O frevo que se canta hoje no Recife
por Urariano Mota
No Marco Zero, tocava uma orquestra afinada, passistas faziam um passo de acrobatas, cercados de gente de muitas idades e lugares. Mas eis que de repente, no azul do céu do cais, foi anunciado o frevo de bloco Evocação nº 1, de Nelson Ferreira. Para mim, coisa melhor não há, e me deixei ficar em desarmada prelibação do que viria. Um calor de felicidade correu no peito em atenção à lembrança que guardamos da letra, da canção, do coral de Batutas de São José, do tempo imorredouro da melodia. Então a voz da cantora soltou:
“Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon
Cadê teus blocos famosos?…”
Mas esses primeiros versos não dizem bem o que ouvi. Outra canção se fez presente já no começo, porque a cantora cometeu um “Fê-linto”. De imediato, esclareço que tal variação na prosódia local não é coisa boba, sem importância. Nós estamos falando de um hino da cidade. Trata-se de uma das maiores obras de Nelson Ferreira. Mas o melhor veio depois. Terminada a música, fui ao animador do encontro e lhe fiz ver que aquela “pronúncia” não era conforme a original. Então ele me respondeu com o ar mais puro da tarde:
– Todos cantam assim.
Eu lhe respondi:
– A gravação original da Evocação nº 1 não é assim.
O rapaz ficou atônito. Que coisa mais chata é esse cara vir dizer que estão cantando mal Nelson Ferreira. Mas ele foi salvo por uma senhora, que a tudo ouvia e, mesmo sem ser chamada, achou por bem intervir. Ela me mostrou o celular onde estava a letra da Evocação no trecho “Felinto, Pedro Salgado….”. E me disse:
– Está vendo? É assim que se escreve: Fê-lin-tô.
Toma, além de me ver como um homem sem memória, ela me transformou num analfabeto. Eu lhe respondi:
– É assim que a senhora lê? Fê-lin-tô?
– Sim – E me fitou de cima a baixo, indignada, como a me responder “se o senhor não sabe ler, o problema é seu”. Mas veio mais suave, apesar de autoritária: – Eu sou professora de português.
– Então a senhora sabe que as palavras não se leem como se escrevem.
– É? Saiba que português não é inglês. É diferente: aqui a gente lê como se escreve.
Vocês veem que era um diálogo impossível. Uma verdadeira peleja do bem, que é a nova pronúncia, contra o mal, que pesquisa a história de uma cidade. E o mal sempre perde no fim. Mas para o leitor retomo a palavra que não pôde ser ouvida. Primeiro, escute a gravação original da Evocação nº 1.
https://www.youtube.com/watch?v=7FNhDiqLErY]
Ouvimos Filinto, não é? Depois, ouça os Fê-lintos, até no Bloco da Saudade.
https://www.youtube.com/watch?v=jre2nzziqyU]
Lembro que a mudança no som das vogais não é exclusiva da Evocação nº 1. Cantam agora o Bloco da Vitória, de Nelson Ferreira, assim: “quando o povo dê-cide”.
[video:https://www.youtube.com/watch?v=ZeroK43LGt4
Ora, o verso de Nelson vinha do refrão eleitoral “quando o povo diz Cid”. O original do Bloco da Vitória fazia um trocadilho entre “o povo diz Cid”, da campanha de Cid Sampaio em 1958, e o verbo decidir. Daí que “diz Cid” virou “decide” na letra e dicide no som.
[video:https://www.youtube.com/watch?v=BuhSbY_r9a8
Mas por que a mudança hoje? Seria uma evolução natural da língua, que virou a nova prosódia pernambucana? Na verdade, os cantores dos frevos de bloco reproduzem um modelo de fala que julgam culta, educada. É constrangedor ouvir, ver blocos de carnaval do Recife submissos à prosódia dos apresentadores de televisão. Cantam Nelson Ferreira traduzido para um modelo de locução que vem de fora. Nada mais antipernambucano, violentador da história da cidade.
A nossa elite não sabe, despreza: a fala popular é a própria língua da história. A população fala a língua que guarda um fio de continuidade entre a identidade de um lugar e a civilização. Os professores deviam gravar a fala do povo nas feiras, nos mercados públicos. Aí aprenderiam que Felinto sempre foi Filinto, jamais Fê-lin-tô. Pelo menos no Recife.
No Diário de Pernambuco http://www.impresso.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/cadernos/emfoco/2017/02/13/interna_emfoco,163227/o-frevo-que-se-canta-hoje-no-recife.shtml
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Urariano, genial!
Parabens Urariano, seu texto nos faz acreditar que sempre vale a pena dar atenção ao que acontece ao nosso redor. Partindo da pronuncia de uma cantora voce mostrou uma questão presente e importante em nossas relações sociais e culturais. E o texto e delicioso!
Cristina Capistrano
Grato, Cristina Capistrano
Você e sua brava família também fazem parte da história do Recife. O seu comentário honra o texto. Abração.
Pois é
Sendo do Ricife, intendo perfeitamente o que vc está dizendo, Urariano. E os vídeos postados demonstram que vc tem razão.
(Obs.: não digo pôstados nem dêmonstram: é “pós” e “dé”)
Você está certa, Ana
Bem pós-tado. Eu não aguento mais ouvir/ver os apresentadores da Globo Nordeste falarem Ô-linda, em lugar de Ó-linda. Geram uma fala que nem é pernambucana nem de São Paulo. É puro frankestein.
É isso mesmo, Urariano Mota.
É isso mesmo, Urariano Mota. O que o padrão globo está impondo ao falar brasileiro é estarrecedor. Só quem pode ter sotaque é carioca, o resto tem que falar igual a, no máximo, paulista. Assim, aqui no Ceará, na TV, não se diz mais “ciará”, mas “cêará”. Os exageros são tantos que, em vez de ” ferrim” (um pequeno ferro) diminutivo carinhoso dado ao Ferroviário, tradicional time daqui, diz-se “fêrrim”. Há uma rede de hospitas públicos aqui chamados de frotinha, diminutivo do sobrenome Frota, da famlia homenageada ( ou, se quiser melhor comparação, uma frota pequena). Mas os locutores agora tacam um “frôtinha”. Mas há pior: há um bairro aqui em Fortaleza chamado Cocó, pois cortado pelo rio de mesmo nome. É o nome que também se dá ao nó feito nos cabelos por algumas mulheres e alguns homens. Pois Cocó virou, pasme, “côcó”. É de lascar, para dizer o mínimo.
Muito bem, Rogério Ferraz
O seu comentário ilumina o texto com a experiência cearense. Viva!
Ao amigo Urariano!
[video:https://www.youtube.com/watch?v=DWydmpQ8z7o%5D
[video:https://www.youtube.com/watch?v=r4pR3H5QV0k%5D
[video:https://www.youtube.com/watch?v=aa5N7jg9Rmg%5D
[video:https://www.youtube.com/watch?v=ZOUhbVxNU0s%5D
Até Beth Carvalho, carioca da gema e que seria perdoada por algum deslise na pronúncia, canta alto e em bom som:
FILINTO, PEDRO SALGADO…
Grato, Luciano
Sempre ativo, sempre acordado, o pesquisador Luciano Hortencio. Muito obrigado.