Nós, os primatas (II), por Felipe A. P. L. Costa

Diz-se que há um hiato – retratado no imaginário popular como elo perdido – entre os humanos e os seus parentes vivos mais próximos

Nós, os primatas (II)

Por Felipe A. P. L. Costa [*]

De 65 milhões de anos até cerca de 6-8 milhões de anos atrás, nossos ancestrais viveram como primatas essencialmente arborícolas. Algumas das tendências observadas na evolução humana tiveram início entre esses ancestrais. Mas outros traços que nos caracterizam surgiram durante a história dos antropoides, o ramo de onde mais tarde emergiria o Homo sapiens moderno.

A maioria dos estudiosos é de opinião que chimpanzés e bonobos são os primatas viventes mais próximos da espécie humana [1]. Mas não custa repetir: não somos descendentes nem ancestrais deles – apenas partilhamos de um mesmo ramo ancestral. Ramo este que, há uns 7-8 milhões de anos (equivalente a 350-400 mil gerações humanas), teria se subdividido, dando origem a duas linhagens: de um lado, os ancestrais de chimpanzés e bonobos; de outro, os ancestrais dos seres humanos.

Como vários detalhes ainda são desconhecidos, pois ainda carecemos de mais restos fósseis, diz-se que há um hiato – retratado no imaginário popular como elo perdido – entre os humanos e os seus parentes vivos mais próximos.

Na opinião de alguns estudiosos, esse hiato só será preenchido aos poucos, à medida que novos fósseis venham a ser encontrados. Para outros, no entanto, o hiato pode ser um equívoco, fruto de uma interpretação inadequada do processo evolutivo.

O fato é que o número de espécies fósseis de antropoides (hominídeos, inclusive) segue aumentando [2].

Entre os achados mais recentes, o candidato a elo mais antigo que se conhece hoje talvez seja o Sahelanthropus tchadensis, o homem de Toumai. Os primeiros fósseis dessa nova espécie – um crânio, pedaços de mandíbulas e alguns dentes de seis indivíduos – foram encontrados no deserto de Djurab (Chade), em 2001, por uma equipe franco-chadiana liderada pelo paleontólogo francês Michel Brunet (nascido em 1940). Com idade estimada em 7 milhões de anos, esses fósseis recuaram em cerca de 3 milhões de anos a idade do elo perdido – até então, o elo mais antigo que se conhecia tinha cerca de 4 milhões de anos.

Há outras peças nesse quebra-cabeça (e.g., Orrorin e Ardipithecus), mas as informações disponíveis sobre todos eles ainda são fragmentárias e insuficientes, dificultando que se estabeleça um quadro geral mais consistente, ao menos por enquanto.

A transição Australopithecus-Homo

Alguns milhões de anos após a separação dos ramos que dariam origem aos chimpanzés e aos humanos, a árvore filogenética dos antropoides já havia experimentado diversas ramificações. De acordo com os estudiosos, as espécies fósseis mais próximas do gênero Homo integram o gênero Australopithecus. Esses hominídeos teriam prosperado entre 5 milhões e 1,5 milhão de anos atrás.

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FIGURA. A figura que acompanha este artigo traz um modelo da filogenia de alguns hominídeos: Homo e afins. A seta indica qual seria a posição de Australopithecus sediba. A extensão das barras horizontais representa a abundância dos fósseis e a cor, a procedência deles: branco indica África; preto, África e Ásia; e cinza, Ásia e Europa. De acordo com o modelo, Homo e Paranthropus – ramos superiores, mais afastados – teriam convivido por mais tempo do que Homo e Australopithecus. (Por simplificação, alguns ramos foram omitidos.)

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As espécies conhecidas de Australopithecus (e.g., A. garhi, A. robustus, A. africanus e A. afarensis) foram descritas com base principalmente em pequenos restos fósseis, como pedaços de ossos do crânio e dentes. Uma exceção famosa é Lucy, nome dado ao esqueleto fóssil (40% completo) de uma fêmea de A. afarensis encontrado pelo paleoantropólogo estadunidense Donald C. Johanson (nascido em 1943), na região de Hadar, na Etiópia, em 24/11/1974 [3].

