A mais profunda catástrofe humanitária da história do Brasil: 400 mil óbitos e contando, por Thiago Brandão Peres

É duro constatar que, enquanto alguns países ensaiam um retorno à normalidade (consequência direta da vacinação e de medidas orientadas pelo conhecimento científico), dia após dia a pandemia recrudesce em nosso território.

Crédito Amazônia Real – Fotos Públicas

A mais profunda catástrofe humanitária da história do Brasil: 400 mil óbitos e contando.

por Thiago Brandão Peres

Em março de 2021 completou-se um ano do primeiro óbito pela covid-19 no Brasil. Motivado pela indignação dessa triste constatação, me dedicava a escrever sobre as duas primeiras mortes de pessoas que não haviam regressado de viagem internacional. Manoel Filho, porteiro aposentado com 62 anos. Sofria de trombose e, especula-se, contaminou-se durante consulta em hospital de São Paulo. Faleceu no dia 17 de março de 2020. O segundo ocorreu no Rio de Janeiro no dia seguinte. Dona Cleonice era trabalhadora doméstica e, aos 63 anos, enfrentava os desafios impostos pela diabete e hipertensão. Foi contaminada por seus patrões recém-chegados da Itália que, mesmo apresentando sintomas associados à covid-19, não a dispensaram do serviço.

O objetivo de trazer ambos os casos era fazer divulgação científica de pesquisas que mostravam como a profunda desigualdade social brasileira colocava, de saída, os grupos sociais reconhecidamente mais vulneráveis em situação ainda mais fragilizada para enfrentarem a pandemia. Um bom exemplo é a investigação[1] conduzida pela Afro-Sebrap e Vital Strategies, que demonstra como o Sars-Cov-2 atinge a todos, porém, com intensidade e consequências diferentes a depender da raça/cor e etnia do enfermo – a saber, pessoas negras morreram 57% a mais que pessoas brancas; e a proporção de óbitos entre pessoas negras com 80 anos ou mais é 86% maior que entre pessoas brancas desta mesma faixa etária.

Entretanto, enquanto escrevia, o cenário que já era dramático, tornou-se ainda mais trágico. Dia após dia, enquanto tentava concluir o texto, o horror dos sucessivos recordes de óbitos/24h obrigava a deixar o objetivo inicial para trás e olhar para o que vinha pela frente. Com velocidade média de 15 mil mortes por semana, ultrapassamos a marca de 300 mil óbitos pela covid-19. E, em pouco mais de um mês, atingimos os 400 mil óbitos. Mal iniciamos o segundo semestre e mais brasileiros morreram em decorrência da covid-19 em 2021 do que em todo o ano de 2020. E contando…

Quando a Fiocruz declarou que vivemos o maior colapso hospitalar e sanitário da história do país[2], a média móvel semanal era de quase 2 mil óbitos. No dia em que ultrapassou 2,2 mil mortes, o presidente da república Jair Bolsonaro declarou para a imprensa “- estamos dando certo! […] Somos um dos poucos países que estão na vanguarda em busca de soluções[3]. É muito difícil precisar se tais afirmações são fruto de pura indiferença, ou deliberada alienação, ou são motivadas por sarcasmo ou até mesmo má-fé. Um amálgama de tudo isso, talvez. O ponto é que essas afirmações só têm um pingo de verdade se o objetivo do presidente for exterminar o vírus levando parte considerável da população brasileira com ele. Em seu último pronunciamento em rede nacional, afirmou que a pandemia lhe impôs “dois grandes desafios: o vírus e o desemprego”[4]. Fracassou em ambos. Segundo a Pnad Contínua[5], entramos em janeiro de 2021 com 14,3 milhões de desocupados. Some-se o número de pessoas que procuram com a população subocupada por insuficiência de horas e as pessoas que declararam não procurar emprego, mas que estariam disponíveis para trabalhar, e a constatação é que falta trabalho para 32,4 milhões de brasileiros e brasileiras. E, sobre o segundo desafio, não fosse a explosão de casos na Índia, nos manteríamos em primeiro lugar como o país com maior número de mortes por dia (quase um terço das mortes diárias no mundo acontecem aqui). A tragédia é tamanha que a expectativa de vida no Brasil diminuiu[6], algo que não acontecia desde 1940. Estamos morrendo aos borbotões. E contanto…

É duro constatar que, enquanto alguns países ensaiam um retorno à normalidade (consequência direta da vacinação e de medidas orientadas pelo conhecimento científico), dia após dia a pandemia recrudesce em nosso território. Estamos diante da mais profunda catástrofe humanitária da história do país. Aproximadamente 12,6% de todos os óbitos no mundo ocorreram no Brasil. O cenário é ainda mais dramático vis-à-vis esses números referirem-se apenas aos registros oficiais. O país é um dos campeões da subnotificação (ocupamos a 115ª posição no ranking de testes por milhão de habitantes)[7]; o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) estima que se levarmos em consideração o excesso de mortalidade[8], elevaríamoso total de mortos (direta ou indiretamente) pela pandemia hoje para próximo da casa dos 675 mil. E contando…

