Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Linchamento no Guarujá revela sintoma do retrofascismo

Para além do horror diante da barbárie do linchamento de uma dona de casa por vizinhos e até crianças em Guarujá/SP, o mais perturbador nesse episódio é a ambígua declaração do governador do Estado de São Paulo Geraldo Alckmin, sugerindo que o ato bárbaro era injustificável porque, afinal, “tudo não passou de boato” – então, se os boatos fossem verdadeiros o linchamento seria justificado?. Essa surpreendente declaração para um governador confirmaria as sinistras previsões de Arthur Kroker e Michael Weinstein nos anos 1990: uma integração entre Estado, pan-capitalismo e violência sacrificial. O impulso primitivo amplificado pelas redes digitais seria a fase “interativa” dos rituais de sacrifício cotidianamente praticados pelos linchamentos midiáticos de reputações ou dos refugos sociais (desempregados, velhos e pobres) oferecidos como objeto sacrificial e bodes expiatórios em programas diários de TV. É o retrofascismo à espera de uma tradução política para, mais uma vez na História, ocupar o Estado.

“O homem preferirá ainda querer o nada ao nada querer” (Nietzsche)

O trágico episódio do linchamento da dona de casa Fabiane de Jesus por vizinhos, amigos e até crianças na cidade do Guarujá/SP provocado por um boato amplificado pela rede social Facebook poderia ter passado despercebido como mais um caso num cotidiano de chacinas e violências em bairros pobres e periféricos se não fosse por duas características e um sintoma importante:

(a) Uma explosão primitiva de violência motivada por um boato através de uma rede social produto da alta tecnologia de comunicação digital desse início de século. Tecnologia digital e primitivismo coexistindo como fossem dois lados de uma mesma moeda;

(b) O boato a partir de um suposto retrato falado publicado em página do Facebook dava conta de que Fabiane seria sequestradora de crianças para rituais de magia negra. Se na sua origem primitiva o linchamento é um impulso sacrificial para esconjurar o mal em uma comunidade, o episódio tem um quê de estranha ironia: um linchamento (ritual de sacrifício) para punir uma pessoa que supostamente sequestrava crianças para rituais que também visam esconjurar o mal ou/e compactuar como ele;

Declaração do governador Alckmin: sintoma?

(c) E finalmente, o sintoma que partiu do Estado na figura do governador do Estado de São Paulo Geraldo Alckmin que fez a seguinte declaração sobre a tragédia: “É inadmissível um ato de barbaridade como esse, tirando a vida de uma pessoa que não tinha nada a ver com a desconfiança da população, até porque tudo não passou de um boato”. Se ela não fosse inocente e se os boatos fossem verdadeiros, então seria justificável o linchamento? Estranha declaração de um representante de uma instituição que, ao lado da Justiça, teria a função civilizatória de ser o guardião da tendência humana de destruir uns aos outros e a si mesmos.

 Se um representante do Estado dá uma declaração pública assim tão ambígua, abrindo uma sinistra possibilidade de haverem linchamentos justificáveis, somente podemos interpretá-lo como um sintoma de algo que os pesquisadores canadenses Arthur Kroker  e Michael Weinstein chamam de pan-capitalismo, regime político-econômico sem opositores que conviveria funcionalmente com o seu duplo homicida: o retrofascismo – Leia KROKER, A. e WEINSTEIN, M. Data Trash, New York: St. Martin Press, 1994.

O retrofascismo seria o velho fascismo histórico em sua nova roupagem ao mesmo tempo virtual e nostálgica (a ressurreição como farsa de antigos referenciais) que combina os impulsos primitivos e mágicos por esconjuração do mal com alta tecnologia de informação e comunicação associado ao mal estar individual de um sistema baseado na luta pela sobrevivência em uma sociedade competitiva cada vez mais indiferente com o destino de seus cidadãos.

Em outras palavras: Estado e sistema econômico e tecnológico (virtualização da economia, financeirização, fim dos direitos trabalhistas etc.) se unem na promoção de um sistema que, segundo Kroker e Weinstein, teria uma contradição interna: a hiperliquidez e a livre circulação acelerada de informação e especulação financeira versus estagnação comportamental dos indivíduos pelo mal estar produzido por um sistema indiferente aos destinos dos cidadãos que necessitam ser continuamente duros consigo mesmos – a violência contra si mesmo através da autodisciplina motivacional como forma de continuar a ter esperança em continuar vivendo.

