Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Uma conta de Natal, por Rui Daher

Vinde a nós

Primeira conta

O guri resolve descolorir o cabelo negro em loiro, como fez seu ídolo no Vasco. Pensa. Domingo de manifestação em Copacabana, vai dar muito riquinho. Do morro ou do subúrbio sai para a zona sul. Primeiro, tenta uma máquina de filmar. Não dá. Ela engancha na camisola do gringo grandalhão. Corre.

Minutos depois, flagra a bolsa de uma banhista no calçadão. Puxa. Ela segura, se revolta e começa a gritar, “vá roubar a sua mãe”, de incerta existência. Logo uma trupe mambembe da classe média do balneário carioca sai em defesa da senhora. Chapéu de palha, óculos de grife e canga esvoaçante protegem a tez branca dos raios do sol.

Moças-gatas pedem que o metralhem, metam-lhe uma bala na cabeça. Toma uns safanões, puxões de cabelo agenciados por mãos pouco temerosas de serem manchadas pela tinta vagabunda que o garoto usara para aloirar-se. Ah, o astro vascaíno!

Um senhor, que em muito lembrava o ditador Figueiredo, provável adepto de peteca e perfume de cavalo, desfere um tapa no meliante. Seu jeito é de quem sabe tudo sobre corretivos e educação social.

Alguns policiais, no cumprimento do dever ou lembrando dos guris que têm em casa, impedem a agressão de ir mais longe. Sabe-se lá aonde iria parar a saúde do garoto e a insanidade dos valentões.

Solto, ele resolve procurar a mãe no local de trabalho. Está com muita raiva, puto com aquela raça. Roubá-la não vai, mas quem sabe livrar uma graninha. Encontra-a na cama, nua, com um homem vestindo uma camisa amarela da seleção. Fecha a porta. Vai que aquele era o marido da tiazinha de quem tentara roubar a bolsa. Aproveitara o fuzuê para cair de boca na primeira prostituta que encontrara na esquina da Prado Júnior.

Roubou a imagem do que acabara de ver, uma faca da cozinha, e saiu à procura da reclamante. Foi fácil encontrá-la distraída num quiosque. Mais difícil foi furá-la várias vezes. Com a canga balinesa, os óculos Prada e o chapéu de palha Rodeo West cobriu as tripas expostas e diminuiu a sangueira.

Era pouco. Foi atrás do “Figueiredo”, correndo em ziguezague como fazem os guris. Uma paulada na cabeça, e dois olhos arrancados foram parar dentro da viatura policial. Seus filhos poderiam aproveitá-los no gude, pena serem apenas dois.

Às moças que pediam que ele fosse metralhado ou levasse uma bala na cabeça, passou-lhes a mão na bunda e gargalhou.

De volta à casa, na favela, perguntou à mãe: “E aí velha? Foi boa a féria hoje no apê da Prado Júnior?

Segunda conta

Em outro sítio brasileiro, um mendigo, sujo, barbudo, negro ou quase negro, dorme na porta de uma casa modesta. A senhoria teme sair, ser molestada, e descobrir Haiti em São José, Santa Catarina, tantos os santos vindos da colonização europeia.

Aparece um Santo Guerreiro que decide matar a pau, chute, soco e pisadas o Dragão da Maldade de poucas cabeças e ventas de fogo cachaceiro.

Certo de ter feito o correto, não esperava os pesadelos. Neles, o negro aparecia e chegava com dois amigos, o Bastião Flechado e o Francisco Duas Vezes Chico. Traziam incenso, ouro e mirra.

Acordava assustado, mas sonho, tentava voltar a dormir. Não conseguia. Presenças e odores pareciam cada vez mais se materializarem.

– Meu nome é Trindade. Viemos aqui para agradecer-lhe, ó Salvador do Universo!

– Mas você não é o vagabundo que …

– Sou, mas não guardo ódio. Pelo menos os pequenos. Trouxemos incenso, ouro e mirra para você. É Natal!

– Não poderiam deixar apenas o ouro? A mirra e o incenso dou como abatimento.

– Infelizmente, não. Cada um de nós irá explicar seus presentes.

– Eu, Bastião Flechado, trouxe o incenso. Ele será queimado e liberará uma fumaça perfumada que o deixará calmo, aliviado, sentindo-se no paraíso.

– Gostei.

– Eu, Francisco Duas Vezes Chico, trouxe a mirra. É terapêutica e te curará dos males do futuro.

– É. Ando com comichões no ânus.

– Ótimo. Logo elas acabarão. Eu, Trindade, trouxe o ouro.

– Estranho. Justo você, que eu espanquei até a morte, me traz o presente mais valioso, o que mais desejo.

– Exato. Sente o cheiro das toneladas de plantas queimando lá fora, misturadas à mirra? Sua coceira no cu logo irá passar. Siga-me.

– Mas e o ouro?

– Ali, no fogo, derretendo.

– Pra quê?

