Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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O Glamour da Liquidez

“Que coisa triste”, diz a música daquele comercial de um cartão de débito referindo-se a pessoas que teimam em portar papel moeda. Acompanhamos o esforço midiático diário por meio da publicidade e filmes em glamourizar o dinheiro na sua forma líquida, fluida e atemporal: crédito, transações eletrônicas, dinheiro contratual etc. É o fetichismo da liquidez, forma imaginária de ocultar os mecanismos ficcionais de financeirização da sociedade, baseados unicamente na fé e no valor moral do dinheiro e do trabalho.

 Se Karl Marx na sua obra máxima “O Capital” mostrou que o capitalismo e o mercado se instituíram sobre as formas imaginárias do Fetichismo da Mercadoria e o do Dinheiro, agora diante da financeirização da sociedade faz-se necessária uma crítica ao fetichismo da liquidez.

Podemos observar na indústria do entretenimento uma insistente tendência em glamourizar o dinheiro em sua forma “líquida” (“dinheiro crédito”, “dinheiro contratual”, “dinheiro eletrônico” etc.) como sinônimo de modernidade e inteligência, enquanto ao dinheiro em espécie é reservado o papel de algo antigo, sujo e seu portador como alguém desajeitado e burro.

Como mostra o filme publicitário de um cartão de débito, pagar em dinheiro é “uma coisa triste”, antiga, atrai olhares de condenação das pessoas ao redor. Há uma premissa moral nessa execração em querer carregar consigo o dinheiro em espécie: você passa a ser suspeito de querer fazer um uso infecto, quando o dinheiro é tão belo em seu estado fluido e atemporal. O dinheiro em espécie é sujo e perigoso.

No cinema filmes como “Não Tenho Troco” (Quick Change, 1990 – um trio assalta um banco e planeja fugir de Nova York, mas o fato de estarem levando notas de alto valor vai criar uma série de incidentes em série tal como não conseguir fugir num ônibus por não haver troco) ou  ainda o filme de Scorsese “Depois de Horas” (After Hours, 1985 – onde um yuppie, após deixar voar pela janela do taxi a única nota que possuía, entra em uma série de catástrofes em série) apresentam protagonistas atrapalhados e azarados que enfrentam bizarras cadeias de eventos problemáticos por andarem com papel moeda.

Na mídia sempre o dinheiro em espécie está associado à corrupção: fotos de pilhas de notas ligadas ao caixa dois de campanhas políticas ou compra de dossiês, subornos, “malas pretas” no futebol etc.

Gordon Gekko no filme “Wall Sreet”: 
liquidez com “sex appeal” 

Ao contrário, a liquidez está quase sempre associada a protagonistas inteligentes e com “sex appeal”: Gordon Gekko no filme “Wall Street”, o yuppie que se transforma em gênio dos mercados financeiros através das “smart drugs” em “Sem Limites” (Limitless, 2011), ou ainda a sexy personagem interpretada por Annette Bening no filme “Os Imorais” (The Griffers, 1990) que trabalhava num escritório de corretagens onde ajudava a aplicar golpes nos mercados financeiros.

Qual o sentido dessa glamourização e idolatria fetichista da liquidez? Por que essa condenação moral do uso do papel moeda?

Liquidez e especulação “ad infinitum”

De certa forma Karl Marx anteviu a financeirização do capitalismo com a teoria da tendência decrescente da taxa de mais-valia com a predominância do trabalho morto sobre o vivo na produção (o crescimento do maquinário e automação na linha de produção). Diminuída a capacidade de extração da mais-valia no setor produtivo, o capital e o Estado migram para o setor financeiro que cada vez mais se autonomiza em relação ao restante da sociedade, como bem explica o Grupo Krisis (grupo de intelectuais e formado em 1986 na Alemanha e liderado por Robert Kurz, influenciados pelas ideias de Guy Debord e Theodor Adorno em torno do jornal “Krisis – contribuições para uma crítica à sociedade da mercadoria):

“Há tempos, empresas industriais têm ganhos que já não resultam da produção e da venda de produtos reais – o que já se tornou um negócio deficitário – mas sim, da participação feita por um departamento financeiro “esperto” na especulação de ações e divisas. Os orçamentos públicos demonstram entradas que não resultam de impostos ou tomadas de créditos, mas da participação aplicada da administração financeira nos mercados de cassino. Os orçamentos privados, nos quais as entradas reais de salários reduziram-se dramaticamente, conseguem manter ainda um consumo elevado através dos empréstimos dos ganhos nos mercados acionários. Cria-se, assim, uma nova forma de demanda artificial que, por sua vez, tem como consequência uma produção real e uma receita estatal real “sem chão para os pés”.”(GRUPO KRISIS – “O Manifesto contra o Trabalho” disponível em: http://www.consciencia.org/krisis.shtml).

Desde que o presidente Richard Nixon em 1971 rasgou o acordo de Breton Woods ao decidir pelo fim do lastro-ouro para o dólar, criou-se as condições para extrema liquidez das transações financeiras globais.

Esta financeirização da economia global pode ser considerada uma “virtualização”. Sem lastro com o mundo material (a produção de riqueza a partir do trabalho nos setores primário e secundário, respectivamente agricultura e indústria) a produção de valor de descola do Estado-Nação (Casa da Moeda e Bancos Centrais nacionais) para ser privatizada pelos grandes conglomerados financeiros. O próprio setor financeiro passou a emitir “moedas” ao converter papéis das dívidas nacionais em novos papéis, ou seja, dívidas pagas com novos créditos que se convertem em novas dívidas, numa espiral especulativa sem precedentes.

O aquecimento da economia é tudo que
mais teme o fetichismo da liquidez

Nesse contexto de extrema liquidez, surge a necessidade de que o dinheiro em espécie seja substituído progressivamente pelo chamado “dinheiro-crédito” nas suas várias formas (talões de cheque, cartões de crédito, cartões de débito etc.).  Sem lastro de valor “real” o dinheiro e demais títulos cambiais têm que ser colocados em eterna circulação especulativa, adiando “ad infinitum” que sejam descontados ou que se convertam em espécie.

Por isso compreendem-se os freios estruturais do sistema econômico: juros altos e a constante ameaça inflacionária que paira se a economia “aquecer”. Pleno emprego e pleno consumo é tudo que a liquidez mais teme, sob pena de que títulos sejam descontados e de que todo o sistema se desmorone ao ser descoberto a ausência de lastro e a inexistência da medida do valor no sistema econômico.

A financeirização e a liquidez tornam-se uma camisa de força para as forças produtivas da sociedade (como diria Marx, o trabalho morto domina o vivo), pois a criação do dinheiro-crédito é uma nova forma de poder (virtualmente infinita) pela capacidade do sistema financeiro criar crédito e riqueza sobre o nada. Isto é, sobre a credibilidade ou a fé de milhões de usuários que, seduzidos pelo fetichismo da liquidez, acreditam que através das “home banking” nas telas de computadores e cartões de crédito e débito estão manipulando valores monetários reais.

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