Theodor Adorno: “Quem é duro consigo mesmo,
também é com os demais”

“Quem é duro consigo mesmo, também é com os demais”, dizia o filósofo Theodor Adorno para sintetizar o mecanismo psíquico do fascismo – intolerância, ódio, racismo e a irresistível sedução pelas “soluções finais”. O fascismo esconderia um profundo ódio pela existência: se eu não sou feliz, ninguém tem direito a sê-lo.

Para entendermos essa estranha combinação entre Estado, alta tecnologia informacional e violência sacrificial como sugerida pela dupla de pesquisadores canadenses, temos que compreender esse conceito de sacrifício ritual.

Sacrifício e bode expiatório

As diversas formas de sacrifício ritual perpassam as mais variadas religiões, culturas e épocas, usando sejam animais ou seres humanos para serem mortos de forma sistemática por terceiros ou instituições.

Em geral os deuses ocupam a razão central do sacrifício, seja para a manutenção do poder divino, como moeda de troca para conseguir favores divinos em retribuição, como oferta de vida e sangue que conteriam o mana para o alimento dos deuses, ou ainda como função de “bode expiatório”: para que no objeto de sacrifício recaia a ira dos deuses ou do destino que, caso contrário, poderia recair indiscriminadamente sobre todos os homens ou comunidades inteiras.

Sob um ponto de vista antropológico, os rituais de sacrifício funcionariam como um mecanismo de purificação e renovação de uma comunidade, assim como uma estratégia de sociabilidade onde as tensões, conflitos e medos coletivos são expiados: alguém morre no lugar de todos ao oferecer-se como sacrifício expiatório. Dessa forma, o mal estar coletivo é aplacado e a comunidade pode iniciar um novo ciclo de existência.

Rituais de sacrifício: punição e purificação

Psicólogos e psiquiatras especializados em terapia familiar sob o enfoque sistêmico já localizaram há muito tempo um mecanismo análogo de elaboração do ritual de bode expiatório em dinâmicas familiares onde sempre um membro é eleito como a “ovelha negra”, isto é, como o doente ou pessoa disfuncional que atrai a atenção de todos (raiva, preocupação, escárnio etc.) proporcionando equilíbrio ao sistema familiar que ressurge como “puro” diante de um membro “doente”.

O sacrifício ritual sem deuses

Porém essa liquidação de segregados societais assumiria um novo aspecto em sociedades industrializadas, tecnológicas e laicas onde os deuses não mais existem como justificativa de manutenção de um ritual tão primitivo. 

O sacrifício ritual é renovado e adaptado à nova exigência trazida pela depressão econômica e o pan-capitalismo:  imposição da disciplina punitiva cotidiana. O nazifascismo, por exemplo, foi a resposta à depressão econômica combinando a férrea disciplina voltada à produção (pleno emprego voltado à indústria bélica) e à vida cotidiana (médicos da SS realizavam intenso controle pública de hábitos – antitabagismo e alimentação saudável – e pesquisas biométricas sobre a “pureza” racial do alemão).

 

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

20 Comentários

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  1. Em tempos eleitorais é assim

    Em tempos eleitorais é assim mesmo… Perguntem ao Padilha o que ele achou do linchamento… garanto que não importa a resposta, eu consigo fazer um post da mesma laia deste…

  2. Linchamento em Blumenau

    Aqui na cidade de Blumenau também tivemos um caso de linchamento,.,,,

    Não tenho muitos detalhes, nada na midia…

    https://www.facebook.com/viegasdacosta/posts/707710365942111?comment_id=707980422581772&offset=0&total_comments=43&notif_t=share_reply

    “Justiceiros confundem o estudante de Direito da FURB Jonhn Paulo Mafra com assaltante, e espancam-o com tacos de sinuca, chutes e socos em Blumenau, na noite de quarta-feira. Lugar de justiceiro é na cadeia.

    Para aqueles que apoiam a justiça com a próprias mãos, esse é meu amigo Jonhn Paulo Mafra #Maisum pego por engano por 3 “justiceiros” que o confundiram com um ladrão, aluno do 7 período de Direito Furb.”