O fato é que o Brasil há bem pouco tempo era reconhecido mundialmente pela sua expertise estatística e de pesquisa em saúde pública. E, agora, enfrenta as consequências dos boicotes e intervenções sistemáticas do governo federal às informações oficiais. E não foram poucas: atraso deliberado da divulgação de óbitos pelo Sars-Cov-2[9]; interrupções da divulgação e tentativa de alteração dos critérios de confirmação dos óbitos[10] (que a tornaria significativamente mais lenta). E os boicotes não se restringiram apenas aos dados sobre saúde pública, como vimos na intimidação dos pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e tentativas de deslegitimação dos dados sobre o desmatamento no Brasil; nas mudanças metodológicas[11] do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) que superdimensionaram o número de empregos formais (e viraram motivo de comemoração por parte do governo federal[12]); nos cortes de financiamento para a realização do Censo demográfico pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que atrasam uma série história produzida ininterruptamente desde os anos 1940. E contando…  

O fato é que o vírus encontrou um forte aliado no governo de Jair Bolsonaro. E não é porque ele é incompetente.  Apontar sua inépcia é somente parte da verdade, pois explica apenas a incompetência nas ações em que o governo tem clara intenção de acertar como, por exemplo, trocar o lote de vacinas enviadas à Manaus e Amazonas, deixar testes perderem a validade, promover filas quilométricas para obtenção do auxílio emergencial, enviar máscaras inadequadas para profissionais de saúde[13], etc. A outra parte da explicação, cuja consequência é a maior tragédia humanitária da história do Brasil, reside na eficiência do governo em agir com nítida intenção de errar, ou melhor, negar, fazer intencionalmente o contrário de toda e qualquer orientação recomendada por especialistas e organizações nacionais e internacionais de saúde. E contando…

Uma história recente ilustra com melancólica perfeição a nossa atual situação: no dia em que o país atingiu os 395.022 óbitos pela covid-19, o ministro o ministro chefe da casa civil (que, pasmem, é um militar) decidiu tomar a vacina para se imunizar contra o novo coronavírus. Entretanto, teve que fazer isso às escondidas para não contrariar seu chefe, o presidente da República. E desculpou-se por tal ato de traição ao negacionismo científico justificando que era avô e que “como qualquer ser humano”, eu quero viver”[14]. E que, além disso, uma das suas ambições no momento é convencer Jair Bolsonaro a se vacinar também. Esse é o fundo do poço escavado no fundo de outro poço em que estamos metidos. Não há dúvidas de que, muito em breve, nós teremos que lidar com um trauma coletivo sem precedentes. Um trauma alcançado com muito esforço político, por um lado, e indiferença pela vida, de outro. E contando.


[1] https://www.racaesaude.org.br/.

[2] https://agencia.fiocruz.br/sites/agencia.fiocruz.br/files/u34/boletim_extraordinario_2021-marco-16-red-red-red.pdf

[3] https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/estamos-dando-certo-diz-bolsonaro-em-meio-ao-recorde-de-mortes-por-covid-19/

[4] https://www.youtube.com/watch?v=9lkEmxeTI-8&t=1s&ab_channel=Planalto

[5] Agenda de notícias. IBGE. 

[6] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/03/01/mortes-por-covid-devem-tirar-22-anos-da-expectativa-de-vida-dos-brasileiros.ghtml

[7] https://www.worldometers.info/coronavirus/

[8] Proporção entre os óbitos esperados (segundo a média dos últimos quatro anos) e os observados (descontando os casos positivos para covid-19). Ver https://www.conass.org.br/indicadores-de-obitos-por-causas-naturais/

[9]https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/05/dados-do-coronavirus-bolsonaro-defende-excluir-de-balanco-numero-de-mortos-de-dias-anteriores.ghtml

[10]https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/03/24/ministerio-da-saude-muda-sistema-e-numero-de-mortos-por-covid-19-despenca-artificialmente-em-sp.ghtml

[11]https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2021/03/29/desemprego-caged-empregos-governo-serie-historica-metodologia.htm#:~:text=Caged%20%C3%A9%20diferente%20do%20Novo%20Caged&text=A%20partir%20de%20janeiro%20de,foi%20batizada%20de%20Novo%20Caged.

[12]https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2021/03/29/desemprego-caged-empregos-governo-serie-historica-metodologia.htm

[13] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/03/18/ministerio-da-saude-distribui-mascaras-improprias-a-profissionais-da-linha-de-frente.ghtml

https://saude.ig.com.br/coronavirus/2021-03-18/anvisa-ja-havia-avisado-que-mascaras-fornecidas-pelo-ministerio-sao-inadequadas.html

[14] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/04/27/ramos-diz-que-tomou-escondido-vacina-contra-covid-e-que-teme-por-bolsonaro-nao-se-vacinar.ghtml

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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