O que vai mover o Programa Nova Indústria Brasil?, por Clarice Ferraz

Em diversos países, a política industrial tem apoiado suas empresas subvencionando gastos energéticos e oferecendo estímulos por tecnologias

BNDES

O que vai mover o Programa Nova Indústria Brasil?

por Clarice Ferraz

O Programa Nova Indústria Brasil (PNIB) foi lançado com a ambição de redinamizar a indústria brasileira e, ao mesmo tempo, adequar o perfil do parque industrial brasileiro às mudanças necessárias à transição ecológica, impostas pelo desequilíbrio climático e outros limites ecológicos.

Enquanto aguardamos o detalhamento das ações que o Programa visa desenvolver, nos perguntamos se são consistentes com as estratégias de desenvolvimento sustentável, de acordo com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela ONU, e se serão capazes de reverter o processo de desindustrialização em curso no Brasil.

Para atender esses objetivos, é preciso que o processo de transformação ecológica da economia brasileira esteja alinhado com uma transição energética em prol da descarbonização da economia brasileira. É necessário que seja feito uso eficiente dos recursos energéticos, assim como investimentos em novos equipamentos e em geração de novas tecnologias, seguindo a necessária lógica de “bounce forward”, cunhada por Rodrigo Hübner Mendes.

A descarbonização da matriz energética passa por uma eletrificação de diversos usos energéticos, provocando um forte aumento do consumo de eletricidade. Como precisa ser de origem renovável, tem aumentado no mundo inteiro a participação da geração de eletricidade a partir das fontes eólica e solar, que não são despacháveis, pois dependem da disponibilidade de vento e de sol. A entrada em larga escala dessas novas fontes e da modalidade de micro e minigeração distribuída já transformaram radicalmente o setor elétrico.

Em diversos países, a política industrial tem apoiado suas empresas subvencionando gastos energéticos e oferecendo estímulos para a adoção de novas tecnologias voltadas à descarbonização de suas atividades produtivas. Os elevados gastos fiscais e a perda de competividade de setores grandes consumidores de energia têm sido compensados por restrições comerciais, como o Carbon Board Adjustement Mechanism, na União Européia, e o Inflation Reduction Act, nos Estados Unidos, alegadamente criadas em prol da defesa do meio ambiente. Assim, a indústria exportadora brasileira deve se adaptar a essas restrições. O grau de emissões associado à sua estrutura produtiva deverá ser um dos determinantes de seu grau de competitividade internacional, contornando as restrições tarifárias.

Neste contexto, o presente artigo busca examinar o PNIB sob o ponto de vista de sua sustentabilidade energética. Estruturado em torno de 6 missões, elaboradas para impulsionar os setores apresentados a seguir, com um pequeno destaque para seu potencial de impacto sobre o consumo de energia elétrica, a partir de diferentes perfis de carga. A missão 1 é dedicada à agroindústria, com objetivos como a mecanização de 70% dos estabelecimentos de agricultura familiar, contra os atuais 18%, e a aspiração de produzir nacionalmente 95% das máquinas. A missão 2 é relacionada ao setor de saúde, cuja meta inicial é ampliar a participação da produção no país de 42% para 70% das necessidades nacionais em medicamentos, vacinas, equipamentos e dispositivos médicos, para fortalecer o Sistema Único de Saúde e melhorar o acesso da população à saúde. O setor contemplado na missão 3 é o de desenvolvimento de infraestrutura urbana – saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis – de forma a melhorar o bem-estar das pessoas nas cidades. A missão 4 visa a digitalização do parque industrial brasileiro, com muita tecnologia da informação. A missão 5 destina-se ao estímulo a atividades relacionadas à bioeconomia, à descarbonização e à transição e segurança energéticas. Os objetivos até agora elencados referem-se à descarbonização dos transportes a partir de maior participação de biocombustíveis na matriz energética de transportes; o aumento do uso da biodiversidade pela indústria e a redução em 30% das emissões de CO2 da indústria nacional, com destaque para a produção de bioenergia e de equipamentos para geração de energia renovável. Por último, a missão 6 destina-se à defesa e à soberania nacional, que envolve tecnologias de comunicação e de energia nuclear.

Todas as missões envolvem atividades com alto consumo de eletricidade. Como colocado anteriormente, será preciso que essa energia, provavelmente elétrica, seja de origem renovável. Assim, apesar de apresentarem coerência, a divisão em missões peca por não enxergar a importância do caráter transversal da reestruturação do setor elétrico para o sucesso de sua agenda de política industrial.

Para que indústria brasileira volte a se tornar competitiva e exportar produtos com maior agregação de valor, é preciso garantir a segurança de abastecimento energético a preços competitivos. As recentes, e cada vez mais frequentes, interrupções de abastecimento mostram que excesso de oferta de renováveis não traz segurança de abastecimento e que temos um problema de resiliência no setor. A ele se soma a já conhecida trajetória de aumentos de preços de eletricidade, há anos acima da inflação, consistindo em elemento estrutural inflacionário para a economia brasileira que não responde aos instrumentos de política monetária, como elevações nas taxas de juros, que provocam maior contração do nível de investimento.