Já foram encontrados restos fósseis de mais de 300 indivíduos de A. afarensis, em diferentes regiões da África [4]. Com base nesses materiais, estima-se que os australopitecos mediam entre 1 e 1,3 m de altura, eram bípedes e tinham uma capacidade craniana entre 350 e 400 cm3, equivalente a pouco menos de um terço da capacidade média dos humanos atuais.

O gênero Homo teria surgido nas savanas africanas (o modo e o lugar exato ainda são objetos de pesquisa), entre 2,5 e 2 milhões de anos atrás, a partir de alguma espécie de Australopithecus (os candidatos mais prováveis seriam A. africanus e A. afarensis).

Quatro aspectos costumam ser destacados na história evolutiva que deu origem ao gênero Homo e, mais especificamente, à espécie H. sapiens, a saber: (1) aumento do cérebro (com um volume médio de 1,4 mil cm3, o nosso cérebro tem cerca de três vezes o tamanho do cérebro dos maiores primatas não humanos); (2) mudanças nas mandíbulas e nos dentes (as mandíbulas foram recuadas; os dentes diminuíram de tamanho, em especial os caninos); (3) bipedalismo; e (4) mudanças no comportamento social e cultural. Hipóteses a respeito deste último processo, ao contrário dos três primeiros, estão fundadas no estudo de evidências indiretas (e.g., artefatos).

Australopithecus sediba

A evolução humana é um assunto intrigante e que facilmente mobiliza a nossa curiosidade. Não é de estranhar então que os holofotes da mídia se acendam sempre que os estudiosos anunciam um novo achado. Foi o que ocorreu em abril de 2010, quando um grupo de cientistas divulgou a existência de uma nova espécie de hominídeo.

Com base em restos fósseis de dois indivíduos (um adulto e uma criança), encontrados na África do Sul e datados entre 1,78 e 1,95 milhão de anos, o paleoantropólogo estadunidense Lee R. [Rogers] Berger (nascido em 1965) e seus colegas descreveram um novo australopitecíneo, batizado de Australopithecus sediba.

Os autores ressaltaram dois aspectos: (1) a nova espécie era provavelmente um descendente de A. africanus; e (2) a análise dos fósseis sugere que A. sediba tinha mais caracteres em comum com os primeiros representantes do gênero Homo do que com qualquer outra espécie de Australopithecus.

  1. sediba ocuparia uma posição-chave na árvore filogenética dos antropoides, aplainando ainda mais o caminho entre os Australopithecus e os primeiros ramos do gênero Homo. Seria, assim, o elo mais recente – ao menos entre as espécies conhecidas – na transição entre os australopitecíneos e a linhagem que mais adiante resultaria no H. sapiens. O assunto, porém, é ainda controverso.

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Notas

[*] Artigo extraído e adaptado do livro O que é darwinismo (2019), assim como 17 artigos anteriores – ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. (A versão impressa contém referências bibliográficas.) Para detalhes e informações adicionais sobre o livro, inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato com o autor pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos e livros, ver aqui.

[1] Chimpanzés e bonobos (= chimpanzé-pigmeu) são tão parecidos que os próprios estudiosos demoraram a tratá-los como espécies distintas.

[2] Uma nova espécie de Homo (H. luzonensis) foi formalmente descrita e nomeada no início de 2019.

[3] A espécie só foi formalmente descrita e nomeada em 1978. No mesmo sítio, além de Lucy, foram encontrados vestígios de mais 13 indivíduos (idade estimada em ~3 milhões de anos) – o grupo todo passou a ser referido como a primeira família.

[4] Em 2000, foram encontrados restos fósseis (datados de 3,6 milhões de anos) de um macho adulto anormal. Com uma altura estimada em ~1,6 m, ele foi apelidado de Kadanuumuu (homem grande, no idioma etíope local).

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Redação

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