O egoísmo do vício

 

Ensino ao meu filho que a vida é feita de escolhas. A cada momento uma tem que ser feita. A roupa que vai usar, o caminho que vai para a escola, se vai de bicicleta ou de ônibus, se penteia o cabelo para um lado ou para o outro. A cada minuto, a cada movimento, é tudo escolha. E após fazer a opção, paga-se o preço. Imediatamente ou a curto, médio, longo prazo. É da lei natural; escolho aqui e vejo o resultado ali. E nem sempre o efeito das escolhas que se faz, retorna ao indivíduo que tomou a decisão. Muitas vezes quem paga o tal do pato é o tal do próximo.

Digo isso para voltar novamente ao tema do cigarro, ou melhor, do fumante. Falei a respeito recentemente, quando reclamei das pessoas que cheiram a cinzeiro. Porém, hoje, o que me faz retomar o assunto é algo mais sério, algo que todo mundo sabe, mas parece que ainda paira uma fumaça sobre a questão.

Uma amiga passa um perrengue com o pai, diabético, hipertenso, fumante. Ele tem entre 60 e 70 anos, começa a viver intensamente a degeneração comum aos pacientes acometidos por estas doenças, mas é intransigente: não quer parar de fumar. Após ver todas as suas infundadas justificativas não fazerem mais sentido, resolveu ser sincero e confessar: “Se parar de fumar, que graça terá minha vida? É o que mais gosto de fazer..!”. E aqui retorno àquela história do egoísmo do vício, que tira do indivíduo qualquer possibilidade de pensar no outro ou ao menos imaginar que exista mundo sem cigarro (ou drogas, álcool), ou que haja pessoas neste outro mundo. E no caso da família é ainda pior. Além de magoar – sem querer – ao dizer que a vida não tem graça sem cigarro, faz todos a sua volta sofrerem por suas doenças e nem por isso se convence. Conhecemos as consequências da dor familiar, largamente divulgadas quando se trata de dependentes químicos, mas quem fuma cigarros acaba por adquirir doenças crônicas que levam familiares a ficarem desgastados e emocionalmente doentes.

Minha amiga me mandou um email. Talvez pela necessidade de desabafar a angústia, sugeriu uma crônica e relacionou algumas ideias. Creio até que o que ela gostaria era dizer tudo para o pai, mas como ele é refratário, sentiu que queria dizer isso a alguém, qualquer pessoa que pudesse ouvi-la. Resumindo o que me enviou, o pai dela foi um daqueles jovens que começaram a fumar entre as décadas de 50 e 60, fortemente influenciados pelos sinais de status, poder e popularidade ligados ao cigarro. Andar com um maço no bolso era chique; fumar era elegante. Era muito comum ver apresentadores de TV, artistas e personagens de filmes fumando. Hoje ela diz que vê – e vejo também – muita gente com a mesma idade do pai, em situação semelhante. O que era chique se tornou escravidão, quem fumava para se apresentar bem à sociedade, hoje se olha no espelho e vê um derrotado. Mas, infelizmente, continua escravo. E na maioria das vezes não se dá conta de que a juventude acabou e que é hora de repensar valores.

Alguém que me lê pode dizer “ah, fumando ou não fumando, todo mundo vai morrer um dia”. Claro que vai. E como disse lá no início deste texto, a escolha é individual. Até que a morte o venha buscar, pode optar por viver com saúde ou não. O que penso ser uma crueldade é fazer a família inteira sofrer por vê-lo se desintegrar e, mesmo assim, preferir o falso prazer. Conheço o pai da minha amiga e sei que ele é um homem bom. Ele não é egoísta, mas o vício dele é. Fez dele cego, surdo, insensível às próprias necessidades e à dor das pessoas que lhe são mais caras.

 

Redação

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