Dois países, uma só constituição incivil, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Salvo raras exceções, os excessos e abusos cometidos pelos policiais dentro das favelas foram legitimados pelos esbirros diplomados das PMs

Dois países, uma só constituição incivil

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Enquanto assistia a parte final do debate entre Luis Nassif e seus convidados [aqui] lembrei-me de algo importante.

Quando a Constituição Cidadã foi promulgada, havia uma esperança: a de que o texto constitucional seria capaz de penetrar em todos os espaços geográficos, uniformizando a relações entre o novo Estado e os cidadãos brasileiros. Ledo engano, em pouco tempo ficou claro que os juízes não permitiram que as novidades constitucionais entrassem nas favelas. Dentro desses bantustões urbanos, as Polícias Militares foram autorizadas a continuar a fazer o que quisessem.

Salvo raras exceções, os excessos e abusos cometidos pelos policiais dentro das favelas foram legitimados pelos esbirros diplomados das PMs (refiro-me obviamente aos promotores e juízes). Esse fato se refletiu na jurisprudência dos Tribunais que criou um verdadeiro Estado de exceção, permitindo aos policiais militares encobrir seus crimes e condenar suas vítimas. Sobre esse assunto vide o livro Sentenciado o Tráfico https://jornalggn.com.br/artigos/sentenciando-trafico-2-o-odio-como-motivacao-da-atividade-judicial-por-fabio-de-oliveira-ribeiro/.

Fora das favelas a constituição era aplicada, mas dentro delas o sistema constitucional nunca entrou em vigor. Isso era interditado pela violência policial legitimada pelo MP e pelo Judiciário. A ambivalência desse sistema dual era evidente. Num caso, os juízes estavam acima das PMs e controlavam os abusos que eles cometiam. No outro os policiais é que tinham a palavra final como se estivessem de fato e de direito acima dos juízes. 

As escolhas feitas pelos juízes fragilizaram o sistema constitucional como um todo. Então nós chegamos à fase atual, em que um representante dos policiais, que não esconde sua ambição de comandar diretamente as PMs, chegou à presidência da república. Bolsonaro pretende desfazer a ambivalência, pois em razão de seu autoritarismo ele não pode aceitar a supremacia dos juízes nem mesmo fora das favelas.

O espraiamento geral do estado de exceção policial ficou claro quando a polícia do Rio de Janeiro praticou uma chacina na favela desafiando a decisão do STF de suspender operações semelhantes durante a pandemia. O presidente Bolsonaro imediatamente apoiou os policiais e a cúpula do judiciário não conseguiu responsabilizar os responsáveis pelo descumprimento de sua decisão judicial. 

Algum tempo depois, o comandante do Exército causaria uma grande indignação ao divulgar que não puniria o general Pazuello. A suspensão seletiva da validade e eficácia do Regulamento Disciplinar do Exército sugere que os militares estão sendo tragados pela dinâmica criada pelas PMs com ajuda do Sistema de Justiça . Os esbirros diplomados dos policiais (os promotores e juízes) que desde 1988 legitimaram a ambivalência constitucional ao tolerar e legitimar os abusos policiais dentro das favelas serão inevitavelmente coagidos a se submeter à nova ditadura policial-militar.

Durante décadas, a sociedade brasileira viu os juízes dizerem que o Judiciário é o poder mais frágil da república. Mas a verdade é que eles mesmos fragilizaram esse poder desde a promulgação da Constituição Cidadã. Em breve, alguns deles irão sentir o peso do Estado democratizado que eles permitiram às PMs criar dentro das favelas. O fim da ambivalência constitucional, que poderia ter sido a aplicação das regras da Constituição Cidadã em todos os espaços geográficos, poderá ser agora a brutal fragilização delas inclusive nos espaços em que ela era respeitada. 

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

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