– Pra você sentar em cima. Ele seria fundido a 1064 °C. Derreteria. O Duas Vezes Chico achou pouco e nos convenceu levá-lo à ebulição, em 2.966 °C. Você estará livre das coceiras, ó Salvador do Universo!

Terceira conta

Noite clara. O poeta, descalço, arregaça alguns centímetros de calça e chuta as águas rasas que o mar do Leblon traz. Acompanha-o um violão.

Sorri com o acontecido. Fora afrontado ao sair de um restaurante por suas posições políticas e residência parisiense. Autor: um rico dono de Zeppelin, famoso por beijar “Fenômenos”, namorar uma “Paris-Devassa”, quebrar empresas, e jogar bosta, cuspe e champanhe em Genis que circulam em frente ao Copacabana Palace.

O poeta senta na areia à beira-mar, volta a sorrir, dedilha o violão, e encontra Nina, na noite de Moscou.

Todas as contas foram pagas. Feliz Natal!

Rui Daher

Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor

13 Comentários

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  1. Você sempre está na minha mais alta conta, camarada RUI

    Escrevi cedinho hoje. Assei no forno do afeto, ao lado de meu filho que gosta de lombo à mineira e me acompanha aqui nos meus percalços de menina-moça-adolescente-internauta (como me explicou ele, do alto de seus 26 anos),

    Ti gosto, Rui.

     

    Um Natal

    Odonir Oliveira

     

    Quando menina

    nunca desejei ser bailarina.

    Preferia lousa, giz e apagador.

    De meias brancas,

    novas,

    de sapatinho branco,

    novo,

    íamos, família grande

    pai, mãe, cinco filhos

    cultivar nossas saudades

    de avôs, avós, tios, primos

    distantes

    noutra cidade

    noutro estado

    noutras vidas.

     

    Natal era enfeitar uma árvore com bolas de vidro

    “Cuidado, não toque, que quebram”.

    Natal era preparar uma comida diferente e aguardar presentes,

    simples,

    sempre entregues antecipadamente,

    que meu pai não cultuava ritos estrangeiros, nem neve em árvore,

    nem hipocrisias.

     

    Natal era um dia como outro qualquer

    porque por seus ensinamentos, 

    todos os dias são dias novos

    de sapatos brancos e meias brancas

    como os de um doce Natal.

    24/12/2015

  2. belo texto.
    acho que pode ser

    belo texto.

    acho que pode ser sintetizado como uma decorrencia da combustão

    social promovida pela ditadura e pelo dito capitalismo selvagem

    remaenscentes ainda no país, embora nesse súltimos treze anos ]

    o goveno popular tenbtasse ujaa melhor distribuição de renda…

    toda  ação conterá em si uma reação?

     

  3. Prefiro colocar Fernando Pessoa em: Natal

    Caro Rui, o texto é primoroso. Os fascistas simplesmente não conseguem sentir alteridade com nada que não seja material e utilitarista. 

    Mas prefiro desanuviar o baixo astral que o fáscio nos deixa, com a metafísica de Fernando Pessoa.

    Um ótimo Natal a ti e a todos!

     

    NATAL

     

    Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade

    Nem veio nem se foi: o Erro mudou.

    Temos agora uma outra Eternidade,

    E era sempre melhor o que passou.

     

    Cega, a Ciência a inútil gleba lavra. 

    Louca, a Fé vive o sonho do seu culto 

    Um novo Deus é só uma palavra.

    Não procures nem creias: tudo é oculto.

     

    (Fernando Pessoa)

      

  4. verve a serviço da evolução

    Prezado Rui,

    Que beleza estas contas, destacadas do semanário com genialidade, entre milhões de contas que seriam apresentadas por brasileiros que não se deram bem na meritocracia “self-made”.

    O Natal ficou mais belo, melhor.

    Clovis

  5. Sequência? Reprise?
    É Rui,
    bosta, cuspe e champanhe… De onde terá vindo isso ?
    Mas Nina salva!
    Rãs e canja também; numa noite fria, solitária, distante das férias e das festas! Sábia a formiga, que pensa no inverno. Beleza de post aquele …
    Contas pagas. Mas ainda acho que vendeu barato. O fascínio, fáscio, fácil às vezes faz isso. Chico não vale mais Rui?
    Abc.

  6. Um dia especial

    Já estive hoje com o Sol.

    Cumprimentei-o indo em busca de um abacaxi.

    A fruta.

    No supermercado vizinho ao prédio onde moro não encontrei.

    Nas barracas também não.

    Na volta de uma delas, passando por um dos edifícios que faziam o meu caminho, vi um funcionário varrendo a calçada.

    Feliz, ele cantava:

    “Não fosse o amor por nossos filhos

    Você não estaria mais comigo…”

    À primeira vista, talvez pareça que a letra da música não me permita assegurar que ele estava feliz.

    Mas estava.

    A felicidade não se manifesta de uma única maneira.

    Sair andando em busca de um abacaxi, ver alguém varrendo a calçada, ver alguém cantando…

    Quanta coisa banal.

