Na Flip, Bethânia e Cleonice Berardinelli recitam Pessoa

Do O Globo

Uma noite de reverência à poesia de Fernando Pessoa

Público lota tenda para ouvir Maria Bethânia e Cleonice Berardinelli

André Miranda

De Paraty

Em meio às discussões sobre os protestos e conflitos que correm o mundo — do Egito às ruas brasileiras, passando por Paraty, claro — veio da poesia o alento que talvez fosse necessário para mostrar que a suavidade das palavras são mais precisas do que a aspereza de alguns gestos para conseguir o respeito das multidões. A penúltima mesa de ontem da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) reuniu a professora Cleonice Berardinelli e a cantora Maria Bethânia para a missão de recitar versos do poeta moderno português Fernando Pessoa. Conseguiram um silêncio raro na plateia, apenas interrompido pelos também raros e intensos aplausos que Cleonice e Bethânia recebiam a cada poema lido.

Ritual com rosas brancas

A mesa, marcada para 19h30m, atrasou em 20 minutos porque Bethânia pediu privacidade para realizar um ritual em que ofereceu rosas brancas a seus “santos protetores”. Mas encontrou um auditório completamente lotado e disposto a acompanhar a proposta da curadoria da Flip. Cleonice e Bethânia têm a condecoração da Ordem do Desassossego, dada pela Casa Fernando Pessoa, de Portugal, a quem ajuda a divulgar a obra do poeta pelo mundo. Coube ao professor e crítico de música Júlio Diniz apresentar a mesa, mas ele deixou que a dupla ocupasse sozinha o palco em sua primeira parte para apenas retornar no fim e fazer algumas poucas perguntas vindas da plateia.

Aos 96 anos, Cleonice, que havia sido aplaudida de pé ao aparecer com um vestido florido e casaco branco, caminhando com a ajuda de uma bengala, foi a primeira a entrar no palco. Ela explicou o que se seguiria.

— Amigos da Flip, vocês terão agora diante dos olhos duas mulheres unidas por paixões complementares que norteiam nossas vidas. A música para a mais jovem, e a poesia para a mais velha — disse Cleonice, antes de contar como fizeram para selecionar os cerca de 20 poemas lidos. — Declarou Bethânia: que a escolha seja de Dona Cleo. Mas eu respondi que só se Bethânia fosse rever e complementar.

Os textos escolhidos para a mesa, explicou Cleonice, tinham a assinatura de três dos múltiplos heterônimos de Pessoa: Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis.

— Conviemos ambas que seria preciso abraçar a obra pessoana que contivesse o poeta e os poetas à sua volta — explicou Cleonice. — Querem mais detalhes? Deixem-me então chamar Bethânia.

Quando a cantora entrou — também muito aplaudida, vestindo um conjunto todo branco como de costume — e se sentou, teve início a declamação. A maior parte dos poemas foi lida pela dupla, cada uma dando a deixa para a outra. O primeiro foi “Dois excertos de odes”, de Álvaro de Campos, cujos primeiros versos são “Vem, noite antiquíssima e idêntica,/ Noite Rainha nascida destronada,/ Noite igual por dentro ao silêncio, Noite/ Com as estrelas lentejoulas rápidas/ No teu vestido franjado de Infinito”.

Plateia solene

Daí em diante, foram poemas atrás de aplausos, de silêncio e de reverência. Mesmo depois de quase uma hora de leitura — o tempo em que os desistentes das mesas da Flip costumam começar a deixar a Tenda dos Autores em busca de outras atividades —, quase todos os espectadores se mantinham no auditório, ouvindo as palavras que preenchiam com firmeza o ambiente.

Foi um contraponto interessante à última mesa de quinta-feira da festa, a “Narrar a rua”, que tratou dos protestos no Brasil com palavras mais inflamadas. Mais para o fim, ainda com a plateia solene à presença de Cleonice e Bethânia, houve tempo para que a cantora mostrasse seu bom humor, entre declarações apaixonadas ora para Cleonice, ora para o poeta:

— Fernanda Pessoa energiza minha vida, ele é meu Red Bull.

 

 

Duas gerações com muito a dizer

 

Talentos. Alice Sant´ana e Cleonice Berardinelli, juntas na Flip

As convidadas mais jovem e mais sênior trocam experiências

Thais Britto

De Paraty

 

Ao posar para a foto que ilustra a reportagem, ao lado de Alice Sant’Anna, 25 anos, Cleonice Berardinelli, de 96, provoca risos em quem assiste à cena.

