A força do conhecimento. II. Por que a Terra é esférica?
Por Felipe A. P. L. Costa [*].
Vista do espaço, a Terra parece ter a forma de uma esfera perfeita. A mesma impressão nós temos diante do Sol e da Lua, assim como diante de imagens dos demais planetas do Sistema Solar ou mesmo de alguns dos seus satélites.
A depender da distância, a imagem da Terra nos faz pensar em uma bolinha de gude azul [1] – ver a imagem que acompanha este artigo. O predomínio da coloração azulada tem a ver com o fato de que os oceanos cobrem a maior parte (~71%) da superfície terrestre [2], como nós veremos em outro capítulo.
- Forma e tamanho da Terra.
Especulações a respeito da forma do planeta são antigas. Os gregos, por exemplo, com base em observações da sombra da Terra sobre a Lua durante os eclipses, já pressupunham que o planeta fosse uma gigantesca esfera. E o mais impressionante: os gregos eram capazes de calcular as dimensões de tal esfera.
Foi o que fez Eratóstenes (276-194 aC). O filósofo e astrônomo grego desenvolveu um método de cálculo com o qual obteve uma estimativa bastante precisa para a circunferência da Terra – 250 mil estádios, ou 46.250 km [3].
Eis o comentário de Singh (2006, p. 20-1):
“Na biblioteca [de Alexandria] Eratóstenes ficou sabendo da existência de um poço com notáveis propriedades, situado perto da cidade de Siena, no sul do Egito, perto da atual Assuã. A cada ano, ao meio-dia de 21 de junho, o dia do solstício de verão, o Sol brilhava diretamente dentro do poço e iluminava tudo até o fundo. Eratóstenes percebeu que, naquele dia em especial, o Sol deveria estar diretamente acima, algo que nunca acontecia em Alexandria, que ficava a varias centenas de quilômetros ao norte de Siena. Hoje sabemos que Siena fica perto do Trópico de Câncer, a latitude mais ao norte em que o Sol pode aparecer bem no zênite.
“Ciente de que a curvatura da Terra era o motivo de o Sol não brilhar do mesmo modo acima de Siena e Alexandria ao mesmo tempo, Eratóstenes imaginou se não poderia usar isso para medir a circunferência da Terra. Ele não pensou no problema do mesmo modo como pensaríamos, já que sua interpretação da geometria e sua anotação eram diferentes, mas aqui esta uma explicação moderna de sua abordagem. [Considere] como os raios paralelos da luz do Sol atingiam a Terra ao meio-dia de 21 de junho. No mesmo momento em que a luz do Sol mergulhava verticalmente no fundo do poço em Siena, Eratóstenes fincou uma vareta verticalmente no solo de Alexandria e mediu o ângulo entre a vareta e os raios do Sol. E o que é crucial para o problema é que este ângulo equivale ao ângulo entre duas linhas radiais traçadas de Alexandria e Siena ate o centro da Terra. Ele mediu o ângulo como sendo de 7,2°.
“Agora imagine alguém em Siena que decida caminhar numa linha reta até Alexandria, e depois continua andando até dar a volta ao mundo e retornar a Siena. Ao dar uma volta completa em torno da Terra, ela descreveria um círculo completo cobrindo 360°. Assim, se o ângulo entre Siena e Alexandria é de apenas 7,2°, então a distância entre Siena e Alexandria representa 7,2/360 ou 1/50 da circunferência da Terra. O resto do calculo é simples. Erastóstenes mediu a distância entre as duas cidades, que se revelou de 5.000 estádios. Se isso representa 1/50 da circunferência da Terra então a circunferência total deve ser de 250.000 estádios.”
O mesmo método seria usado depois para calcular outras grandezas astronômicas (e.g., as distâncias Terra-Sol e Terra-Lua) [4].
- “Eu vi a Terra! Ela é tão bonita.”
O primeiro ser humano a ver a Terra como uma esfera gigantesca foi o cosmonauta soviético Yuri [Alekseyevich] Gagarin (1934-1968).
Em 12/4/1961, a bordo da espaçonave Vostok 1 e orbitando a Terra a uma altitude média de 322 km [5], Gagarin deu uma única volta em torno do planeta.
O voo durou tão somente 108 minutos [6], mas foi o suficiente para transformar o episódio em um feito épico e histórico.
Enquanto orbitava, além de pronunciar um ‘discurso oficial’ endereçado à humanidade como um todo, Gagarin disse aos colegas soviéticos: “Eu vejo a Terra! Ela é tão bonita” [7].
- Esferoide oblato.
Ocorre que a Terra não é perfeitamente esférica. Medições rigorosas indicam que o raio equatorial (6.378 km) é ligeiramente maior que o raio polar (6.357 km) [8]. Diz-se então que o globo terrestre é um esferoide – i.e., um objeto aproximadamente esférico.
Esse desvio talvez fosse uma surpresa para os gregos, mas não para quem o previu e explicou: o matemático e naturalista inglês Isaac Newton (1643-1727) [9].