    Mais um dia.

    Não, não é.

    Os dias não são iguais.

    E não são simplesmente alegres ou tristes.

    Da mesma forma que a tristeza invade a alegria de um dia, a alegria encontra espaço em um dia triste.

    Mesmo a lembrança de momentos mais tristes que eventualmente me chegam trazidos pela memória parece doer menos.

    O tempo tem esse poder.

    Hoje é dia de festa.

    Engana-se quem pensa que a festa não permite a reflexão.

    Não necessariamente a reflexão nos deixa tristes.

    Muito mais que isso, ela nos deixa contemplativos.

    E aí a vida ganha sentido e intensidade.

    Desejo-lhe um dia assim.

    Alegria e contemplação.

    Aí, se por qualquer razão a tristeza quiser chegar, deixe-a entrar.

    Ela doerá menos e não lhe fará triste.

    Quem sabe possa torna-lo mais feliz.

    Por vê-la com os olhos da compreensão das coisas da vida

    Não se preocupe.

    Ela não vai fixar residência em você.

    Ah, sim, o que a minha mulher vai fazer para substituir o abacaxi no prato que está fazendo eu não faço a menor ideia.

    Sei que fará.

    E será especial.

    Feliz Natal.

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=Astd1rquoyM align:center]

  7. Não passarão!

    E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate…

    Por Renato Rovaidezembro 24, 2015 10:50

     

    Era evidente que isso iria acontecer. O fascismo e a barbárie teriam de bater à porta do nosso maior artista vivo para consagrar-se enquanto narrativa. Uma espécie de tentativa de xeque mate dessas hordas que têm atacado a qualquer um que ouse ter opinião diferente. Desses grupos que entendem democracia como sistema do ego. Do que eu quero. Do que eu acho.

    Chico Buarque de Holanda não é uma torre, não é um bispo e sequer é a rainha ou o rei deste jogo que estamos a disputar. Mas ele é o nosso Kasparov ou o Mequinho, para os que vivenciaram a história desse gênio brasileiro. Ele é o nosso maior enxadrista. Aquele que sabe como se mexem as peças.

    E por isso ele tinha de ser desafiado. Ele tinha de ser confrontado. Como deixá-lo solto por aí a desafiar a burrice? Como deixar um Chico por aí a nos lembrar da nossa história de coronéis e escravocratas? Como deixá-lo cantando um amor que desafia o ódio? Como entender o que somos e onde estamos nessa Roda Viva?

    Eles cercaram o Chico e filmaram a cena. Era o trunfo. Era a grande vitória que seria barbarizada nas redes.

    Mas eis que Chico é Chico e no meio daquele constrangimento todo ainda teve tempo de dizer “eu acho que te conheço” e perguntar “qual o seu nome?” Ao que o covarde respondeu apenas com um “Túlio”. Mas Chico é enxadrista de primeira. E contra-atacou. “Túlio de quê?”. E aí não teve jeito, aquele que também se diz músico não pôde mais se esconder. “Dek”. E Chico com um “ah, tá” acabava de vez com o embate colocando ponto final na tentativa de carreira do intimidador.

    Chico deu um xeque mate na galera do Túlio e em todos aqueles que buscam nos intimidar com seus micros e macro fascismos.

    Caetano sabia o que escrevia quando cravou “que Chico Buarque de Holanda nos resgate. E xeque mate”. Chico foi imenso e nos deu o melhor presente de Natal dos últimos anos desvelando o que se esconde na alma do ódio.

    O ódio não é algo a ser enfrentado por principiantes. O ódio não é algo que se combate só com amor. É preciso saber derrotá-lo pelas frestas. Pelas portas que deixam abertas com sua violência primária. Pelo que escancara e constrange.

    Desde o xeque mate de Chico muitos estão pensando se vale a pena ser como seus contendores. Se vale a pena ser confundido com um babaca filho de usineiro que chama Chico de merda.

    Não vale.

    E por isso Chico os massacrou no debate público. Chico sambou. E vai do palco, de novo, aplaudidíssimo.

    Porque Chico fala seu nome inteiro. E não tenta fazer de conta que não é ele. Chico Buarque de Holanda. Viu, Túlio. Viu, Garnerinho. Viu, filhinho de papai usineiro.

    Feliz Natal, aos que vão raiar o ano ouvindo Chico.

    Como me lembro de ter feito na virada de 84 para 85 na casa de um amigo ouvindo e chorando ao som de Apesar de Você. A gente sabia que algo no Brasil estava mudando. E os querem fazer aquele tempo voltar não passarão.

    Ainda temos Chico. E muitos como ele por aí.

     

  8. Põe na conta, Rui!
    Feliz

    Põe na conta, Rui!

    Feliz Natal e um 2016 que nos permita realizar nossos sonhos de paz, harmonia, igualdade de direitos, justiça social e respeito aos diferentes!

     

    Um grande beijo ao Nassif , Lourdes e a todos os amigos do GGN.

    Nilva

     

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