Nem tudo é adaptativo, por Felipe A. P. L. Costa

Nem tudo é adaptativo

Por Felipe A. P. L. Costa [*]

Observadores da vida selvagem relatam exemplos de plantas e animais que parecem estar bem ajustados aos lugares onde vivem. Os casos incluem desde abelhas que regulam a temperatura interna da colmeia até árvores que atraem visitantes específicos às suas flores; de lagartas que constroem abrigos foliares contra inimigos naturais a peixes que nadam a grandes profundidades sem ser esmagados ou morcegos que voam à noite sem trombar nos obstáculos.

Estes e tantos outros relatos sugerem que há uma correspondência estreita entre traços fenotípicos (morfológicos, fisiológicos, comportamentais) e condições de vida. Na opinião de muitos estudiosos, tal correspondência ilustraria um processo ativo de ajustamento: a evolução por seleção natural.

Mas vale desde já ressaltar que a seleção não é onipotente, de sorte que outros fatores podem nortear a evolução. O que implica dizer que nem todos os caracteres são adaptativos e que, portanto, algumas daquelas correspondências podem ser acidentais e ilusórias.

Entre os fenômenos capazes de gerar mudanças não adaptativas, resultando às vezes na presença de penduricalhos (i.e., traços fenotípicos disfuncionais, neutros ou até ligeiramente prejudiciais), poderíamos aqui citar: restrições genéticas, pleiotropia, efeitos do fundador, efeitos do arquétipo e meios-termos. Vejamos os três primeiros [1].

Restrições genéticas

A maioria das mutações, mesmo as pontuais (e.g., Aa), tem efeitos negativos sobre o fenótipo, razão pela qual os portadores de mutações recentes tendem a ter uma aptidão inferior à dos outros fenótipos. Alelos deletérios são quase que imediatamente eliminados, mas isso não acontece quando o mutante é recessivo. Por exemplo, se o alelo a é recessivo, só se manifestando em dupla dose (aa), e se os genótipos AA e Aa dão origem a fenótipos equivalentes, a seleção sozinha não conseguirá eliminar o alelo a. E é justamente pelo fato de serem recessivos que muitos alelos deletérios persistem no fundo gênico [2].

Pleiotropia

Um gene é dito pleiotrópico quando o produto de sua expressão afeta mais de um caráter, ao mesmo tempo ou em momentos distintos da vida do organismo. Muitos genes – talvez a maioria – são pleiotrópicos. Se a expressão principal de um gene resulta em um traço benéfico, uma expressão colateral (neutra ou até ligeiramente prejudicial) pode ser tolerada como subproduto, ganhando assim uma carona. Por exemplo, a senescência – o processo de deterioração física que acompanha o envelhecimento – é vista por alguns autores como um subproduto de genes pleiotrópicos cuja expressão no início da vida é altamente benéfica [3].

Efeitos do fundador

Sempre que uma população encolhe de tamanho, crescem as chances de que eventos aleatórios (e.g., deriva) venham a ter algum papel evolutivo relevante.

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FIGURA. A figura que acompanha este artigo ilustra o efeito do fundador. As urnas a, b e c contêm 40, 20 e 10 bolas, sendo uma preta e as demais, brancas. A chance de retirar a bola preta aumenta à medida que o número de bolas brancas diminui, sendo máxima em c (1/10) e mínima em a (1/40).

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Considere o efeito do fundador, um caso extremo de deriva, no qual uma nova população é formada a partir de alguns migrantes – no caso limite, a partir de uma única fêmea grávida.

Pois bem, o princípio geral é o seguinte: quanto menor o número de migrantes, maiores serão as chances de que a nova população abrigue alelos raros. Alelos que, na população original, eram mantidos em níveis baixos (em razão, digamos, de alguma desvantagem seletiva) podem agora se tornar comuns.

Sejam dois alelos, A e a, com frequências iniciais f(A) = 0,99 e f(a) = 0,01. Imagine então que uma fonte aleatória de mortalidade (e.g., incêndio) provoque perdas devastadoras e não seletivas, fazendo da população remanescente uma amostra diminuta da original. Pois bem, a probabilidade de que, após o ocorrido, as novas frequências alélicas difiram das frequências iniciais será inversamente proporcional ao tamanho da população remanescente. No fim das contas, porém, há limites para as discrepâncias – afinal, caso a expressão de diferentes alelos resultem em diferenças significativas na aptidão dos portadores, a seleção voltará a discriminar entre eles, fazendo com que as frequências alélicas na nova população venham a refletir o que se passa na população original.

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Notas

[*] Artigo extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019), assim como 25 artigos anteriores – ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. (A versão impressa contém ilustrações e referências bibliográficas.) Para detalhes e informações adicionais sobre o livro, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato com o autor pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Os dois últimos foram vistos em artigo anterior (aqui). Alguns dos fenômenos citados podem se afetar mutuamente.

[2] Considere o caso da anemia falciforme, deficiência hereditária prevalente em populações expostas à malária (causada por protozoários do gênero Plasmodium). Em dupla dose, o alelo mutante S pode ser letal: muitas hemácias dos portadores adquirem um formato anormal (alongadas e curvadas, lembrando uma foice), sendo então removidas do sangue circulante. Heterozigotos (AS) produzem algumas hemácias falciformes, mas exibem também um significativo grau de resistência à malária (talvez porque o protozoário seja removido junto com as células defeituosas). Homozigotos normais (AA) não produzem hemácias defeituosas, mas são mais susceptíveis à moléstia. Nessas circunstâncias, nenhum dos dois alelos é eliminado pela seleção.

[3] Mais especificamente, a senescência seria o resultado de pleiotropia antagonística: os mesmos genes teriam efeitos positivos no início da vida e negativos em fases tardias (para detalhes, ver aqui).

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Redação

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