Nas palavras de Nussenzveig (2013, p. 249):
“Newton calculou o efeito da rotação da Terra sobre sua forma: na ausência de rotação, ou seja, somente sob o efeito a gravidade, os planetas deveriam ter forma esférica; entretanto, as ‘forças centrífugas’ produzidas pela rotação levam a um achatamento nos polos e alargamento no equador, conduzindo a uma forma de esferoide oblato […] [10].
“Segundo o cálculo de Newton, o diâmetro polar da Terra deve estar para o equatorial como 229/230, levando a uma elipticidade de 1/230” [11].
- A gravidade e a forma dos corpos celestes.
Mas, afinal, por que a Terra, o Sol, a Lua e tantos outros corpos celestes são esféricos?
A resposta tem a ver com o seguinte: todo e qualquer objeto astronômico cujo diâmetro esteja acima de um determinado valor mínimo tende a se tornar esférico pelo simples motivo de que a sua forma passa a ser moldada pela gravidade.
Nas palavras de Luminet (1996, p. 53-4):
“A Terra é efetivamente quase esférica porque é um objeto astronômico e, como tal, sua forma é governada pela gravitação. Em termos muito gerais, todas as formas no universo são governadas pelas quatro forças fundamentais. Entre essas formas fundamentais, há duas interações nucleares que regem a estrutura dos núcleos atômicos – ainda que não seja esse o nosso propósito hoje – o eletromagnetismo e a gravidade.
“Um bom exemplo de corpos bastante maciços, mas não a ponto de impedir que, ao mesmo tempo, atuem as forças eletromagnéticas e as forças gravitacionais, é o dos asteroides e dos núcleos de cometas. Esses objetos podem ter entre alguns quilômetros e algumas centenas de quilômetros de diâmetro e têm formas completamente bizarras, tão variadas quanto as dos seixos que encontramos em uma praia: não têm uma forma esférica, porque não são esculpidos pela gravitação. De fato, pode-se demonstrar que a gravitação só se torna a força organizadora dominante a partir de corpos que têm diâmetros da ordem de 500 quilômetros. É a razão pela qual todos os corpos do sistema solar, de mais de 500 quilômetros de diâmetro – quer dizer, todos os planetas e a maioria dos satélites dos planetas – têm formas esféricas. Por quê? Porque é a própria natureza da gravitação que o impõe. A força de gravitação atrai cada partícula material de um corpo para o que chamamos de centro de massa (ou centro de gravidade) do corpo [12]. Ela age da mesma maneira em todas as direções, com uma intensidade que depende apenas da massa das partículas e de sua distância do centro. Então, se um corpo é homogêneo, a gravitação o ‘esculpe’ inevitavelmente segundo uma forma esférica. Isso vale para os planetas e a fortiori para as estrelas, que são bem mais maciças.”
- Coda.
Em resumo: (a) A Terra é esférica porque é um objeto astronômico suficientemente grande (> 500 km de diâmetro), a ponto de ter a sua forma governada pela gravidade. Ao se tornar a força dominante, a gravidade tende a fazer com que os corpos celestes assumam uma forma esférica. (b) Mas a Terra não é uma esfera perfeita. O desvio (imperceptível em uma fotografia – ver a figura que acompanha este artigo) é resultado do movimento de rotação do planeta. Gerada por tal movimento, a força centrífuga tende a fazer com que o acúmulo de matéria seja um pouco maior ao longo do eixo equatorial do planeta.
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Notas.
[*] O presente artigo, assim como o anterior (Livros, lentes & afins), foi extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (em processo de conclusão; título provisório). Há uma campanha de comercialização em curso envolvendo os quatro livros anteriores do autor – para detalhes, ver o artigo ‘Ciência e poesia em quatro volumes’. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.
[1] Bola ou Bolinha de Gude Azul (ing., The Blue Marble) foi como ficou conhecida uma das primeiras imagens coloridas da Terra. Datada de 7/12/1972, a fotografia foi tirada pelo geólogo e astronauta estadunidense Harrison [Hagan] Schmitt (nascido em 1935). (Há uma imagem fotográfica anterior, datada de 1967. Mas foi tirada por um satélite e é relativamente pouco conhecida – ver aqui.) Schmitt foi um dos três integrantes da Apollo 17 (7-19/12/1972), a última missão tripulada a pousar na Lua.
[2] O restante da superfície terrestre (29%) exibe outras colorações, sobretudo tons esverdeados (florestas fechadas), amarronzados (desertos, áreas desflorestadas ou de vegetação rarefeita) ou esbranquiçados (calotas polares e topos de montanhas, ameaçados hoje por um acelerado processo de derretimento). Uma combinação de propriedades físicas e químicas dá à água dos oceanos a sua coloração azulada – ver Garrison (2010).
[3] Na Grécia Antiga, estádio era a distância padrão (185 m) em que eram disputadas as corridas. O resultado obtido por Eratóstenes (46.250 km) é uma ligeira superestimativa do valor adotado hoje para a circunferência equatorial do planeta. Vejamos. O comprimento da circunferência (C) mede 2πr, onde π é uma constante e r é o raio. Fazendo π = 3,14 e r = 6,378 x 106 m (ver nota 8), obtemos C = 4,0054 x 107 m (ou 40.054 km), o equivalente a 87% do valor obtido pelo filósofo grego.