     

    1. Que coisa triste,

      Que coisa triste, magsoa!

      Espero que seu amigo consiga ficar bem e que esses justiceiros sejam responsabilizados, presos pelo que fizeram. Os do Guarujá sumiram e(até onde eu sei) o que apareceu disse achar que estava fazendo o certo, como o picolé de chuchu, “no caso de não ser um boato”. Na verdade, Alckmin não  é o chefe maior da organização perigosa que atende pela alcunha PM… ?

    1.   Eu fui no link… caramba,

        Eu fui no link… caramba, isso é de verdade.

        O cara tem que ser doente para pensar em camiseta com estampa da Margareth Thatcher… já não me espantarei se vir alguém com uma do Medici.

    2. Vende

      A criatividade vende, e como aqui é uma democracia todos podem pensar, falar e escrever o que querem, e eles encontraram um nicho que vende e investiram nisso, nada mais normal do que isto, e como eles dizem se existem varias camisas com figuras do socialismo, porque seria estranho haver camisas com figuras do capitalismo.

      O que deve ser realmente criticado é a ideia do titulo do jornal, pois todos iram associar se estivessem fazendo apologia a direita (facismo) o que seria considerado crime. 

  3. As palavras do governador

    As palavras do governador lembram de forma inequívoca o “estupra mas não mata do Maluf”.

  4. E o Facebook?

    E o Facebook? Este lixo que virou moda e unanimidade para todos. Ninguém comenta o efeito manada que acontece todos os dias no Facebook. Mentiras circulam e as pessoas dão credibilidade somente baseando-se no número de views. Todo o tipode porcaria e precocentos circulando livremente enquanto uma multinacional enche o bolso de grana. E ainda tem gente que gosta de falar que Facebook é positivo é um avanço.

    A continuar esta moda de facebook veremos milhares de linchamentos e outras coisas piores só porque “saiu na rede social”

     

  5. retro-facismo?  comunista não

    retro-facismo?  comunista não matava?  que eu saiba nem no facismo a população se dedicava a execução, isso era obra do estado, como era no comunismo também, e ambos competiram para ver quem executava mais inocentes!

     

    eu diria que é retro-barbarismo!  como se a barbarie tivesse um dia acabado, os atos em Salvador e Recife mostrando que o brasileiro não tem educação ou moral alguma, e que não pensa duas vezes em saquear se souber que não será preso, mostrou bem o que e constituido o povo brasileiro!

     

     

    1. você sabe muito pouco

      Já ouviu falar da SA? de Progrons? da “noite dos cristais”? então meu caro vai estudar antes de falar o que não sabe.

  6. IMAGENS FORTÍSSIMAS

    EU NÃO TIVE CORAGEM DE VER ESTE VÍDEO

    a Extrema-direita, que tomou o poder na Ucrânia, degola ex-chefe da polícia de Donetsk na frente da esposa e divulga o vídeo na internet

    Os nazistas maidanistas apoiados pelos EUA, UE e meios pró-imperialistas ocidentais, protagonizam um vídeo disponível na internet, em que degolam um ex-chefe policial de Donetsk (recém constituída República Popular) na sua casa, na presença da esposa.

    O vídeo, com imagens fortíssimas, mostra a vítima sendo degolada pelos nazistas, enquanto seguram sua mulher, que observa o assassinato.

    Para não haver dúvidas, tanto a simbologia dos nazistas como as cores e anagramas exibidos no vídeo identificam a ação como protagonizada pela extrema-direita que tomou o poder na Ucrânia após o golpe de estado patrocinado pelos EUA e a União Europeia. São as cores dos “democratas” que protagonizaram a “revolução pró-UE” em Kiev.

    Como música de fundo, o Hino Nacional ucraniano acompanha a agonia do policial do leste da Ucrânia, que finalmente fica deitado no chão num grande charco de sangue.

    As imagens constituem uma verdadeira provocação e, no momento em que esta informação é redigida, a grande mídia ocidental silencia sobre o caso, que coincide com a assinatura de um acordo entre Ucrânia, Rússia, Estados Unidos e União Europeia para evitar a guerra.

    Resta agora esperar qual será a resposta da população do leste ucraniano e, sobretudo, do governo russo perante um flagrante assassinato fascista exibido com aparente impunidade na internet.