O exemplo da Alemanha serve de alerta. No final de fevereiro, o governo alemão anunciou uma redução de suas previsões de crescimento para 2024 – de 1,3% para 0,2%, marcada pela redução da sua produção manufatureira[1]. A perda de competitividade, marcada pelo impacto dos preços dos insumos energéticos sobre os custos de produção, tem feito diversas empresas fecharem suas fábricas, pois não conseguem ser competitivas no contexto internacional.

O setor elétrico fornece elemento estruturante essencial para todas as demais cadeias produtivas e bem-estar das famílias e é profundamente afetado tanto na sua estrutura produtiva, como na sua estrutura consumidora, pelas mudanças climáticas e por seus eventos extremos. Deve receber atenção particular. A transformação tecnológica em curso tem importantes impactos financeiros e geopolíticos. Se o objetivo é alcançar uma transição energética justa, é preciso que seja garantido o acesso, incluindo econômico, à energia limpa e sustentável, como descrito no ODS 7, e aos empregos relacionados à transformação do parque industrial, incluindo a própria indústria de energia.

Em uma era marcada pela volta da maior participação dos Estados na economia para viabilizar e acelerar as transformações necessárias à transformação ecológica, como a própria proposta do PNIB se propõe, o Setor Elétrico Brasileiro (SEB) conhece o menor grau de participação estatal dos últimos 60 anos. Sem eletricidade limpa a preços competitivos, as missões do Programa correm o risco de serem aspirações, sem nenhuma ancoragem na realidade da estrutura produtiva brasileira.

O governo deve recuperar o controle sobre os ativos de flexibilidade estratégicos para a transição energética, como os reservatórios e as linhas de transmissão sob o controle da Eletrobras, que apesar de deter cerca de 43% das ações, não possui nem sequer uma cadeira no Conselho de Administração. A perda da função pública da empresa, associada à desregulamentação do mercado, em que cada agente se comporta de acordo com suas próprias estratégias empresariais para maximizar seus lucros, cria um conflito de interesse na gestão do usos dos reservatórios que é irreconciliável. Afinal, ou nossos reservatórios servirão ao propósito de equilibrar a entrada de novas renováveis, até onde foram vantajosas em termos de custos sistêmicos, visando o menor impacto tarifário e ecológico possível, ou a água será retida em tempos de escassez, ou vendida sob forma de potência e serviços ancilares, de forma a maximizar os lucros dos acionistas da empresa? A segunda opção compromete a competitividade de todo parque produtivo nacional e constitui uma ameaça à segurança de abastecimento, sabotando a digitalização, a defesa e todos os outros projetos previstos como capazes de alancar a economia brasileira e aumentar a geração de emprego e de renda.

França e Alemanha, a despeito de suas administrações liberais com fortes restrições fiscais, parecem ter aprendido uma lição. A primeira reestatizou a EDF, grande empresa de geração de eletricidade, sobretudo nuclear, e a Alemanha está em negociações com o governo holandês[2] para adquirir parte de suas linhas de transmissão, que estão precisando de investimentos para serem modernizadas, mas que são outro elemento central para a integração das novas energias renováveis nos sistemas elétricos descarbonizados.

Assim, o sucesso no alcance das metas propostas pelo PNIB, será em grande medida determinado pelo desempenho do setor de energia, em particular do Setor Elétrico Brasileiro (SEB), em profunda crise institucional, com disputas entre o Congresso, representando interesses corporativos, o Ministério de Minas e Energia, e a Presidência da República, com objetivos muito distintos para o futuro do País.


[1] https://www.dw.com/en/germanys-recession-fears-economic-outlook-is-grim/a-68339791

[2] https://www.energyvoice.com/renewables-energy-transition/grid-retail/549731/dutch-german-governments-said-to-be-near-tennet-grid-deal/

Clarice Ferraz – Economista, Professora da Escola de Química da UFRJ, com Doutorado em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Genebra; Mestrado em Energia (Advanced Master in Energy) pela Ecole Polytechnique Fédérale de Lausanne (EPFL); Mestrado em Administração Pública, com especialização em Gestão do Meio Ambiente, pela Universidade de Genebra; e pós-Doutorado pelo Instituto de Economia da UFRJ. Pesquisadora Associada do Grupo de Economia de Energia do Instituto de Economia da UFRJ, onde colabora desde 2012, e Diretora do Instituto Ilumina.

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Redação

3 Comentários

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  1. Nao vai ter reindustrializaçao sem segurança energética e modicidade tarifária. Estabilidade de tensao e frequência também sao essenciais para a indústria. Outro desafio a ser enfrentado é a falta de inércia na geraçao eólica e fotovoltaica, cujo crescimento tende a impactar na estabilidade do sistema. Será que o Governo entendeu a dimensão real do prolema?

  2. Não vai ter reindustrialização sem segurança energética e com tarifas elevadas. E mais, a indústria moderna precisa de estabilidade na rede (tensao e frequência). Será que o Governo conhece a real dimensao do problema? Será que esta matéria chegará ao alto escalão?

  3. O artigo é de uma grade clareza, mostrando que falar em transição ecológica e reindustrialização requer mais do que usar palavras bonita. Economias repousam em um mundo físico e biológico e precisam ser planejadas reconhecendo seus limites e dimensões.

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