da Prefeitura.

E terminava com um matador:

A Prefeitura é uma mãe

De um grande coração

Pois seu orçamento sustenta hoje em dia

Ronaldo e seu batalhão.

Bom, tinha muito mais, e calou tão fundo que Robertão quis brigar na hora e seu primo Marcelo Junqueira quis brigar quase vinte anos depois. Sorte nossa que estávamos acompanhados do Aref e de um grupo de professores do Objetivo de São Paulo que equilibraram as forças.

A guerra com os Junqueira se acirrou mais ainda. Em todo carnaval eu preparava uma marchinha nova, mimeografava, ensinava para amigos e turistas e cantávamos ao final de cada baile do Cassino, debaixo do camarote do prefeito.

Traumatizou tanto que cada vez que os jornais da cidade anunciavam que eu estava para chegar, o Ronaldo inventava uma viagem oficial e se mandava.

E foi indo assim  até um inesquecível carnaval de 1990.

Eu tinha acabado de perder minha mãe, estava um órfão em Poços.

Acampamos no bar do Dirceu, em frente às Thermas, e começamos nossa rodada de músicas de carnaval.

Naqueles noites, relembrando as marchinhas de dona Tereza, conheci outra Tereza inesquecível, amiga de minha mãe, parecida com minha mãe e mãe de um colega de escola que se casou com uma ex-namorada minha. Ainda hoje penso que ela escolhia os namorados pelas donas Terezas.

Além de todas as coincidências, dona Tereza conhecia as marchinhas que mamãe cantava. Considerei-me imediatamente adotado e transferi para dona Tereza um sentimento filial genuíno, pelos poucos anos a mais que ela viveu.

Mas eu falava do Robertão, e foi naquele bar que se deu nosso encontro. Ele tinha acabado de enviuvar, eu tinha acabado de ficar órfão. E, nos intervalos das marchinhas, começamos a conversar.

Ele arrodeou, eu arrodeei. Ele reclamou: “Você não gosta de nós”. “Nós” eram os Junqueira.

Disse-lhe que não era bem assim. Que, embora tivesse brigado muito com Ronaldo, seu irmão (Robertão costumava se referir a ele como “mermão”, naquele sotaque único que vai de Ribeirão a Poços), tinha a lembrança mais simpática dele pelo que me contava meu avô Issa Sarraf.

Vovô era udenista radical, responsável pelo grande pacto político com o PTB de San Tiago Dantas (e do pai de Maria Lídia) cujo lema era “Morra, PSD”. Mas um dia por semana, os adversários do PSD se reuniam no seu próprio bar e restaurante Serigy para os conchavos políticos.

Vá entender, mas a política em Minas era assim.

E vovô dizia sempre que Robertão era a maior vocação política da família, mais que Agostinho, que foi prefeito nos anos 50 e Ronaldo, interventor nos anos 70.

Robertão dizia não entender nossa animosidade, já que as famílias eram amigas não só do vô Issa como de meu pai Oscar.

E de conversa em conversa, de cerveja em cerveja, fomos relembrando a grande história de Robertão que, depois, levantei com mais detalhes com as velhas senhoras poçoscaldenses, dona Elza Moreira Salles e outras, que moravam em São Paulo.

Robertão casou-se com a filha de um emérito médico de Poços. A viagem de núpcias foi em um cruzeiro para a Europa. No próprio cruzeiro, a moça conheceu uma cafetina e, antes mesmo de terminar a viagem, resolveu assumir a profissão.

Durante anos Robertão batalhou no STF (Supremo Tribunal Federal) pela anulação do casamento.

Muitos anos depois, a mais bela poçoscaldense casou-se em São Paulo com uma figura admirável, um grande conhecedor de música, querido por todos que o conheciam.

Com poucos meses de casado, veio visitar a família, encontrou com Robertão e foi uma paixão fulminante. Sequer voltou para se despedir do marido.

Dona Elza contava o desespero do marido apaixonado, indo até seu apartamento para longos telefonemas para Poços, na esperança de recuperar a amada.

Nunca conversei com a senhora Robertão. Minha mãe, em geral crítica em relação à pequena elite poçoscaldense, só se referia à ela (e à sua mãe) com elogios.

No fundo do Castelões havia uma sala para jogos clandestinos de baralho. Muitas vezes estávamos tocando no restaurante e o casal Robertão passava para jogar. Os amigos poçoscaldenses viravam o nariz para ele mas sempre tinham um olhar de simpatia para a esposa, que diziam ser uma pessoa humana, inteligente.

Pois o Robertão e ela viveram felizes por muitas e muitas décadas. Até que ela foi diagnosticada com câncer. Pouco tempo depois, morreu devido a um vazamento de gás no chuveiro da sua casa.

Foi pouco antes de minha rodada etílica com Robertão.

Depois disso, todas as vezes que cruzávamos em Poços, havia um sentimento de afetividade, pelos pontos em comum, mas pela noite em que dois órfãos se confraternizaram numa mesa de bar, ao som de marchinhas inesquecíveis, e descobriram que a vida é mais importante do que pequenas quizilas políticas.

Luis Nassif

6 Comentários

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  1. Bonita crônica memorialista, Nassif

    Esse Blog nos últimos dias tem retornado a sua origem.

    Bom ler origens por aqui. De todos os tipos.

  2. Muito bom

    Nassif, parabéns pelo texto e principalmente pela frase “vida é mais importante do que pequenas quizilas políticas”.

     

    Obrigado.

  3. Curiosidade

    Aquele avião na foto é um bambardiro Stirling britânico da 2º guerra mundial. O primeiro dos três pesados, junto com o Halifax e o Lancaster, o melhor de todos. O que ele estava fazendo em Juiz de Fora? O unico país a usar um destes pesados acho que foi a Argentina que equipou alguns esquadrões com bombardeiors pesado Lancaster. Ou a foto não representa uma imagem de Juiz de Fora?

  4. Bons causos

    Eh, a vida no interior desse brasilsão era mais ou menos isso ai. Poucas familias dominando a politica local, muitas brigas e, a ironia, é que muitas vezes acabam em casamento entre eles mesmos!

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