[4] Assim como os gregos, os navegadores europeus que chegaram ao Novo Mundo, como Cristóvão Colombo (1451-1506) e Pedro Álvares Cabral (1467-1520), estavam cientes de que vivemos em um planeta esférico. Nas palavras de Boorstin (1989, p. 214): “Nessa altura [1484], os europeus instruídos já não tinham nenhuma dúvida quanto à esfericidade do planeta”. O desacordo residia no valor das dimensões. O modelo de globo terrestre adotado por Colombo (e por outros navegadores daquela época) era significativamente menor que o previsto pelos cálculos de Eratóstenes.
[5] Orbitando tão perto do planeta, Gagarin não chegou a ver a Terra como uma bolinha de gude azul. Quando Schmitt tirou a sua famosa fotografia (ver nota 1), a Apollo 17 estava a cerca de 45 mil km de distância da Terra. À medida que nos afastamos ainda mais, a imagem do planeta muda e evoca outras analogias e metáforas. No início de fevereiro de 1990, por exemplo, a sonda espacial Voyager I (lançada em 5/9/1977) estava a cerca de 6 bilhões km da Terra. E seguia se afastando para fora do Sistema Solar. A essa distância, o nosso planeta é praticamente imperceptível em uma imagem fotográfica – torna-se um cisco em meio a um pano de fundo polvilhado por inúmeros outros ciscos ou um pálido ponto azul (ing., pale blue dot), para usar a expressão literária adotada por Sagan (1996).
[6] Para uma recriação em tempo real do voo de Gagarin, incluindo imagens e trechos do áudio original, ver o filme First orbit (2011), de Christopher Riley.
[7] Para detalhes, ver aqui e aqui.
[8] Raio equatorial: ~6,37814 x 106 m (Luzum et al. 2011). A velocidade de rotação atual da Terra é de 1.670 km/h. Em 24 horas, portanto, um ponto fixo sobre o equador descreve uma circunferência de 40.080 km de comprimento (= 24 h x 1.670 km/h). Vale ressaltar que à medida que a rotação diminui, o comprimento do dia aumenta – para detalhes, ver Comins & Kaufmann (2010). A velocidade de rotação já foi maior, o que implica dizer que o comprimento do dia terrestre já foi menor do que é hoje. Estima-se que o dia esteja a ganhar 1,8 ms (milésimo de segundo) a cada século (Stephenson et al. 2016).
[9] Para uma discussão sobre os anos de nascimento e morte de Newton, ver Christie (2015).
[10] Esferoide oblato é aquele cujo eixo equatorial é maior que o eixo polar. Quando o eixo polar é maior, diz-se que o esferoide é prolato.
[11] Ainda Nussenzveig (2013, p. 249): “As determinações experimentais mais recentes dão uma elipticidade de ≈1/297.”
[12] Para detalhes técnicos, ver Comins & Kaufmann (2010) e Nussenzveig (2013).
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Referências citadas.
+ Boorstin, DJ. 1989 [1983]. Os descobridores. RJ, Civilização.
+ Comins, NF & Kaufmann, WJ, III. 2010 [2008]. Descobrindo o Universo, 8ª ed. Porto Alegre, Bookman.
+ Christie, T. 2015. Calendrical confusion or just when did Newton die? The Renaissance Mathematicus, em 20/3/2015. [O blogue do autor está aqui.]
+ Garrison, T. 2010 [2006]. Fundamentos de oceanografia, 4ª ed. SP, Cengage.
+ Luzum, B & mais 11. 2011. The IAU 2009 system of astronomical constants: the report of the IAU working group on numerical standards for Fundamental Astronomy. Celestial Mechanics and Dynamical Astronomy 100: 293-304.
+ Nussenzveig, HM. 2013. Curso de física básica, v. 1: Mecânica, 5ª ed. SP, Blucher.
+ Sagan, C. 1996 [1994]. Pálido pondo azul. SP, Companhia das Letras.
+ Singh, S. 2006 [2004]. Big Bang. RJ, Record.
+ Stephenson FR; Morrison LV & Hohenkerk CY. 2016. Measurement of the Earth’s rotation: 720 BC to AD 2015. Proceedings of the Royal Society A 472: 20160404 (http://dx.doi.org/10.1098/rspa.2016.0404).
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Magnífico.
Muito interessante essa história de Eratóstenes. Para que conseguisse estimar, ainda que de forma aproximada, a circunferência da Terra, foram necessárias duas coisas: o conhecimento matemático, e viajar até o Egito (nessa época, viajar algumas centenas de quilômetros, seja por terra, seja por mar, era algo bem problemático).
Quem, nos dias atuais, acredita em “Terra plana”, não está muito a fim de obter conhecimento (Bem, o pastor diz que isso é coisa do D-abo). E, se viaja, não aproveita a ocasião para “expandir seus horizontes”.
Segundo os apoiadores do coiso, a terra não é esférica, ela é plana!!!