Fernando Castilho
Fernando Castilho é arquiteto, professor e escritor. Autor de Depois que Descemos das Árvores, Um Humano Num Pálido Ponto Azul e Dilma, a Sangria Estancada.
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Nunca fomos tão tolerantes com o intolerável, por Fernando Castilho

Vemos o presidente ameaçar com golpe de estado porque já tem certeza de que não vencerá as eleições e porque sabe que poderá ser preso

Nunca fomos tão tolerantes com o intolerável

por Fernando Castilho

Houve época em que bastou uma presidenta falar que o Brasil ia estocar vento, para que o país desabasse sobre sua cabeça.

Pesquisa do antigo Ibope dava para Dilma Rousseff aprovação de 10% e rejeição de 69% em março de 2016. Na época os brasileiros tinham emprego, podiam fazer churrasco nos finais de semana, o gás custava 35 reais e a gasolina, 2,39 reais. Além disso, não havia escândalos de corrupção e nem crime de responsabilidade.

Pessoas saíam às ruas de verde e amarelo para exigir que ela deixasse o governo e a grande imprensa lhe fazia uma duríssima campanha.

Os brasileiros não gostavam de sua maneira de falar, de seu penteado e de suas roupas. E não suportavam o fato de ela ser mulher.

O país era intolerante.

Mas mudou.

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Hoje temos um presidente que:

Ignorou e fez pouco caso da pandemia da covid -19, boicotou as vacinas e foi responsável por centenas de milhares de mortes;

Incapaz de governar, entregou o orçamento da União ao centrão que o utilizou para distribuí-lo secretamente entre seus apoiadores que se lambuzam com tanta grana e fazem a maior festa com dinheiro público de que se tem notícia;

Livre da tarefa para a qual foi eleito, o presidente pode, enfim, ter tempo para fazer o que realmente gosta, ou seja, se exibir com jet-skis e promover motociatas pagas com dinheiro público ao mesmo tempo em que faz campanha para sua reeleição;

Sem programas de governo, políticas públicas e vontade de governar para quem realmente precisa, o país, logicamente começou a afundar com o reaparecimento da inflação, a alta dos combustíveis, dos alimentos e da energia elétrica. Pessoas estão sendo despejadas de suas casas e indo morar nas ruas. Já são cerca de 35% os famélicos;

Incentivados pela postura autoritária, violenta, preconceituosa e sociopata do presidente, aqui e ali começaram a emergir das grelhas dos esgotos todos os tipos de animais peçonhentos, repugnantes e contagiosos. Testemunhamos um rapaz sendo asfixiado dentro de uma viatura policial, um indigenista e um jornalista sendo assassinados na Amazônia e uma juíza pressionando uma menina estuprada de 11 anos a prosseguir com uma gravidez indesejada e de alto risco;

Vemos todos os dias o presidente ameaçar dar um golpe de estado porque já tem certeza de que não vencerá as eleições e porque sabe que poderá ser preso assim que deixar o poder;

Numa conversa telefônica entre o ex-ministro da educação, Milton Ribeiro e sua filha, fica claríssimo que o presidente cometeu crime de obstrução de justiça ao avisá-lo de que poderia ser preso preventivamente. Enquanto desvios de dinheiro são promovidos por pastores sob o consentimento do mandatário da nação, todos os índices educacionais despencam e já não há futuro para grande parte de nossas crianças;

O governo entregou a preço de banana a Eletrobras, garantindo dinheiro para subsidiar parte dos combustíveis até o final do ano, somente. Ou seja, trocamos uma grande estatal por alguns litros de gasolina e óleo diesel. Agora o preço da energia elétrica vai aumentar cerca de 65%;

Como se tudo isso não bastasse, há mais de 100 pedidos de impeachment na Câmara Federal protegidos pelo seu presidente Arthur Lira, encantado com os milhões que recebe do orçamento secreto e distribui para seu filho e correligionários fazerem a festa em Alagoas.

Agora que Dilma deixou o governo, o Brasil se tornou tolerante. Extremamente tolerante, afinal, se ela tinha aprovação de 10%, o presidente tem de 28%!

Hoje não há uma só pessoa que saia às ruas contra a pilhagem praticada pelo presidente e seus asseclas.

A grande imprensa até critica o capitão, mas o faz com muito cuidado para não deixá-lo muito irritado, já que não quer Lula, e a terceira via se demonstrou um bolo sem fermento. Vai com o inominável mesmo e espera recompensa no ano que vem.

As instituições, como o TCU, o TSE e o STF, até procuram tentar agir de acordo com as missões para a quais foram criadas, mas sentem medo, muito medo, pois não é possível viver confortavelmente quando se é ameaçado diariamente por gente cuja capacidade de ação não se consegue aferir com precisão. As milícias se espalharam pelo país como uma rede que pode fazer sua primeira grande vítima a qualquer momento. Lula também corre perigo.

Boa parte da população, de tanto sofrer nas mãos do tirano e todos os dias vê-lo falar sandices e cometer crimes, parece agora aceitar resignada e placidamente seu destino, talvez porque veja o favoritismo de Lula nas pesquisas como um “já ganhou”, só esperando para comemorar o resultado e começar a viver novos tempos.

O fato é que o país vive uma espécie de Síndrome de Estocolmo, acostumou-se e se adaptou ao tirano. E isso é ruim, muito ruim.

A intolerância de boa parte de nossa população, afinal, era só contra uma presidenta, mulher, republicana e correta, incapaz de qualquer reação mais dura, fora das quatro linhas da Constituição.

Mas, contra Bolsonaro, total tolerância.

Fernando Castilho é arquiteto, professor e escritor

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Fernando Castilho é arquiteto, professor e escritor. Autor de Depois que Descemos das Árvores, Um Humano Num Pálido Ponto Azul e Dilma, a Sangria Estancada.

1 Comentário

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  1. Não é que o país tenha se acostumado a uma espécie de Síndrome de Estocolmo; o que ocorre é que o país ainda se guia pela perspectiva do cordeiro diante do lobo. O país ainda acredita que argumentos lógicos desestimularão o lobo a atacá-lo. Mesmo, porquê, ao cordeiro não lhe restam outras alternativas. A pedra vem sendo cantada há tempos: não queremos acreditar nos sinais de fumaça, mais do que explícitos, porque fomos convencidos de que todos jogariam segundo as leis da football association.
    Insistimos em mostrar ao juiz que a catimba e as caneladas sofridas em campo são desleais. Não queremos acreditar que o jogo, de fato, não é aquele que se desenrola no gramado. A guerra híbrida terminou faz tempo. Agora trata-se de guerra aberta. O lobo só espera o melhor momento para dar o bote. O cordeiro, no momento, não tem como se defender. Para que o cordeiro possa vir a se defender, ele precisa, antes de tudo, tomar consciência de que a atual assimetria de forças precisa ser alterada. E para isso, ainda não sabemos como proceder.

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