— Isso é maldade. Me colocar perto desta menina! — diz, em tom de brincadeira, para logo depois emendar, diante das negativas: — Está bem, é verdade. Agora depois de velha até que fiquei fotogênica.

As duas ocupam espaços opostos entre os convidados da Flip quando se fala em idade – são a mais nova e a mais sênior entre os que participam dos debates na Tenda dos Autores – mas compartilham uma outra característica: a paixão pela poesia. Autora de “Rabo de baleia” e “Dobradura”, Alice está entre os mais celebrados jovens poetas contemporâneos; já Dona Cleo, como costuma ser chamada, é a maior especialista em poesia portuguesa do país e lança, na Flip, o livro “Cinco séculos de sonetos portugueses – De Camões a Fernando Pessoa”, terceiro de uma coleção dedicada à literatura lusitana.

Há ainda algo mais que as aproxima: é a primeira vez de ambas na Flip, como convidadas. Alice se apresentou, na última quinta, ao lado de Bruna Beber e Ana Martins Marques, na mesa “O dia a dia debaixo d’água”, enquanto Cleonice esteve com Maria Bethânia na noite de sexta lendo poemas de Fernando Pessoa. A professora especialista em literatura portuguesa nunca havia estado na festa: tinha medo da combinação entre as ruas de pedras de Paraty e seus problemas articulares e musculares. Mas decidiu aceitar depois de “ser convidada tão simpaticamente”. Já Alice conta ter estado em Paraty para os debates literários cinco vezes, nas cadeiras da plateia.

– Ah, mas já é uma tarimbada. Ela é a veterana – brinca Cleonice, começando a quebrar o gelo com a tímida Alice.

A jovem diz que, passado o nervosismo do debate, está muito contente com a experiência.

– Fiquei super feliz e honrada em ser convidada. E até um pouco surpresa. Até agora acho inacreditável.

Dona Cleo a ajuda:

– Mas é verdade, garanto a você! Quer ver? – observa, se aproximando para dar um leve beliscão no braço de Alice.

Já mais à vontade, as duas engrenam o papo falando sobre o primeiro contato com a poesia. Precoce, Cleonice insistiu com a família e aprendeu a ler aos 4 anos. Já nessa idade, o pai, um entusiasta do gênero, treinava a filha ensinando-a a ler – e declamar – sonetos.

– Um dia, há não muito tempo, chegou de repente uma coisa na minha memória e comecei a dizer o primeiro quarteto de um soneto. Falei para uma aluna que eram textos que eu dizia aos 4 anos. Ela não acreditou, e eu disse para ela – relembra Dona Cleo, que recita os versos para Alice: “Essa que passa por aí senhores/ de olhos castanhos e de altivo porte/ é a princesa ideal dos meus amores/ a mais franzina pérola do Norte”. – Disse à minha aluna: “Que pena não recuperar o resto”. E ela me retrucou: “Vá ao google”!

Ela foi. Quer dizer, uma de suas secretárias foi, que internet não é um terreno no qual Dona Cleo atue com desenvoltura. Descobriu que tratava-se do texto de uma coletânea chamada “os 100 melhores sonetos brasileiros”, mas não se lembrava do autor, Hermeto Lima. No fim da história, ela quer saber a versão de Alice:

– Essa foi minha entrada no mundo da poesia. Agora quero saber a sua.

E elas conseguem encontrar alguma relação nas histórias.

– A minha entrada foi bem menos nobre do que a sua. A minha começou no google – explica Alice. – Eu já gostava de ler e escrever, mas a poesia para valer apareceu quando li um poema da Ana Cristina César.

“Uma menina muito talentosa”, acrescenta Cleonice, dizendo que não chegou a conhecer Ana na década de 70. O papo envereda para os conhecidos em comum: a orientadora de mestrado de Alice é ex-aluna da professora; o orientador do namorado de Alice, também. A conversa passa ainda por Fernando Pessoa – a jovem se declara uma fã fervorosa de “Livro do desassossego” – e Maria Bethânia.

No fim, as duas presenteiam uma à outra com seus livros mais recentes. E Alice, que antes de começar a entrevista confessou estar nervosíssima, saiu do encontro com uma série de elogios na bagagem.

– Quando fiquei sabendo que íamos conversar, fui procurar o seu livro. Imagina, queria conhecer o trabalho dessa jovem e talentosa moça. Eu li (o primeiro lançamento de Alice, “Dobradura”) e gostei. Sabe que é fresca, sua poesia? É como a sua carinha. Fresquinha, jovem, limpa. E é boa, bem feita. Vá em frente – aconselhou a professora.

Luis Nassif

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