    As imagens, de extrema violência, podem ser visualizadas abaixo, mas advertimos sobre a dureza das mesmas.

    [video:http://vimeo.com/92742893%5D

     

  7. Um texto de excepcional qualidade

    O professor Wilson Ferreira escreveu um texto muito bom. É isso mesmo. Deu até vontade de estudar semiótica hehehe.

  8. Fascismo cultuava a ordem

    Fascismo cultuava a ordem baseada na autoridade do Estado, não tem absolutamente nada a ver com esse linchamento, fruto da ignorancia e da barbarie pre-civilização, coisa mais propria de massacres africanos tipo Darfour, Biafra ou Serra Leoa. Ciencia politica tem uma certa logica e esse crime não se encaixa na logica do fascismo.

    1. “fruto da ignorancia e da

      “fruto da ignorancia e da barbarie pre-civilização” um linchamento é fruto da falta de justiça, do desespero.

      Com 50 mil assassinatos ao ano, 11% dos assassinatos que ocorrem no mundo, a população se adapta, a anomia social se estabelece.

  9. O mais grave nesta história é

    O mais grave nesta história é a omissão dos MPs estaduais e do MPF. Jornalistas e pastores seguem pregando a vingança coletiva criminosa sem ser denunciados como co-autores dos linchamentos que tem sido cometidos nas ruas pelas massas que guiam intelectual e emocionalmente. 

  10. Tem-se como destaque a

    Tem-se como destaque a tecnologia que foi responsável pela vinculação de informações que consequentemente levou a linchação da mulher acusada de sequestrar e matar 2 crianças para rituais.Por  verem informações relacionadas a essa mulher alguns indivíduos resolveram fazer justiças com as próprias mãos em um caso parecido com aos dos justiceiros,  lincharam-a.Viu-se que essa mulher era inocente, mas ate se fosse culpada isso não daria o direito de pessoas tentarem fazer justiça com as próprias mãos, uma declaração do governador de São Paulo deu a entender se a mulher fosse culpada a atitude das pessoas ao lincharem-a estaria no caso correta.Mas esse tipo de situação abriu discussões para outro assunto, sera que esse caso revela um sintoma de retrofacismo? para entes dermos melhor retrofacismo  seria o velho fascismo histórico em sua nova roupagem ao mesmo tempo virtual e nostálgica (a ressurreição como farsa de antigos referenciais) que combina os impulsos primitivos e mágicos por esconjuração do mal com alta tecnologia de informação e comunicação associado ao mal estar individual de um sistema baseado na luta pela sobrevivência em uma sociedade competitiva cada vez mais indiferente com o destino de seus cidadãos.Se isso e uma realidade em nossa sociedade nao sei ao certo , mas espero que que nao ocorra situacoes desse tipo em nossa sociedade.

  11.  
    Tem-se como destaque a

     

    Tem-se como destaque a tecnologia que foi responsável pela vinculação de informações que consequentemente levou a linchação da mulher acusada de sequestrar e matar 2 crianças para rituais.Por  verem informações relacionadas a essa mulher alguns indivíduos resolveram fazer justiças com as próprias mãos em um caso parecido com aos dos justiceiros,  lincharam-a.Viu-se que essa mulher era inocente, mas ate se fosse culpada isso não daria o direito de pessoas tentarem fazer justiça com as próprias mãos, uma declaração do governador de São Paulo deu a entender se a mulher fosse culpada a atitude das pessoas ao lincharem-a estaria no caso correta.Mas esse tipo de situação abriu discussões para outro assunto, sera que esse caso revela um sintoma de retrofacismo? para entes dermos melhor retrofacismo  seria o velho fascismo histórico em sua nova roupagem ao mesmo tempo virtual e nostálgica (a ressurreição como farsa de antigos referenciais) que combina os impulsos primitivos e mágicos por esconjuração do mal com alta tecnologia de informação e comunicação associado ao mal estar individual de um sistema baseado na luta pela sobrevivência em uma sociedade competitiva cada vez mais indiferente com o destino de seus cidadãos.Se isso e uma realidade em nossa sociedade nao sei ao certo , mas espero que que nao ocorra situacoes desse tipo em nossa sociedade.

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