Noveleta, o início

Estou agora numa destas noites, quando é mais difícil deixar-se estar em seu pleno escuro. Vou pelas beiradas claras. A espiar de fora. Pois quando dormidos, inconscientes e sem memória prestativa, é quando damos-nos ao mundo. Entregues ao desconhecido. Num instante de inigualável distração de nós mesmos, oferecendo-nos ao mundo como se ele fosse puro e bom. Dormindo com a coragem ideal daqueles que apenas pensam no objetivo alcançado, almejando unicamente o descanso certo, e quando pegos de surpresa por um pesadelo assustamos-nos feito criança. Esquecidos de que a noite brilha é por estar no escuro, pela escuridão que ela retém em si, com forças incabíveis de luzes nascidas de o seu próprio impossível raiar, como se toda claridade vista da noite fosse um milagre a céu aberto. Por isso a noite é dona de si e de todos nós quando mergulhamos em sua lógica de aparição divinal, relaxados e apreensivos, porque se às vezes voamos, outra vezes caímos. Quando adormecidos. Temos encontros com o inesperado, e vemos retorcida a vida no mundo. Atávicos, existindo com a noite escurecida e dormida, em estado perdido de nós, não sendo esse que se é, senão estando a encontrar com os demais que habitam cada qual. E a essas aparições duplicadas de nós damos-lhes o nome de fantasmas, para dizer da sua não-realidade. Ora! Mas e se está. Eles – fantasmas de nós – estão quando a noite não dorme e temos os olhos abertos demais; sei porque posso ver agora quantas de mim há neste escuro, refletindo-me através e além da noite. Sendo o seu reverso: clara. Estou aprofundando-me no conhecimento do estado puro das coisas, não me deixando estar com nenhum outro além de mim, apartando, estando a desconfiar. Sem dormir. Não sinto falta de apagar-me nesta noite, estou a conhecer e a entender aquilo que somente o olho arregalado no escuro não vê, e apenas busca, treinando estar na claridade. Tão só suspendendo-me do ato de entregar-me ao escuro de dormir, alerta e viva, tomando conhecimento exato e de ponto-cruz da minha própria claridade, tendo agora em meu corpo inerte também aquilo que é o seu depois, o por vir de todo escuro, que não se escurece mais e volta-se ao redondo claro de uma lua.

Na escuridão reservo-me uma noite de vigília, guardiã de mim mesma. Estou a postos, preparada sem a permissão de entrada a. Sem admitir-me a obediência frente ao escuro – ele que sabe tanto sobre si mesmo, e quão de tantos outros – e querendo ser sua desconhecida, vou. Agora que não penduro corpo na madrugada, tenho a oportunidade de visitar seus espaços ressaltados, dar passos preparados, e ter a visão de cada quadrado onde irei pisar; vejo ladrilhos desde uma perspectiva armada e concreta, porque a escuridão cobre seu arredor e a única forma de exaltar-se é pela capacidade sua de ser aquilo em que poderei vir a pisar. Reluzem os quadrados. Isso pode ser então a verdade de um caminho, que pela primeira vez posso vislumbrá-lo, e isto ocorre justamente na intenção de um diálogo com a pós-escuridão. Agora que a noite é em mim, de tal modo feitio que não roça nem se apoia, a noite sendo uma coisa ao lado de. Attenti per mi. Isso não é um sonho. O sonho é um combinado de elementos que mesmo não tendo nada e nem como estarem um com o outro, estão juntos e possíveis porque justamente formam o diálogo sonhado. Mas não, não estou em nenhum sonho de mim, nem de ninguém, nem me emprestando para estar em lados inadmissíveis, estou tão desperta e sobressaltada que até mesmo a noite poderá gostar do movimento do meu corpo? Mas isso é uma interrogação em pleno silêncio. Para o silêncio. A noite é indobrável, a noite não se curva, curvados estamos nós a suplicar-lhe tantas vezes descanso e sonhos. E agora que tenho sono, como o desprezo! Porque a escuridão da noite provoca-me a vista, uma paisagem novidosa, e crédula permaneço. A noite guarda o silêncio, esse intervalo esvaziado que busco pela manhã, mas qual espessa luz dar-me-ia tão só contestação atrás de outra palavra-contestação, enquanto o claro vindo do escuro é a negação, é a minha não-resposta.

Esta escuridão clarificante onde agora pairo imovelmente, ela apresenta em si o direito da vaguidão, do espraiar-se quando queira. É assim que se tem a liberdade regrada e aceita, a liberdade que se doa com o prazer de não ser livre, dizendo perambulando pelo quarto: não sou livre, porque em ti depositarei meus restos de valentia. Plaino desengonçada e medrosa, e por detrás de toda essa miserável desconjuntura sou um ser na noite alçando a descoberta. Por descobrir o que não se terá jamais, porque já hão calculado sistematicamente: a noite é infinita. Por isso escuta-se nada durante a noite, e esta ausência silenciosa é a negação repetitiva da noite em seu estado de eterna exilada. Assim, sem haver combinação de lugar nenhum, lido com a desconformidade do mundo numa suposta paz que sinto durará o segundo desta noite agigantada.

Redação

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